(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)
Até ao fim do ano, uma petrolífera planeia furar em Aljubarrota e na Bajouca, em busca de gás natural. Em Dá-lhe Dás, série de quatro episódios, contamos as histórias por contar, os bastidores, a oposição das populações e as promessas da empresa. Meses de investigação não deixam dúvidas: as decisões nacionais e europeias estão a salvar a indústria do gás.
Episódio 1: o jardim da Celeste – três anos após o Estado ter concessionado milhares de quilómetros de subsolo à petrolífera Australis, Maria Celeste descobre que querem fazer um furo prospeção de gás natural à porta de sua casa, em Aljubarrota, Alcobaça. Nunca a avisaram. Longe dos olhares, os terrenos já tinham sido vendidos. O que deixaram na região as petrolíferas que, durante décadas, procuraram petróleo e gás no Oeste?
Este episódio foi produzido para ser ouvido. Mas pode ser lido em simultâneo. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio, acompanhada de fotos e mapas.
Introdução
Maria Celeste: Ahhh desculpe que eu tenho de por ali uns ovinhos…
Pedro Miguel Santos: Ponha, ponha. Foi isso
Maria: Pronto, é que eu, sinceramente, as informações que lhe posso dar e os conhecimentos que eu tenho não são nenhuns, sobre isso, já lhe disse.
Pedro: Pois.
Maria: Informações não tenho de ninguém. Ninguém veio falar connosco. Agora, sobre isso, se é bom ou mau, eu até precisava que alguém me explicasse alguma coisa para depois eu perceber se era bom ou não. Não é? Eu não sei. Não faço ideia. Não faço ideia. Não sei, não sei.
Celeste está atarefada. O marido chega em breve para almoçar e ela apressa-se a tratar do repasto. Na cozinha-meio-sala-de-estar-meio-sala-de-jantar de uma cave meio rés-do-chão desta moradia da Rua dos Prazeres, na freguesia de Aljubarrota, concelho de Alcobaça, o quotidiano corre sem grandes sobressaltos. Aos 61 anos, para além de alguma malandragem que diz por ali andar, e dos seus afazeres diários, o que a apoquenta é a trabalheira que lhe dá manter a casa “em condições e limpinha”, como ela gosta:
Maria Celeste:
A minha casa, está a precisar de pintura por fora, está a precisar de alumínios, porque as madeiras estão a ficar todas empenadas. Eu para ter uma casa em condições eu tenho que estar sempre a gastar dinheiros, sempre a gastar dinheiros. E eu gostava muito de ter sempre tudo muito… E então num apartamentozinho saio à rua, sento-me na esplanada, e não há trabalhos para ninguém, nem despesas.
Não se estaria mal numa esplanada, com o calor abrasador que fazia lá fora. Parecia que estávamos no pico verão, mas outubro já ia com dois dias de avanço. Se há coisa que toda a gente já notou é que as estações estão viradas do avesso.
As placas para caça à rola – que no ano passado, quando conversei com Celeste, tinham a morte legal calendarizada entre agosto e setembro – continuavam ainda no sítio, uns quinhentos metros acima da sua casa. Nada de novo. Estaria tudo normal, não fossem as novidades das últimas semanas.
Maria Celeste:
Que eu tinha dito isso ao meu marido: ‘olha viste ali as marcações, para os homens irem as rolas?’. A nossa ignorância, coitados, mas era o que a gente costumava ver. E ele disse-me assim: ‘Ah mulher, aquilo não é para ir às rolas. Então é para quê? É os homens do gás. Então mas… Olha diz que vêm ali fazer o furo do gás.
Ali, a três minutos a pé da sua casa, no largo improvisado onde ela via as placas que apontavam para a zona de caça estavam, também, do outro lado da rua, desenhos no chão cujo significado, achava ela, seriam meras indicações para os campos onde se podia matar aves. Na verdade, as marcações na estrada, feitas a spray cor-de-rosa fluorescente, significam que, de facto, se vai passar alguma coisa naquele terreno de 2,8 hectares: uma zona ampla com uma área terraplanada que depois se precipita declive abaixo coberta por um manto de eucaliptos. Numa terra onde a pacatez impera, hieróglifos fluorescentes no chão dão sempre assunto.
Maria Celeste:
Foi estas conversas assim. ‘Ai é, então mas não estavam no Cadoiço? Olha diz que aquilo no Cadoiço não deu. Diz que, diz que…
Diz que Celeste não está errada. No Cadoiço, um outro lugar da freguesia de Aljubarrota, a pouco mais de três quilómetros da sua casa, não deu. E não foi por falta de se tentar. Aquilo de que fala, é das sondagens de prospeção de hidrocarbonetos que, nos últimos 20 anos, se realizaram neste pequeno lugar, na tentativa de se encontrar gás ou petróleo passível de ser extraído e comercializado. Que o gás existe não há dúvidas, há muitos anos. Se é possível retirá-lo de lá, de uma forma lucrativa, é que é menos claro. Na indústria petrolífera, há uma regra sagrada: só há certezas na ponta da broca.
É isso que a empresa Australis Oil & Gas Portugal quer fazer mesmo aqui ao lado da casa de Celeste: um furo de prospeção de gás natural, com mais de três quilómetros de profundidade, ao abrigo do contrato de concessão que, a 30 de setembro de 2015, o Estado português assinou com esta companhia australiana. Três anos e dois dias depois, a história é a mesma: às populações ninguém explicou nada, ninguém perguntou nada, ninguém veio bater à porta. E era fácil. Mesmo com os seus afazeres, as pessoas querem saber, falam, abrem a porta, convidam-nos a ficar.
Pedro: Dona Maria Celeste, muito obrigado, por me ter recebido e me ter ajudado.
Maria Celeste: Olhe não posso ajudá-lo mais.
Pedro: Então e o que é que está a fazer para almoço?
