Os esforços da União Europeia (UE) para bloquear as migrações nas rotas oriental (da Turquia para a Grécia) e central (da Tunísia e da Líbia para Itália), sobretudo a partir de 2014, acabaram por implicar uma maior procura da rota ocidental, a que tenta atingir Espanha através de Marrocos e, por vezes, da Argélia. O olhar da UE virou-se então para essa rota e o seu braço violento e mortífero não tardou a fazer-se sentir.
No caso da rota oriental, o acordo UE-Turquia, que afinal pode não ser bem um acordo assinado pela UE [ver em baixo], transformou as deportações em rotina aplicável a toda a gente que chegasse a qualquer ilha grega depois de 21 de Junho de 2016. Os hotspots, locais oficialmente de curta estadia, tornaram-se centros de detenção, verdadeiras prisões de longa duração, com condições deploráveis e degradantes.
A rota central teve uma abordagem semelhante, na qual um reforço do poder militar do regime líbio e uma espécie de carta branca para a utilização de qualquer tipo de meios eram a moeda de troca para evitar embarques de migrantes para costas italianas. Uma estratégia que incluiu – inclui – ataques contra ONGs que tentavam salvar vidas no mar, através da sua criminalização e da acusação de cumplicidade com traficantes humanos.
Quando a necessidade de resultados se sobrepõe a tudo o resto, atingi-los não é difícil, por muito sangue humano que possa custar. E, de facto, estas duas rotas, apesar de ainda porosas, estão cada vez mais difíceis, caras, perigosas, entregues a máfias com um nível de escrúpulos comparável à UE. De repente, cerca de 60% das chegadas a território europeu dá-se, neste momento, pela rota ocidental. Uma visita ao site do Missing Migrants Project dá uma visão muito clara da quase triplicação, entre 2017 e 2018, do número de chegadas por essa via. Com o corolário lógico dum aumento percentual de mortes que ultrapassa a proporção aritmética.
Resolvido o que é possível resolver noutros lados, os olhos da UE viram-se para Marrocos, novo ponto chave do chamado combate contra a ‘imigração ilegal’. A 28 de Junho de 2018, por ocasião do Conselho Europeu, os dirigentes da UE decidiram reforçar a “cooperação com outros países de origem e de trânsito, bem como a reinstalação voluntária”, “assegurar regressos rápidos e evitar o aparecimento de novas rotas marítimas ou terrestres”. Decidiram também apoiar os esforços de Marrocos e Espanha: “À luz do recente aumento dos fluxos no Mediterrâneo Ocidental, a UE apoiará, financeiramente ou de outra forma, todos os esforços envidados pelos Estados-Membros, especialmente a Espanha, e pelos países de origem e de trânsito, em especial Marrocos, para impedir a migração ilegal.”
A 6 de Julho, em comunicado de imprensa, a Comissão Europeia anunciava que tinha aprovado, no quadro do fundo de emergência para África, três novos programas relacionados com migrações para a África do Norte, num montante de 90,5 milhões de euros. No quadro do programa de gestão de fronteiras, foram desbloqueados 55 milhões para Marrocos e Tunísia, com o propósito de “salvar vidas humanas no mar, melhorar a gestão das fronteiras marítimas e lutar contra os traficantes que operam na região”. Houve ainda um acordo com Marrocos, uma outra verba de 6,5 milhões de euros, no quadro de um programa de apoio à estratégia nacional de imigração e asilo.
A 2 de Agosto, o site Euractiv.com, num artigo intitulado “A UE gastará mais para as suas fronteiras do que para África”, afirmava que “a proposta da Comissão para o reforço das fronteiras aloca pela primeira vez mais dinheiro para o controlo da imigração do que para ajuda ao desenvolvimento em África”. O orçamento da União Europeia para o período 2021-2027 previa um aumento dos fundos destinados ao apoio ao desenvolvimento a África de 26,1 mil milhões de euros para 32 mil milhões, sem ter em conta a inflação. Ou seja, descontada essa questão da inflação e de acordo com as contas do mesmo site, um aumento de uns ridículos 7% disfarçados duns pomposos 32%. Por outro lado, a “Comissão pretende atribuir um envelope de mais de 30,8 mil milhões de euros (a preços correntes para 2018) para a securitização das fronteiras externas e a gestão migratória para o período 2021/2027, ou seja, um volume mais elevado que aquele que será dado a toda a África sub-sahariana”.
Marrocos, um Estado interessado em manter boas relações com o bloco europeu, habituado ao uso da força enquanto solução, sequioso de fundos e conhecedor das movimentações diplomáticas, não tardou em demonstrar que a UE pode contar com ele. Os raids de larga escala em cidades marroquinas à procura de africanos negros, migrantes ou refugiados, tornaram-se um prato do dia cada vez mais presente. E o destino de todas as pessoas que são apanhadas nessas rusgas é o mesmo, independentemente do seu estatuto legal: a deportação.
