Quando a União Europeia (UE) foi construída, os Estados-Membros decidiram que continuariam a ser eles os grande detentores das competências em saúde. Lentamente, foram abrindo mão de alguns controlos, mas a UE continua sem poder desenhar ou implementar políticas de saúde nem organizar ou prestar cuidados de saúde. Quer isto tudo dizer que a UE não faz qualquer esforço na área da saúde? Errado. Vamos ver alguns aspectos da sua acção.
O “Ministério da Saúde” europeu é a Direção-Geral (DG) Santé, e o actual “Ministro” o Comissário lituano Vytenis Andriukaitis, que detém a pasta da Saúde e da Segurança Alimentar. Esta DG é responsável por gerir as políticas de saúde pública e de segurança alimentar da União Europeia. E que políticas são essas?
Cuidados de saúde transfronteiriços
A face mais visível da UE na saúde talvez seja mesmo o Cartão Europeu de Seguro de Doença, o cartão que nos permite obter, quanto estamos noutro país da União Europeia, cuidados de saúde ao mesmo preço e nas mesmas condições que aquelas a que estão sujeitos os residentes desse Estado (não necessariamente de borla, portanto).
Para além disso, há uma directiva que regula a prestação de cuidados de saúde da União Europeia em mobilidade. No fundo, isto permite que os cidadãos possam beneficiar dos regimes de segurança social do seu próprio país se adoecerem durante uma deslocação a outro Estado-Membro. Esta directiva regula ainda a possibilidade de os cidadãos escolherem ser tratados das suas doenças noutro país da UE, mas na prática isso sempre foi extremamente dificultado (e, sendo justo, devo dizer que a possibilidade de, de repente, se poder ser tratado em qualquer ponto da UE iria levar à ruína de muitos dos sistemas de saúde).
A criação de uma espécie de “mercado único” na área da prestação de saúde permite também aos profissionais de saúde ver as suas certificações profissionais reconhecidas em qualquer país da UE.
Neste âmbito, existem ainda as Redes de Referenciação Europeias para doenças raras, que tentam ganhar “escala” ao juntar diversos pontos que tratam doenças raras numa rede de partilha de informação e estratégias. Por último, a Comissão Europeia tem tentado também estimular a criação de projectos de saúde digital entre Estados-Membros, como o uso de um formato de Registo Clínico electrónico comum.
Regulação do medicamento e dos dispositivos médicos
Mais uma vez, um excelente exemplo de um avanço político possibilitado, em parte, por um desejo de integração económica. Os tratados são claros: a União tem a responsabilidade de proteger a saúde humana. A forma de o conseguir? Exigir que todos os medicamentos e dispositivos médicos comercializados se submetam a controlos de segurança e qualidade, algo que permite a existência de um mercado europeu destes produtos… e que contribui para melhorar e uniformizar a sua segurança e qualidade.
Para isto, foi criada a Agência Europeia do Medicamento, que partilha com as agências de medicamento nacionais a capacidade de aprovar e regular medicamentos ao nível da UE. Idealmente, evitam-se duplicações de esforços e ganha-se eficiência nos processos regulatórios, que podem ser conduzidos centralmente.
Há também uma herança francamente menos positiva da actividade da UE ao nível de regulação do medicamento. Graças a uma directiva de 2001 que regula os produtos médicos para uso humano, os produtos homeopáticos (que, não há qualquer dúvida, a ciência já demonstrou não terem qualquer validade terapêutica) podem ser chamados medicamentos e não precisam de se submeter ao mesmo rigor dos outros tipos de medicamentos, nomeadamente a análises que comprovem a sua eficácia terapêutica.
Vacinação e vigilância de doenças transmissíveis
Um tema com crescente importância na UE é a vacinação. Países como França e Itália vêem regressar doenças que já só faziam parte dos livros de história, e isso deve-se a uma quebra na cobertura vacinal na população.
A UE, para não fugir à regra, não tem qualquer controlo sobre as políticas de vacinação, mas tem um papel importante em garantir o acesso a vacinas, em garantir a sua segurança e a sua qualidade, e até algumas iniciativas que permitem tornar as vacinas da gripe mais “adequadas” a cada ano (a vacina da gripe é diferente todos os anos, consoante as estirpes do vírus que estão mais na moda, digamos assim). No entanto, perante cenários em que os países tentam furar a cobertura vacinal, nada pode. Veja-se o exemplo da resolução aprovada pelo Parlamento Europeu, que basicamente pede com muito jeitinho aos Estados Membros para tomarem medidas.
Quanto à vigilância de doenças transmissíveis, foi também por isso que se criou o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças, ECDC. Este Centro tem nas mãos, entre outras coisas, o combate às resistências antimicrobianas ou a vigilância, prevenção e combate a ameaças sanitárias transfronteiriças.
Investimento em infraestruturas e investigação
Por último, importa falarmos do EU Health Programme, uma espécie de estratégia de investimentos da União Europeia para um período específico e relativamente longo. O último é o 2014-2020, e teve quatro objetivos declarados:
- Promoção da saúde e prevenção da doença;
- Preparação e gestão de crises;
- Inovação nos sistemas de saúde;
- Acesso a cuidados de saúde melhores e mais seguros.
Cruzando esta informação com o início deste texto, depressa se percebe que a escrita dos objetivos é demasiado ambiciosa. Na verdade, este programa conta apenas com mecanismos de coordenação e partilha de melhores práticas entre Estados-Membros e com fundos europeus para investir em investigação, inovação e infraestrutura.
E no futuro, o que pode vir a fazer a UE?
Bom, não querendo soar “capitão óbvio”, pode fazer tanto quanta a vontade por parte dos decisores (em teoria, o povo; na prática, os líderes dos 28 Estados-Membros). O Serviço de Estudos do Parlamento Europeu perguntou aos europeus se queriam mais ou menos intervenção da UE na saúde, e a resposta foi favorável a “mais”. No entanto, se me permitem o paternalismo, tendo em conta o desconhecimento generalizado sobre as funções da UE (e não só na saúde), duvido que isto seja um desejo sustentado em evidência.
A saúde tem ganho destaque em lutas políticas, e não por bons motivos. O The Economist descrevia em Janeiro o seguinte:
“Like their counterparts in Italy, populists elsewhere—such as Heinz-Christian Strache in Austria and Marine Le Pen in France—have argued for ‘parental choice’, even though vaccines only work to control diseases as contagious as measles if 95% of a population is covered. Grasping for an alternative cause of disease, some settle on migrants. In fact, they are often better immunised than natives, embrace local health care and do not fuss about vaccines. Yet Ms Le Pen rails against “bacterial immigration” while Viktor Orban, the populist Hungarian prime minister, calls migrants “poison”. A social-media animated video by the governing Freedom Party in Austria shows “Ali”, a patient wearing a fez and a moustache, trying and failing to scam his way into a hospital.”
Perante este cenário, podemos esperar que seja difícil um reforço de competências da UE na saúde, que iriam sempre requerer uma combinação politicamente mortal: Estados a abdicar das suas competências e a dar recursos à UE.
(Nota: este texto foi originalmente publicado no site ID Europa, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)