Celeste: Olhe o meu marido tem bacalhau de caldeirada, eu tou a fazer, para mim – cheguei do supermercado, venho a chegar pus as compras ali, ainda não as arrumei – estou a fazer para mim feijão verde e um ovo. E agora trago ali bifinhos de vaca, muito tenrinhos, se o meu marido quiser comer um bocadinho de feijão verde e um bifinho grelhado, ou se quiser comer o bacalhau. Eu por mim o feijão verde e o…
Pedro: Já se sustenta.
Maria Celeste: …Chega. Quer almoçar connosco?
Pedro: Não, não quero, obrigado.
Não foi a falta de vergonha que me fez recusar. Foi a urgência de correr atrás de uma história por contar. Nos últimos anos, os olhares estavam quase todos virados para um furo muito mais mediático, ou não estivéssemos a falar da Costa Vicentina e da sondagem que as petrolíferas ENI/Galp queriam fazer ao largo do mar de Aljezur, jóia do turismo Algarvio. Quem contestava o projeto não deu tréguas até o travar.
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Aqui no Fumaça também estávamos atentos. Cobrimos, em direto, a manifestação “Enterrar de vez o Furo, Tirar as petrolíferas do Mar”, convocada por 28 coletivos e cinco partidos políticos que, a 14 de Abril de 2018, levou centenas de pessoas até à Praça de Luís de Camões, na capital, e desembocou nas escadarias da Assembleia da República.
Estivemos também na Rua do Século, em Lisboa, em frente ao Ministério do Ambiente, quando, a 24 de maio, o coreógrafo Rui Horta, Ana Matias, da Plataforma Algarve Livre de Petróleo, João Camargo, do coletivo Climáximo, Eugénia Santa Bárbara, do movimento Alentejo Litoral pelo Ambiente, Graça Passos, do Tavira em Transição e a escritora Lídia Jorge – que vamos ouvir – entregaram nas mãos do ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, uma carta aberta pedindo a sua demissão.
Lídia Jorge:
Eu acho que ele ficou um pouco chocado connosco, com esta nossa atitude, mas a verdade é esta: é que está perdida… está perdida a confiança.
A gota que fez transbordar o copo tinha caído uma semana antes, depois de a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) autorizar o consórcio ENI/Galp a realizar uma sondagem de prospeção de petróleo no mar de Aljezur, a 40 km da costa, sem Avaliação de Impacte Ambiental: “o projeto não é suscetível de provocar impactes negativos significativos“, dissera aos jornalistas Nuno Lacasta, presidente do Conselho Diretivo da APA. No mesmo dia, o Governo deu um sinal de força e pronunciou-se, apoiando a decisão. Anunciou-o numa conferência de imprensa cuja palavra foi dada ao número dois do executivo, Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros. Ao seu lado, mudos e quedos, João Pedro Matos Fernandes, ministro do Ambiente, e Jorge Seguro Sanches, à época secretário de Estado da Energia, pasta pertencente ao Ministério da Economia.
Augusto Santos Silva:
É um compromisso de Portugal, um compromisso firme de Portugal, assumido pelo atual governo, o compromisso de nós sermos neutros em carbono até o ano de 2050. Naturalmente que se trata apenas, nesta fase, de uma atividade de prospecção, uma atividade de pesquisa. É isso em que consiste o furo que agora foi dispensado da realização do estudo de impacto ambiental e – a confirmar-se a existência de reservas de petróleo no mar territorial português – isso contribuirá para a substituição de importações visto que a fatura que a importação do petróleo pesa, hoje, negativamente, na balança comercial portuguesa é muito elevada e naturalmente estando a reduzir a nossa dependência de petróleo nós continuaremos a precisar do petróleo para vários fins, durante algum tempo.
Santos Silva, político experimentado, deu uma no cravo e outra na ferradura: o governo é por uma economia com menos carbono, mas até dava jeito explorar petróleo no nosso mar. Como raposa velha que é, ainda argumentou que apesar do contrato ter sido assinado pelo governo anterior, estava vigente e, em nome do – cito – “princípio de estabilidade contratual próprio de um Estado de direito que somos”, o executivo liderado por António Costa apoiava a continuação da empreitada. Contudo, prometeu:
Augusto Santos Silva:
Por isso mesmo o governo decidiu aprovar, estabelecer, uma moratória até ao final do seu mandato, até o final da presente legislatura para a pesquisa de petróleo, não sendo possível a atribuição de quaisquer novas licenças para este fim
A bondade do anúncio de Augusto Santos Silva ao referir a moratória, sugerindo alguma ação concreta de oposição à exploração de hidrocarbonetos, foi pouco mais do que retórica. Além deste furo de Aljezur, àquela data, continuavam em vigor os contratos de concessão Batalha e Pombal, que obrigam a fazer muito mais furos.
Fazendo fé na promessa ministerial, nenhuma nova concessão será autorizada até às eleições de outubro de 2019. Mas, se há coisa que descobrimos, é que os anos eleitorais são propícios a tomar decisões até ao último minuto.
E aqui deixamos o sol do Algarve e voltamos ao jardim da Celeste, em Aljubarrota. Porque, sem que ela ou qualquer outro seu vizinho, freguês ou munícipe de Alcobaça soubessem, a quatro dias das eleições legislativas de outubro de 2015, o governo de Pedro Passos Coelho vendeu 2.510 km2 direitos de exploração do subsolo nacional, divididos em dois blocos vizinhos: a concessão Batalha e a concessão Pombal. Estas áreas dividem-se por 18 concelhos – Alcobaça, Batalha, Caldas da Rainha, Cantanhede, Coimbra, Condeixa-a-nova, Figueira da Foz, Leiria, Marinha Grande, Montemor-o-Velho, Nazaré, Ourém, Pombal, Porto de Mós, Rio Maior, Santarém, Soure,Tomar – e empresa que as comprou é a Australis Oil & Gas Portugal, a petrolífera australiana que detém durante 8 anos (prorrogáveis por mais 2), os direitos de prospeção, pesquisa, desenvolvimento e produção de petróleo e gás nestas zonas.