Se, dentro das suas fronteiras, a UE faz tábua rasa dos seus próprios conceitos de lei ou direitos humanos, fora delas a impunidade oferecida é total. Episódios como o relatado pela Al Jazeera, em que a marinha marroquina acabou por matar uma mulher por ter disparado sobre um barco de migrantes, não são nem raros nem motivo de espanto. A luta contra a imigração ilegal e as redes de tráfico acabam sempre, dentro ou fora de portas, por ser um combate contra os próprios migrantes. Mas este episódio é apenas a ponta dum iceberg inimaginável para a maioria dos habitantes da UE.
O GADEM, grupo anti-racista marroquino de acompanhamento e defesa de estrangeiros e migrantes, produziu recentemente dois relatórios relacionados com o aumento da repressão sobre não marroquinos. O primeiro, de 28 de Setembro passado, intitulado “Custos e Danos” (“Coûts et Blessures”), é um conjunto de factos e análises de episódios de violência policial sobre a população negra em Tânger, Rabat e Casablanca, entre Julho e Setembro de 2018. Uma repressão que, por pretender afastar o mais possível das zonas fronteiriças todas as pessoas que sejam negras e não marroquinas, se transforma numa arma racista ao serviço da protecção das fronteiras europeias.
Se é verdade que o Norte de Marrocos sempre teve uma atenção especial por parte das autoridades, não é menos verdade que a repressão se começou, de facto, a intensificar a partir de Julho de 2018 e, principalmente, de Agosto. Aproveitando as duas tentativas de passagem da fronteira em grupo para o enclave espanhol de Ceuta (26 de Julho e 22 de Agosto), e vendo a reacção espanhola que, de imediato, mobilizou todo o seu aparelho securitário para deter, identificar e recolher todas as informações de forma a expulsar essas pessoas em menos de 24 horas, o reino marroquino apressou-se a mostrar-se, a fugir às acusações de laxismo e a demonstrar o seu papel central na luta contras as migrações irregulares, intensificando o número e a violência de detenções e expulsões. Os raids passaram definitivamente a visar qualquer pessoa que se encaixe no perfil de migrante (voltamos a repetir, por nos parecer importante: africanos negros não marroquinos), para a deter e enviar para territórios mais a Sul.
Sedento de poder, dinheiro, armas e credibilidade internacional, Marrocos joga com a sua posição geográfica e com o medo que a UE tem dos migrantes para conseguir um aumento considerável de apoio logístico, leia-se militar, e financeiro. Num momento em que a rota principal de entrada na UE é através de Espanha, o seu peso cresce consideravelmente. E cada novo raid, cada nova detenção ilegal, cada nova expulsão, é um trunfo que ganha à mesa das negociações. Nas palavras do GADEM, “Marrocos está a jogar um jogo perigoso e contraditório entre uma política extremamente repressiva e violenta direccionada para estrangeiros e migrantes presentes no seu território, um papel de ‘líder’ do dossier da migração dentro da União Africana e uma posição que quer firmemente manter em relação a Espanha, à União Europeia e aos outros Estados-Membros”.
Apesar de já ter meios enormes para controlar as suas fronteiras, o reino marroquino pretende reforçar o seu arsenal com novos equipamentos e, em várias declarações públicas, os seus governantes têm apelado ao apoio da UE. Espanha, que decidiu colocar a cooperação com Marrocos no seu centro político, é uma alavanca para o reino mostrar que possui argumentos próprios para convencer a UE como um todo. O seu bom comportamento em termos de «gestão de migrações» não é apenas recompensado por Espanha, como se viu no recentemente assinado novo acordo de pescas entre a UE e Marrocos que, depois de tempos infinitos de indecisões (muito ligadas à questão do Sahara Ocidental), se desbloqueou como que por magia e parece ter aberto uma nova fase nas relações. Uma relação que terá sempre um carácter injusto, claro, quase neo-colonial, no seguimento aliás das palavras da própria Comissão Europeia, num dos seus relatórios de 2016, mais precisamente do dia 7 de Junho: “as relações especiais que os Estados-Membros possam ter com países terceiros, reflectindo relações políticas, históricas e culturais promovidas por décadas de contactos também devem ser exploradas para benefício da UE”.
