“(…) Este lugar é sobretudo um lugar onde partilhamos a vida. A vida é o bem mais precioso que temos. A Vida acima de tudo. Acima da Arte, acima da morte, acima da doença, acima de tudo.”
Se há mantra que paira sobre a primeira metade do musical Could Be Worse, é este expresso por uma das suas várias personagens, interpretada pelo próprio encenador André Godinho. Para um olhar mais desatento e descontextualizado, pode parecer inocuamente positivista, praticamente digna duma imagem foleira colada no mural de Facebook da nossa tia-avó. É o ambiente em palco que a antevê expressa a realidade negra nesta contida. A luz fria que invade o palco, salientando a estrutura dum metal grotesco que, na sua larga imponência, quase como enjaula as pessoas que tomam os seus lugares num círculo espaçado de cadeiras. Isto é uma reunião dos AA, mas o problema aqui não é o álcool, evidenciado aliás pela quantidade absurda de bebidas brancas dispostas mesa ao fundo do palco. Estas pessoas são Artistas, que procuram, com o apoio mútuo, negar a arte que lhes chega e que procuram exteriorizar de forma inata. O absurdismo paradoxal deste objetivo torna-se então evidente: para o artista, as noções de vida e arte são convergentes de tal forma que se tornam perfeitamente intercambiáveis, logo a negação de uma é a negação da outra.
As personagens em palco procuram vacuamente expressar otimismo perante as suas situações e as dos que os rodeiam, otimismo este que se estilhaça à mínima vibração; sempre que um deles se introduz e aponta há quanto tempo não pratica (escrita, pintura, representação, etc.), há um aplauso dos outros que se torna progressivamente mais forçado; quando um destes deixa a língua “escorregar” em devaneios criativos, é repreendido friamente, um medo alheio que tal desabafo produza um efeito dominó no círculo; até mesmo o egotismo artístico tem espaço para sair da toca, quando uma enchente de bocas arrogantes procura roubar a voz duma das personagens enquanto esta recorda coisas do seu passado.
Estando estas presas a um musical, descortinam-se-lhes as almas quando a música invade o palco, as luzes passam do austero para o sedutor, a estrutura metálica desaparece em linhas luminosas multicoloridas, e as vozes irrompem pela sala dentro em cânticos e gritos que nos levam — e às personagens — da negação à aceitação do ciclo vicioso que impera sobre estas, e do qual não se irão livrar tão cedo.
Nesta luta, a vitória total é sempre inalcançável. Mas derrota, que chega assim que o artista se silencia e imobiliza, é igualmente provisória, e só termina de vez quando o tampo do caixão se cerrar sobre o corpo artista. Este processo resulta num impacto que se sente e nos deixa a vibrar durante longos momentos, ficando esta reverberância connosco mesmo após já nos termos levantado da cadeira e zarpado sala fora. Isto porque, ao contrário daqueles presentes em palco, em nós não fica negação alguma: Arte é vida, vida é arte, e Godinho e o resto da sua equipa criativa não quer que nos esqueçamos disso.
Could Be Worse: The Musical é uma encenação da companhia Cão Solteiro e de André Godinho. Em cena no Teatro São Luiz até ao dia 8 de Março.
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