Concessões Batalha (rosa) e Pombal (azul), concelhos afetados (preto) e locais dos furos.
Ao mesmo tempo que o ministro Augusto Santos Silva falava em moratória, já nós andávamos de olho nestes contratos que continuavam em vigor, embora só se ouvisse falar da concessão Batalha, onde se localiza o furo que querem fazer ao lado da casa de Celeste, em Aljubarrota.
Entre os dias 27 de março e 11 de maio de 2018, tinha sido colocado em consulta pública um documento chamado “Apreciação prévia de sujeição a procedimento de Avaliação de Impacte Ambiental da Sondagem de Prospeção e Pesquisa na Área de Concessão Batalha”. Traduzindo: perguntava-se às pessoas se achavam que deveria ser feito um estudo de impacte ambiental a um furo de prospeção, ou seja, um furo de teste para pesquisar e depois decidir avançar ou não para um furo de exploração comercial.
Por lei, passados 20 dias do fim da consulta pública, a Agência Portuguesa do Ambiente, que é a autoridade nacional em Avaliação de Impacte Ambiental (AIA), deveria ter emitido um parecer sobre as intenções da petrolífera com base nos os documentos submetidos pela empresa e no relatório da consulta pública. Só que o parecer apareceu fora de prazo, foi emitido a 5 de junho, quando o prazo limite era 31 de maio. E só foi tornado público online a 3 de julho, após um email que o Fumaça enviou questionando sobre estes atrasos, quando, por lei, isso devia ter sido feito até 10 de junho, ou seja, um atraso de quase um mês.
Mesmo assim, os documentos oficiais não eram muito esclarecedores. Segundo a APA, era impossível pronunciar-se sobre os impactos ambientais de um furo cuja empresa que o queria fazer não dizia onde era.No parecer lia-se, citando, “o desconhecimento da localização exata do furo impede a plena caracterização do projeto e do local, aspetos determinantes para que possam estar reunidos todos os elementos necessários para aferir da aplicabilidade do regime jurídico de AIA”.
Fica por perceber como é que a APA permitiu que fosse aberta uma consulta pública com base num documento incompleto, que não cumpria um dos critérios básicos deste tipo de procedimento, que é a descrição do local do projeto. Como a própria APA concluiu, não sabendo o local exacto, não se percebe como havia condições para sequer dar início à consulta pública.
Fizemos essa e muitas outras perguntas à Agência Portuguesa do Ambiente, um organismo público tutelado pelo Ministério do Ambiente mas, até hoje, nenhuma resposta oficial nos foi dada. A APA não só não responde a nenhum dos vários emails que lhes envio desde julho, como as pessoas do departamento de relações com a imprensa mentem reiteradamente de cada vez que, ao telefone, peço esclarecimentos ou que me respondam às perguntas que envio: prometem fazê-lo, mas nunca o fazem. A agência está em blackout com o Fumaça.
Que o furo seria feito em Aljubarrota, sabia-se desde finais de março, quando a consulta pública fora aberta. Mas onde era exatamente parecia difícil de descobrir. Que razão haveria para a empresa não indicar o local num documento oficial? Já seria dona de terrenos? Por quanto teria comprado? Quem tinha vendido? Saberia a vizinhança de tais negócios? E os donos das terras, saberiam o que se ia lá fazer? Se se discutia a necessidade de um estudo de impacto ambiental que consequências provocaria na vida das pessoas, animais e plantas?
Celeste bem gostava de saber.
Maria Celeste: Não vale a pena estar aqui a dizer ‘não quero isto, não quero aquilo, não quero aqueloutro’. Nós queremos é desenvolvimento no nosso país.
Pedro: E acha que isso vai trazer desenvolvimento?
Maria Celeste: Não sei, não sei, não faço ideia. Eu não sei, não tenho conhecimentos.
Foi para tentar responder a estas perguntas que durante mais de meio ano investigámos estas concessões. Lemos relatórios, contratos, estudos. Falámos com dezenas de pessoas, fizemos centenas de quilómetros em viagens. “O jardim da Celeste” é o primeiro episódio da série “Dá-lhe gás! ”.
Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça, eu sou o Pedro Miguel Santos.
Parte I – Em busca do terreno
Como uma grande parte das pessoas que hoje vivem ou trabalham em Lisboa, onde fica a redação Fumaça, não sou de cá. De Alfacinha só tenho o viver. A terra a que chamo minha é no distrito de Leiria, uma aldeia do concelho de Porto de Mós, nos limites do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros. Entre a cozinha onde Celeste ajeitava o almoço e a cozinha da minha mãe – que por acaso também é Celeste – distam 10 quilómetros, em linha reta. O sítio do futuro furo de gás natural fica a 15 minutos, de carro, da rua onde eu aprendi a andar de bicicleta quando era garoto. E o que percebi ao investigar este assunto é que toda a área da casa da minha mãe, a minha casa, o quintal, toda a aldeia, tinham também sido concessionados pelo Governo.
Por isso, não me saía da cabeça o secretismo sobre o local onde a Australis queria furar.
Pedro: O senhor sabe onde é que é o terreno?
José Severino: Sei, mas não vou… eles pediram para não divulgar, não vou divulgar ainda.
Pedro: Não me pode dizer. Muito bem.
José Lourenço Severino é presidente da Junta de Aljubarrota e já vai no quarto mandato à frente dos destinos da freguesia, eleito as duas últimas vezes à cabeça de uma lista de independentes. Quando tivemos esta conversa, a 2 de outubro, ainda faltava um mês para que a empresa anunciasse oficialmente o local do furo. José Lourenço é um homem de palavra. Pediram-lhe para não dizer, não disse.
Pedro: E… há outra maneira de eu saber ou não?
José Severino: Só com a Australis. Se eles disserem… não vejo outra maneira.
Pedro: Mas, só para eu me situar, fica na mesma área que eles tinham apresentado?
José Severino: Sim, sim, sim. Na mesma área. Eles não indicaram foi exatamente o sítio certo. Mas fica na mesma área, fica na mesma área.