Depois de lançado o primeiro relatório, a situação piorou. Ou melhor, teve um desenlace que, sendo previsível, não estava de todo programado. E, a 9 de Outubro, o GADEM viu-se na necessidade de publicar um novo relatório, desta vez intitulado “Expulsões Gratuitas” (“Expulsions Gratuites”). À detenção e transporte forçado para Sul seguia-se, afinal, a expulsão de território marroquino. As pessoas são metidas em campos com condições mínimas: “acesso limitado a comida e casas de banho, ausência de cama, violência diária, represálias sobre quem resista à expulsão, muitos feridos e doentes que são deixados sem assistência”, pode ler-se neste segundo relatório. Onde também se pode ler que “sem comunicação oficial sobre as suas detenções, as pessoas cujos testemunhos recolhemos foram muitas vezes detidas para além do tempo máximo permitido por lei. Foi-lhes impossível oporem-se à sua detenção ou às medidas de expulsão que lhes estão a preparar. Sem haver advogados ou intérpretes disponíveis, também lhes é negado o acesso aos seus representantes consulares, a não ser para organizarem a sua expulsão”.
O primeiro relatório do GADEM foi publicado três dias após a morte duma mulher às mãos das autoridades marroquinas (a que se juntaram vários feridos), acontecido já depois do assassinato noticiado pela Al-Jazeera a que nos referimos atrás. O segundo relatório saiu no dia de uma outra rusga, da qual resultaram novamente vários feridos. Dois dias mais tarde, um barco com 11 pessoas a bordo foi deixado a vaguear, apesar de tanto as autoridades marroquinas como as espanholas terem sido repetidamente alertadas sobre a embarcação em perigo. “Ninguém veio para nos salvar. Por isso, decidimos voltar por nossa conta. Estávamos exaustos e ficámos sem água. Morreram duas pessoas antes de chegarmos a terra”, são as palavras dum sobrevivente transmitidas pela ONG Watch the Med – Alarm Phone. A política migratória europeia virou os seus braços mortais para um novo território que, vistas as vantagens que pode tirar dum mero aumento da sua capacidade repressiva, não hesita em entrar na roda. Uma roda onde todos saem a ganhar. Menos as pessoas.
O acordo que a UE não assinou
Num caso aberto por três requerentes de asilo na Grécia, que tentaram desafiar a legalidade do acordo UE-Turquia, o Tribunal Europeu de Justiça (TEJ) afirmou não ter competência para julgar a sua legalidade, porque “nem o Conselho Europeu nem qualquer outra instituição da UE decidiu concluir um acordo com o governo turco sobre a questão da crise de migrantes”.
Ainda segundo a decisão do tribunal, “a prova fornecida pelo Conselho Europeu, e relacionada com as reuniões sobre a crise de migrações que decorreram sucessivamente em 2015 e 2016 entre os Chefes de Estado ou do Governo dos Estados-Membros e os seus congéneres turcos, demonstra que não foi a UE mas os seus Estados-Membros, enquanto actores da lei internacional, que concluíram as negociações com a Turquia nessa matéria”.
O acordo UE-Turquia foi oficialmente publicado através de um comunicado de imprensa no site partilhado pelo Conselho Europeu e o Conselho da União Europeia. A sua natureza legal já foi debatida no Comité de Liberdades Civis do Parlamento Europeu, que considerou que o acordo não era legalmente vinculativo, mas apenas um catálogo político de medidas adoptadas na sua própria base legal específica.
Três pessoas, duas paquistanesas e uma afegã, viajaram da Turquia para a Grécia, onde pediram asilo por temerem perseguições em caso de regresso aos seus países de origem. Perante a possibilidade de serem reenviadas para a Turquia no caso dos seus pedidos de asilo serem recusados, decidiram desafiar a legalidade desse acordo. Segundo a acção que intentaram, trata-se de um acordo internacional que o Conselho Europeu, enquanto instituição a agir em nome da UE, concluiu com a República da Turquia. Um acordo que, assim defendiam os requerentes, violava o Tratado sobre o Funcionamento da UE (onde se define o âmbito das autoridades da UE para legislarem e os princípios legais nas áreas em que a UE opera) e também a Carta dos Direitos Fundamentais da UE, assim como os procedimentos comunitários para a conclusão de acordos internacionais.
Decidindo que o acordo foi assinado entre Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-Membros da UE e o Primeiro Ministro da Turquia, o tribunal afirma-se, então, sem competência para julgar o caso. Assume, dessa forma, que todos os Estados-Membros duma instituição da UE podem adoptar medidas que são competência da UE sem se submeterem a uma lei da UE. Isto é ainda mais visível se se tiver em conta que os Estados-Membros estavam a a agir sobre uma matéria que já estava coberta por medidas da UE, tais como o acordo entre a UE e a Turquia sobre readmissão de pessoas que residem sem autorização, de Dezembro de 2013. Trata-se, está à vista, dum caminho criativo através do qual a UE, para esconder o vazio do seu conceito de dignidade humana, foge às suas próprias leis e aos seus próprios mecanismos de controlo (por exemplo este tipo de «acordos informais» não têm de passar pelo escrutínio do Parlamento Europeu).
