Na comédia social francesa, estreada este ano em Portugal, Mauvaise Herbes (Ervas Daninhas), a frase inicial apontava a Victor Hugo: ‘Lembrai-vos sempre de que não há ervas daninhas nem homens maus: — há, sim, maus cultivadores‘. No ácido Les Misérables (Os Miseráveis) de Ladj Ly, longe de ser uma comédia, essa mesma frase encerra uma trama que traça um retrato negro da vida nos subúrbios, os conflitos raciais e étnicos inerentes, e a relação precária dos habitantes com as autoridades.
Filho dos bairros sociais parisienses, Ly deu nas vistas há uma década atrás após disseminar na internet um vídeo sobre abusos policiais. Daí até criar a sua curta-metragem homónima em 2016, foram 10 ou 12 anos, mas com o apoio do seu grupo Kourtrajamé, tantos anos depois, conseguiu aterrar em Cannes em 2019 na corrida à Palma de Ouro.
O seu Os Miseráveis foi o primeiro estrondo do certame, recordando o cineasta aos jornalistas como tudo começou: “Os Miseráveis, o ponto inicial deste projeto, começou com um abuso policial que filmei há dez anos. Filmava algumas coisas no meu bairro. É um bairro onde muita coisa acontece e comecei a filmar os policias e apanhei um deles em falso. Falei com o meu grupo Kourtrajamé e decidimos espalhar o vídeo. Depois do inquérito policial e dos Media espalharem o vídeo, o polícia foi suspenso. Foi devido a esse vídeo que decidi fazer, anos mais tarde, Os Miseráveis, a curta-metragem.
Há muitos anos que ambicionava fazer uma curta. É muito complicado fazer uma longa-metragem, tínhamos um orçamento pequeno, mas conseguimos fazê-lo. E foi assim. Fiz a curta, ela teve grande sucesso, foi selecionada para vários festivais, ganhou mais de 30 prémios, por isso achei que estava na altura certa de fazer a longa-metragem, que tem o mesmo nome.”
E é este filme, passado nuns subúrbios degradantes e limitantes um aviso à França de Macron? Ly não tem dúvidas: “Sim, é um grito de alarme. Há doze ou 13 anos existiram motins nos bairros sociais e eu fiz um documentário chamado “365 Jours à Clichy Montfermeil”. Passados 12 anos, o que percebemos é que as coisas não mudaram. Eu não estou a dizer que nada mudou, porque até existiram muitas renovações urbanas dispendiosas, mas ainda falta fazer muito. Por isso, isto é um aviso, pois estamos a falar da juventude.
Nós falamos muito das dificuldades das crianças neste tipo de bairros, por isso este filme é uma chamada de atenção, um alarme pois a situação é desastrosa em termos de escolas, educação, cultura e presença das ONGs. Os subsídios quase secaram, etc. O que tento dizer é: tenham cuidado. Ouçam mais as pessoas.
Há vinte anos que dizemos que as coisas não estão bem e temos a sensação que ninguém nos ouve. Aliás, eu queria enviar uma mensagem ao presidente da república, o senhor Macron, para ele ver o filme, pois é importante. Há vinte anos que somos “coletes amarelos”, que pedimos os nossos direitos e que temos de lidar com a violência policial.
Há vinte anos que lidamos com flash-balls e parece que agora, com os coletes amarelos, muita gente descobriu que existe violência policial. Nós vivemos com ela há muito tempo. ¾ de nós já fomos atingidos pelas flash balls, mas agora a França descobriu que a polícia é violenta e usa meios perigosos. Os coletes amarelos estão nas ruas há seis meses e parece que foram ouvidos, por isso… acho que temos um problema em nos ouvirem. Em ouvirem os bairros.”
Mas ainda existe esperança para esta juventude? O realizador crê que sim, mas que muita coisa precisa ser feita: “Ponho-me na pele desta juventude. Cresci nestes bairros sociais, mas para esta geração crescer neles é como começar a vida com um handicap. Aquelas escolas são um handicap e quando eles acabam o ensino vai ser muito difícil encontrar um emprego.“.
O argumentista do filme, Giordano Giderlini, concorda, lembrando a tal citação de Victor Hugo, a única do autor em todo o filme: “[A frase] é direccionada aos jovens, eles precisam de apoio, de serem ouvidos. Por outras palavras, acho que somos responsáveis pelo que estamos a fazer a estes miúdos. Se nada for feito, as coisas vão explodir como vemos no filme.”
Artigo original de Jorge Pereira/C7nema.
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