“A Australis, pré-selecionou uma área que compreende uma área de aproximadamente 1km de raio, dentro da qual o poço estará localizado. Salienta-se que embora exista esta área selecionada na qual será definido o local da sondagem, não existe nesta fase uma localização definitiva e exata desse local.” Foi a ambiguidade desta frase, contida no documento de avaliação prévia que foi submetido a consulta pública que fez a APA era considerar impossível pronunciar-se sobre os impactos ambientais. O que aumentou ainda mais a curiosidade sobre as intenções da empresa.
José Severino:
Eles só passaram aqui por cortesia. Só me disseram: ‘olhe senhor presidente, nós já adquirimos o terreno, o terreno já está decidido, já está comprado, já fizemos a escritura pública e tal’. E foram-se embora. ‘E cá voltaremos um dia mais tarde’, foi só isso.
Na Câmara Municipal de Alcobaça – onde por acaso José Severino trabalha, há mais de duas décadas, e é encarregado de parque e viaturas das oficinas municipais. O seu patrão, o Presidente, Paulo Inácio, eleito para o seu último e terceiro mandato com as cores laranjas, também diz saber de pouco.
Pedro: Mas já se sabe, não é? Mas já se sabe o sítio.
Paulo Inácio: Uh não. Quer dizer, eu sei da informação que a Australis pediu para falar com o senhor presidente de junta de Aljubarrota, para ir escolher terrenos, para ir ver se sabem o local, mais ou menos que querem.
Pedro: Mas ainda não tem conhecimento de que haja um terreno?
Paulo Inácio: Eu não tenho conhecimento de que haja algum terreno arrendado ou comprado, não tenho conhecimento disso. Nunca mais tive nenhum contacto com a Australis.
Por mais estranho que pareça, o autarca dizia não saber.
Pedro: Olá, boa tarde.
Carla Sousa: Sim, boa tarde.
Pedro: Desculpe lá, eu vi-a agora entrar. A senhora trabalha aqui?
Carla Sousa: Sim, sim.
Carla Sousa prepara-se para abrir o café que explora no Grupo Recreativo Brites de Almeida, uma associação fundada em 1965, mesmo à beirinha de Estrada Nacional 8, no centro de Aljubarrota. Nesta terra, toda a gente sabe quem é Brites de Almeida mas país fora talvez não seja assim tão claro que este é o nome da mitológica padeira que em 1385 terá morto sete soldados espanhóis escondidos no seu forno. Os militares fugiam à derrota provocada pelas tropas portuguesas de D.João I, Mestre de Avis, na Batalha de Aljubarrota, ocorrida a 14 de agosto. A bem da exatidão geográfica, diga-se que essa luta não aconteceu nos limites da Aljubarrota dos dias de hoje mas, antes, a cerca de 10 quilómetros nordeste, em São Jorge, um lugar no concelho de Porto de Mós, onde anos mais tarde se ergueu uma pequena capela para assinalar o feito.
Bairrismos à parte, voltemos à conversa.
Pedro: Chamo-me Pedro Santos, sou jornalista. Estou aqui a tentar perceber onde é que vai ser feito o furo de gás aqui em Aljubarrota. Já ouviu falar disso?
Carla Sousa: Já ouvi falar, mas também não sei, não sei. Nem sei quem será a pessoa mais indicada para falar sobre isso.
Pedro: Então, achava que era interessante vir para cá a exploração de gás?
Carla Sousa: Eu acho que sim, eu acho que sim, que era bom. Era mais movimento e, pronto, acho que era bom, porque isto está muito parado. Aljubarrota está muito parado. Tem muita população idosa, e os mais novos, pronto, emigraram, foram para longe arranjar trabalho.
Pedro: Não tem receio das consequências ambientais, que isso possa ter, a questão…
Carla Sousa:Não há bela sem senão, né? Não há bela sem senão.
Pedro: Mas acha que uma coisa compensa a outra?
Carla Sousa:Sim, eu penso que sim, eu penso que sim.
Pedro: Quer dizer, para si, não é?
Carla Sousa: Para mim, para mim, para mim, pronto, para o comércio. Porque isto, realmente, está muito parado. Agora as consequências… não sei. Pedro: E também ninguém veio falar sobre isso.
Carla Sousa: Também ninguém veio falar sobre isso. Não sei de nada e, nós aqui, penso que ninguém sabe de nada.
Ainda assim, mesmo sem saber de nada, Carla ajudou-me.
Carla Sousa: Há um corte à direita, o primeiro corte à direita é logo Cadabosa. Enfia-se ali pra dentro, é logo Cadabosa. Depois ali pergunta, pessoas por ali na rua.
Pedro: Ok. ok. tá, bem, tá, bem.
Pedro: Disseram-me que tinham vindo falar com o seu marido, para virem furar aqui ou para comprar um terreno ou para poderem furar aqui naquilo que era vosso.
Senhora em Aljubarrota: Por enquanto não sei de nada.
Pedro: Pronto.
Senhora em Aljubarrota: Não sabemos de nada.
Pedro: Mas ninguém veio falar com ele?
Senhora em Aljubarrota: Não, não, não, não.
Pedro: É boato?
Senhora em Aljubarrota: É boato, é boato. E não estou nada interessada, também lhe digo já.
Funcionária café Aljubarrota: Que eu ouvisse falar, não. Também já ouvi falar nessa exploração, mas também não sei em que sítio.
Popular no Centro Comercial: Não faço bem ideia, sei que é ali para baixo para o Cadoiço, mas onde…
De pergunta em pergunta, batendo porta aqui, porta acolá, consegui chegar à conversa com alguém que não só sabia onde se situava o terreno, como estava por dentro dos meandros do negócio. Vamos chamar-lhe Manuel, nome fictício. Só aceitou falar com a condição de não divulgar a sua identidade, por isso modificámos um pouco a sua voz. Há mais de meio século que mora em Aljubarrota.
Manuel: Não fui eu que vendi mas houve alguém que já vendeu.