Directiva das Deportações reloaded
Há quase dez anos, a UE publicava uma das leis fundamentais para a regulamentação das migrações irregulares de cidadãos de fora do espaço europeu. A chamada Directiva de Regressos (Returns Directive), demonstrava, de facto, que o foco estava em evitar a presença de migrantes, tidos como seres indesejáveis e problemáticos. Os seus critérios eram, nas palavras de muitas organizações ligadas à questão, demasiado penalizadores para quem procura uma vida nova em território que considera menos hostil do que o seu.
No entanto, mantinha alguns limites ao uso da lei criminal geral para deter migrantes, estabelecia um direito limitado a julgamento e, em alguns casos extremos, fornecia uma base para “impedir” a deportação e assegurar direitos básicos de saúde.
Essas pequenas cedências, chamemos-lhes assim, estão agora em causa. A Comissão Europeia, que em 2014 pedia aos Estados-Membros para aplicar a Directiva de forma generosa, decidiu, em 2017, pedir-lhes que a aplicassem tão estritamente quanto possível. É o que se pode inferir do plano de acção “sobre uma política de regressos mais eficiente na União Europeia», da recomendação «sobre tornar os regressos mais eficientes” e do “Manual de Instruções para Regressos” (“Return Handbook”) que deveria ser utilizado pelas autoridades competentes dos Estados-Membros quando desempenhassem tarefas relacionadas com os regressos (a palavra simpática com que a UE rebaptizou as deportações).
Ainda assim, parece haver limites. As tais pequenas cedências são ainda um entrave demasiado grande ao caminho de fortalecimento de fronteiras que tem sido desenhado nos anos mais recentes. Nesse sentido, no passado dia 12 de Setembro, no mesmo dia em que propunha aumentar novamente os poderes da Frontex, a Comissão Europeia lançava uma proposta de alteração da Directiva.
A primeira alteração é a definição de ‘risco de fuga’. Uma definição que se traduz numa lista não exaustiva (“pelo menos”) de 16 factores, um dos quais uma redundante “entrada ilegal” que, na prática, alarga esta definição a todos os migrantes irregulares. Pretende justificar a detenção e dificultar a possibilidade de regresso voluntário. O que fará aumentar o número de pessoas que, mais do que deportadas, ficam impedidas (banidas) de entrar de novo em solo da UE. O regresso voluntário, condição para uma pessoa não ser “banida”, é verdadeiramente ameaçado nesta proposta. Por um lado, os Estados-Membros já não necessitarão de dar um mínimo de sete dias para o migrante partir. Por outro, nos três casos em que os Estados-Membros podem “optar” por recusar a um migrante o direito de partir voluntariamente (risco de fuga, candidatura manifestamente fraudulenta a uma estadia legal e risco para a política, a segurança e a saúde públicas), passarão a ter a «obrigação» de recusar esse direito.
De forma a facilitar que os Estados de origem aceitem os seus cidadãos de volta de forma mais rápida (e há vários Estados que insistem muito em documentação), haverá uma nova obrigação de confirmar a identidade dos migrantes indocumentados e de obter os documentos em falta. Uma nova cláusula informa que os requerentes de asilo cujo pedido tenha sido recusado têm apenas uma instância de recurso. E têm apenas cinco dias para o fazer.
No que diz respeito à detenção de migrantes, haverá três critérios em vez dos actuais dois. De qualquer forma, esta lista passará a ser não exaustiva – a palavra “apenas” é apagada. O primeiro critério manter-se-á o risco de fuga, mas será, como vimos, redefinido. O segundo, impedir ou dificultar as preparações do processo de deportação, já foi anteriormente definido de forma muito ampla e manterá a sua formulação. O terceiro e novo critério será para quando um migrante «representa um perigo para a política e a segurança públicas ou a segurança nacional», uma formulação que abre a porta a interpretações várias por parte dos juízes do Tribunal Europeu de Justiça.
Trata-se duma proposta inteiramente preocupada com a facilitação das expulsões de migrantes irregulares, para a sua detenção e para os banir definitivamente, de forma a que não voltem. E, apesar de não mexer directamente nos limites colocados aos Estados-Membros para o uso da lei criminal geral para deter migrantes, esta proposta abre a porta para que fosse mais simples contornar esses limites de forma indirecta, ao dar poderes suplementares para a detenção de migrantes no contexto de leis https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativas.
Texto de Teófilo Fagundes
(Nota: este texto foi originalmente publicado no Jornal Mapa, jornal de informação crítica, editado em papel, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)
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