Pedro: Claro.
Manuel: Portanto, o furo, se houver autorização ele vai ser feito na mesma.
É verdade que Manuel não vendeu, mas podia ter vendido. Não fosse ter desconfiado do negócio e da proposta que lhe foi feita.
Manuel: Eles só me falaram em energias renováveis, não falaram nada em exploração de gás. Eu depois, posteriormente, passou-se um mês, dois, eles depois tornaram a telefonar realmente se eu estava interessado. E eu ‘Ah, podemos falar, podemos falar’.
Pedro: Mas aí o senhor não lhes disse que já sabia que era para gás?
Manuel: Mas eu também ainda não sabia nessa altura, eu também ainda não sabia. Só depois, uns oito dias ou quinze antes de eles me telefonarem, a perguntar realmente qual é que era o valor que eu queria é que aí é que eu soube, nesse espaço de tempo é que eu soube realmente que era para exploração de gás. Foi quando eu lhe disse, estou interessado, sim senhora, mas dão-me 200 mil euros.
Pedro: E?
Manuel: E eles não me disseram nada, ‘vou falar com o meu cliente e depois digo-lhe alguma coisa’.
Pedro: Mas quando o senhor pediu os tais 200 mil [euros] à Australis, aoadvogado, disse-lhe, confrontou-o por ele ter mentido?
Manuel: Não, não, não o confrontei com nada. Ele é que se apercebeu bem da… E mesmo assim depois de…
Pedro: Ele alguma vez disse a verdade?
Manuel: Nunca me disse a verdade.
Pedro: Nunca disse que era para fazer um furo de gás?
Manuel: Nunca disse que era para fazer um furo de gás. Nunca disse.
Se o negócio ficou a meio caminho, não foi por a proposta da Australis ser desinteressante.
Manuel: Até os números até eram tentadores, um terreno aqui numa zona destas…
Pedro: Era isso que lhe ia perguntar, 80 a 100 mil euros…
Manuel:Era bem pago.
Pedro: É muito bem pago para isto…
Manuel: É muito bem pago…
Pedro: Porque são terrenos rurais…
Manuel: Não dá para construir onde era supostamente para ser o furo. Não dá para construir, era muito bem pago.
No dia em que esta conversa teve lugar, a 2 de outubro, a Australis não só já era dona do terreno, como já o tinha pago há algum tempo. Comprou-o a Lourenço Coelho, que fui encontrar num lar, às portas de Alcobaça.
Pedro: Olá boa tarde, o meu nome é Pedro Santos, eu sou jornalista. Ando à procura de um senhor chamado Lourenço, que está cá alojado, que é emigrante. Gostava de falar com ele, para confirmar uma informação sobre um terreno.
Funcionária lar: E ele tem conhecimento que você vem cá?
Pedro: Não.
Funcionária lar: Não.
Pedro: Eu não tenho maneira de falar com ele.
Funcionária lar: Está bem, só um bocadinho.
Pedro: Disseram-me que ele estava aqui e eu tentei ir a casa da esposa, toquei à campainha, mas não estava lá ninguém.
Funcionária lar: A esposa vem cá todos os dias, é capaz de estar aí.
Pedro: Ah é?
Funcionária lar: Dê-me só um minutinho.
Pedro: Pronto, então, se calhar o melhor até é falar com a esposa, não sei.
Funcionária lar: Só um bocadinho, sim. (…) Eles devem estar até aqui fora.
Pedro: Ah é?
Funcionária lar: Oh o casal maravilha…
O casal maravilha estava mesmo a assoalhar. A esposa, Alcinda Brites, sentada num banco. Ao lado, Lourenço, numa cadeira de rodas. Quando pergunto sobre o negócio, desvia o assunto, diz que não sabe de nada, que o terreno não é dele. A companheira não vai na mesma cantiga, conta que ele vendeu. Ele manda-a calar. Fica nervoso, pede para ir à casa de banho e corta a conversa. Ela, nas costas dele, entre dentes, nega tudo o que o marido disse e confirma a venda.
Mas, na verdade, nenhuma destas duas pessoas saberia tanto como António André, primo de Alcinda. Foi ele que tratou de tudo. Combinei encontrar-me com ele no dia seguinte. Liguei antes.
Pedro: Fiquei de vir aqui ter consigo. Está por aqui?
O som não ficou nas melhores condições. Não estranhem o que vão ouvir a seguir.
António André: Olhe eu estou no Casalinho, mas eu tenho uma má notícia para si…
Pedro: Então?
António André: Porque eu falei com o engenheiro esta manhã, tinha aqui umas contas a haver com eles e aproveitei, não é, e disseram: ‘não, você não dá contactos a ninguém, absolutamente a ninguém.’
Pedro: Mas com o engenheiro de quem, lá da Australis?
António André: Não, eles estão em Portugal, estão em Cascais, é um advogado que trata cá dos assuntos deles, é um advogado e um engenheiro.
Pedro: Ok.
António André: E então tiveram lá em conferência e: ‘não se senhora, não se dá contactos a ninguém, nem informações.
Ainda assim, António aceitou encontrar-se comigo, estávamos ali mesmo ao lado um do outro. Parámos à beira da estrada a trocar dois dedos de conversa.
António André: Nós fizemos, vendemos o terreno e sem nunca saber quem é que ia comprar, fui tudo por intermédio deste doutor Vasco, que é ali de Cascais, mais o engenheiro Rui. Mas… pensávamos que era para eles… Nunca pensámos que… Só depois, quando foi no ato da escritura é que vimos que era empresa “óleo e não sei quê” da Austrália.
Pedro: Mas eles quando os contactaram qual foi, mostraram algum interesse em comprar o terreno?
António André: Porque nós tínhamos lá uma placa [a dizer que estava] à venda: ‘vende-se’.
A placa esteve lá muitos meses. Dois homens falaram com ele, tinham-na visto. Perguntaram quanto custava a terra e o negócio fez-se, quase automaticamente.
António André: Eu só soube, na altura, que era realmente uma empresa petrolífera quando foi no ato da escritura.
Pedro: Mas já fizeram a escritura, então?
António André: Tudo.
Pedro: Está vendido?
António André: Está vendido, ninguém lá pode mexer.
Pedro: Então e foi quando isso, isso foi quando?
António André: Ah já foi há uns dois meses, se calhar.
Pedro: Há dois meses, já?
António André: Sim, sim.
Pedro: Poça.
António André: Pois já, pois já.
Pedro: Então e pode-me dizer onde é que fizeram a escritura ou não?António André: Epá não posso adiantar mais que eu estou avisado, não posso dar informações.
Pedro: Não pode falar.
António André: Não pode.
A placa esteve lá muitos meses. Dois homens falaram com ele, tinham-na visto. Perguntaram quanto custava a terra e o negócio fez-se, quase automaticamente.
No dia vinte e seis de julho de dois mil e dezoito, no Cartório Notarial sito em Alcobaça, na Rua Mercedes e Carlos Campeão, número cinco, rés-do-chão, perante mim, Ana Maria Cunha de Almeida, respectiva notária e Oficial Público, compareceram como outorgantes…
Começa assim a escritura de compra e venda. Na realidade, a Australis comprou dois terrenos, um ao lado do outro. O primeiro, mais pequeno, com 3.800m2, custou 7000 euros; o segundo, bem maior, tinha 24.300m2 e custou 43.000 euros. Resumindo, uma área mais ou menos equivalente a três campos de futebol custou 50 mil euros, pagos em duas tranches iguais, metade a 18 de maio e a outra metade no dia da assinatura do contrato.
António André: Mas se eu soubesse para o que era, isso tinha puxado mais, tinha.
Pedro: Ai era?
António André: Então não?! Então a gente sabia lá que ia aparecer uma empresa destas? Não.
Pedro: Ah, então eles não lhe disseram para o que é que era?
António André: Nunca, nunca, nunca.
Pedro: E se dissessem o senhor…
António André: Ah se calhar, tomávamos outras atitudes, não é? Se calhar, não é?
Pedro: E tinha vendido ou não? Sabendo o que era.
António André: Certamente sim, certamente. Porque o dono daquilo está num lar, pá, precisa de dinheiro, precisava de vender. Vender, vendia sempre.
A história bate certo com a versão contada por Manuel, o tal que podia ter vendido e não vendeu. A ele tinham-lhe dito que era uma empresa australiana de energias renováveis que queria investir na zona. A António André a versão contada foi, apenas, a de que havia umas pessoas australianas a quem aqueles hectares dariam jeito. Nunca terá sido dito que o objetivo era furar para pesquisar e, eventualmente, explorar gás.
Questionámos a Australis sobre a veracidade destas informações. Perguntámos quem foram as pessoas responsáveis pelo processo de compra do terreno adquirido em Aljubarrota. Se tinham sido, de facto, o advogado Vasco e o engenheiro Rui; se, de alguma forma, a Australis lhes tinha dado indicações para, durante o processo negocial, não divulgarem o fim verdadeiro a que se destinava o terreno ou, mais grave, se os tinha instruído a dizerem que aquela terra era para um projeto de energias renováveis.
Desde dezembro que insistia com a Australis para obter respostas concretas a um email que lhes enviei. Era extenso – 22 perguntas -, detalhado e questionava diretamente os visados, pedindo entrevistas presenciais, que mais tarde tive oportunidade de reforçar, pessoalmente.
A resposta chegou no final de fevereiro. Curta e grossa. Sobre a compra dos terrenos declararam:
“A Australis adquiriu estes terrenos através de negociação e a Empresa não comenta esses processos. Jamais a Empresa ou os seus representantes induziram em erro as contrapartes nas transações realizadas. Todas as aquisições, registos e comunicações requeridas por lei foram realizadas e estão disponíveis para consulta pública.”
Parte II – Mohave
Quando começámos a analisar os documentos sobre o furo de Aljubarrota procurávamos um contacto que nos permitisse chegar a alguém responsável pelas operações da Australis, em Portugal. Que explicasse as intenções da empresa, falasse do projeto. E, sobretudo, que pudesse esclarecer que razão havia para não se indicar o local exato da perfuração. No documento que esteve em consulta pública, na primavera de 2018, a morada da Australis Oil & Gás Portugal, Sociedade Unipessoal Lda., – este é o seu nome oficial – situava-se no nº 129-B, da Avenida Liberdade, em Lisboa. Encontrei um número, do outro lado atendeu um segurança que, a custo, me deu um email e um outro número de telefone.
Eram de uma sociedade de advogados localizada no rés do chão do número 11, da Praça do Príncipe Real, em Lisboa – a VST Advogados. “V” de Vasco, “S” de Sande e “T” de Taborda. Vasco de Sande Taborda é o consultor jurídico da Australis em Portugal, com poderes de procuração. Isso quer dizer que a pode representar juridicamente. Dá a cara pela empresa e foi ele que negociou e assinou a escritura de compra e venda dos terrenos em Aljubarrota. Estava presente quando a petrolífera assinou os contratos com o Estado português, em 2015. E muitos anos antes, foi também uma das caras de outra petrolífera, a Mohave Oil & Gas Corporation.
Esta empresa norte-americana, fundada em 1993, com sede no estado do Texas, chegou a Portugal em 1994, adquirindo licenças de uma outra, a Heritage Exploration and Production Company. Um ano depois, a Mohave era única petrolífera com licenças de pesquisa ativas e foi ganhando novas áreas, em Monte Real, Rio Maior, Figueira da Foz, Torres Vedras, Marinha Grande e Aljubarrota.
Os anos foram passando e mais direitos foram atribuídos a outras companhias petrolíferas mas nenhuma parecia ser tão persistente como a Mohave. “No final de 2006, apenas uma companhia operava em Portugal, a Mohave Oil & Gas, detentora de 2 concessões no onshore da Bacia Lusitânica.” Esta informação consta do “Livro verde sobre a prospeção, pesquisa, desenvolvimento e produção de hidrocarbonetos em território nacional”, publicado pela Entidade Nacional para o Mercado dos Combustíveis. Diz também que em Aljubarrota, em dois furos de pesquisa feitos, havia “fortes indícios de gás”, já na região de Torres Vedras as perfurações procuraram petróleo e em duas sondagens ele apareceu em quantidade tal que se fizerem até testes de produção, simulando a viabilidade de uma futura exploração comercial.
A crença de que a zona Centro-Oeste seria a galinha dos ovos de ouro negro fez a Mohave abrir uma representação permanente em Lisboa. Desde 16 de julho de 2007, a sede passou a ser o primeiro andar do número 11, da Praça do Príncipe Real. No mesmo prédio, por cima do escritório de Vasco Taborda. O advogado era quem tratava das burocracias, contratos e demais obrigações legais em nome do fundador – Patric H. Monteleone. Hoje falecido, Monteleone era doutorado em geologia e fez toda a carreira no mundo do petróleo: trabalhou na BP como geólogo sénior e passou por outras companhias relacionadas com óleo. Foi vice-presidente da Heritage Exploration – a tal empresa que cedeu os direitos à Mohave, em 1994 – e era também vice-presidente da Porto Energy Corp., a empresa mãe, dona da Mohave.
A fezada nas oportunidades de negócio era tal que, na constituição da empresa, Monteleone regista duas moradas: uma no Texas, em The Woodlands – um mega projeto imobiliário criado por um empresário do petróleo – e outra na Casa da Padeira, um turismo rural em Aljubarrota, mesmo à beira na Nacional 8. Na verdade, três semanas depois de aberta representação, a 3 de agosto de 2007, Taborda já estava a representar Monteleone na sede da Direcção Geral de Energia e Geologia para assinar, por exemplo, o contrato de concessão “Rio Maior 2”.
Depois de vários anos de promoção e divulgação do potencial petrolífero do país junto de empresas e da indústria petrolífera, em conferências, seminários e exposições internacionais, 2007 tinha um bom para o Estado Português, no que toca à atração de investimento estrangeiro. Foram assinados 12 contratos de concessão e a Mohave, ganhou cinco deles. Ficou a controlar sete áreas, todas em terra, sendo a segunda empresa que controlava mais concessões neste momento. A Galp era a que tinhas mais participações, oito, em conjunto com outras petrolíferas como a Repsol, a Petrobras e a Partex, todas no mar. Em terra juntou-se com a Mohave para explorar o bloco “Aljubarrota-3”.
Daqui para a frente, a Mohave não parou.
David:
O primeiro gajo que vem da Seis Pros,para falar com a equipa de pessoas que iam contactar com outras, de relações públicas, vamos chamar-lhe assim, é um tipo canadiano, e ele fala-nos das maravilhas do petróleo.
Este é David – vamos chamar-lhe assim porque o acordo de confidencialidade que assinou com a Mohave não lhe permite falar abertamente do que fazia. Acabadinho de sair da universidade, cheio de ideias novas, este engenheiro florestal foi rapidamente envolvido no projeto. A Mohave contratou a americana Seis Pros, para coordenar o estudo geosísmico, que por sua vez contratou a Associação dos Produtores Florestais da Região de Alcobaça, para organizar uma parte do trabalho no terreno que, por sua vez, contratou David para o fazer acontecer.
David:
Sim, a Mohave tinha uma ideia industrialista e a Seispros também industrialista e desenvolvimentista da coisa, no sentido em que os gajos dizem que: ‘epá, vocês vão pertencer a uma geração que vai mudar Portugal. Quando nós encontrarmos petróleo, vocês vão ser a Dinamarca’. Era a onda deles.
Aos 24 anos, David ganhava muito bem e, à época, isso bastava-lhe. “Estava porreiro”, como me disse. Não pensava muito nas vantagens ou desvantagens deste tipo de indústria. Tinha trabalho. Mais houvesse, mais gente se empregava.
David:
Eu num momento estava a ganhar 900€ por mês, e no momento a seguir estava a ganhar 2500€ e a gerir uma equipa de 20 pessoas, com carro.
Em 2008, a Mohave iniciou um ambicioso estudo geosísmico em 3D, no subsolo de Torres Vedras, Mafra e mais tarde Aljubarrota. A intenção era rastrear o subsolo de mais de 50 mil propriedades, numa área de quase 300 quilómetros quadrados.
David: Como é que tu fazes um estudo de geosísmica? Tu emites um sinal, ou seja emites um pancada, uma onda sísmica, e tens um conjunto de microfones que ouvem a captação dessa onda sísmica, certo? Exactamente um microfone.
Pedro: A ressonância.
David: Exacto. E conforme os estrato geológico onde essa onda bate, ela, primeiro, volta acima mais rapidamente quanto mais perto é essa nova parte geológica, e depois muda de sinal conforme o tipo de material que ultrapassou.
Esta espécie de radiografia minuciosa é necessária para se perceber o tipo de rocha que há debaixo da terra, que forma e extensão têm essas camadas e se, entre elas, há formações que possam conter petróleo ou gás.
Para isso, tem de se criar uma malha imaginária, dividida em quadrículas, sobre a qual se colocam, em determinados pontos, receptores sísmicos, também chamadas geofones. Um camião a que na gíria petrolífera se chama “thumper” (do inglês “thump”, esmurrar, bater) emite poderosas pancadas secas na terra, como se fosse um martelo gigante, provocando vibrações sísmicas. Os geofones funcionam como microfones das vibrações e estão todos ligados, por cabos, a uma carrinha que grava o que é captado e permitem ir desenhando o que está debaixo de terra, ponto a ponto, quadrícula a quadrícula. Mais tarde, essas imagens são juntas, como se cada uma fosse um pixel, e fica-se com a fotografia, a três dimensões, do que está por debaixo do pés. Nos dias de hoje, esta informação é fundamental para começar uma exploração petrolífera.
David:
A primeira parte é a geofísica, eles com a geofísica identificam quais é que são as zonas mais prováveis e menos difíceis de furar. E depois, há um provérbio dizem eles no petróleo, que é: “o petróleo só se encontra na ponta da broca.”
Para fazer o estudo era necessário espalhar os fios, os geofones, deixar entrar as máquinas que emitem e captam as pancadas no solo e, para isso, era preciso ter a autorização dos proprietários. Era aqui que entrava a equipa que David coordenava. Tinham de obter o ok de cada um dos donos dos terrenos. Só assim os operários que manobram as máquinas podiam entrar nas propriedades e realizar os trabalhos necessários.
David:
As câmaras nunca puseram nenhum problema e achavam boa ideia, as juntas também. Os proprietários também não tinham nenhuma dificuldade com aquilo naquele ponto. Quer dizer, havia proprietários muito desconfiados, e esses não deixavam entrar ninguém, mas a maioria das pessoas não se interessa. Dizia: “não há problema. Vocês não vão estragar nada. Têm aqui o contacto de casa caso haja problemas”. Pronto. E depois havia muita gente chateada quando havia os tais pneus furados, aí chateava-se mesmo muita gente, e eles pagavam rapidamente. Mas não havia ninguém a achar que havia um problema ecológico em Portugal ou que havia de haver um problema com o petróleo. Naquela altura, há 10 anos atrás, o petróleo era bem visto. Não havia nenhuma oposição.
Ana Cordeiro: O meu nome é Ana Isabel Cordeiro. Tenho 35 anos e sou daqui de Aljubarrota.
Pedro: E trabalhaste para a Mohave.
Ana Cordeiro: Exactamente, sim. Já há algum tempo atrás.
Se o David, que ouvimos mesmo agora, coordenava as pessoas que pediam autorizações aos proprietários para se poder fazer o tal estudo geofísico, Ana era “permissora”, o nome que internamente davam a quem ia, de facto, falar com as pessoas.
Pedro: E como é que foi trabalhar, como é que foi essa experiência?
Ana Cordeiro: Para mim foi bastante bom. Porque monetariamente recebemos muito bem. Também trabalhávamos imenso, é verdade. Trabalhávamos nos fins de semana, não tínhamos dias de folga, por opção. Se quisesse tinha, quem não quisesse não tinha.
Pedro: O que é que era ganhar bem?
Ana Cordeiro: Para quem estava habituada a tirar o ordenado mínimo, na altura tirávamos perto de 2000.
Pedro: 2000 euros?
Ana Cordeiro: Nós da parte da permissão. Da parte dos colegas do terreno trabalhavam mais, tenho de admitir isso. E se calhar era mais duro, era um trabalho mais físico, e se calhar não ganhavam tanto.
Pedro: Isso a permissão era exactamente o quê? Ou seja, o que é que tu concretamente fazias?
Ana Cordeiro: Nós tínhamos umas imagens e tínhamos as caixas que iríamos utilizar e tínhamos de falar aos proprietários sobre isso. Ou seja, para conseguirmos que os proprietários nos deixassem entrar nos terrenos.
Pedro: Como é que sabiam quem é que eram os proprietários?
Ana Cordeiro: Nós, cada um de nós, tínhamos uma zona e davam-nos uns mapas. E nós tínhamos de ir à procura dos terrenos e dos donos dos mesmos.
Pedro: Andavas a bater de porta em porta.
Ana Cordeiro: Exactamente. Falávamos com os vizinhos, com os amigos, por telefonemas, tentávamos arranjar números, para chegar às pessoas.
Pedro: E o que é que tu lhes dizias?
Ana Cordeiro: Falávamos sobre o projecto. Havia muita gente que aceitava, muita gente que não.
Pedro: Havia pessoas que não aceitavam?
Ana Cordeiro: Claro que sim.
Pedro: Mas porquê? De que é que elas tinham receio?
Ana Cordeiro: Tinham receio que estragássemos o terreno, claro. Há muita gente que vivia disso.
Pedro: Ah, por serem terrenos cultivados.
Ana Cordeiro: Agrícolas, exatamente. Ou mesmo por causa dos animais. Tinham medo que as vibrações afectassem de alguma forma os animais. E alguns não aceitavam.
Apesar dos inconvenientes, muita gente saiu a ganhar. Aos proprietários a quem alguma coisa era estragada a empresa pagava depressa, sem complicar ou fazer grandes perguntas. E a quem tinha trabalho, em plena época de crise e austeridade, pagava salários acima da média. Na altura, Ana estava desempregada, tinha acabado a licenciatura em design de moda, no Porto, e regressou à casa de família.
Ana Cordeiro:
Pessoas da minha idade aqui há muito poucas. Foram todas ou para cidades ou para fora do país. E nessa altura, se calhar, isso não acontecia tanto. Porque a maioria das pessoas que trabalhavam no projecto eram pessoas entre os 20 e os 45, mais ou menos. (…) Foi uma altura muito gira e conheci pessoas muito porreiras e ainda hoje falo com eles. Foi muito interessante. E se houvesse outro, provavelmente se tivesse oportunidade, não me importava de voltar. Não só pelo nível… pelo dinheiro, é óbvio. Mas também pelo trabalho em si, porque é um trabalho muito livre.
Falei com a Ana Isabel no centro da Aljubarrota, sentados num banco de rua, mirando o Pelourinho e a Torre Sineira. Do outro lado, além da junta, dos Correios, da farmácia, e do multibanco, ao um canto, fica o Centro Comercial Pelourinho. É um daqueles shoppings dos anos 80/90 que hoje estão praticamente vazios, apenas com uma duas ou três lojas a funcionar. Ainda assim, ponto de passagem para quem anda no centro da vila e, sem grande esforço, encontra-se sempre alguém com uma história para contar.
Aljubarrotense:
De manhã era tipo tropa: uma parada, eles a falar para a gente.
Isto pode parecer estranho, mas não vos consigo apresentar este homem. Estava no centro comercial a tentar descobrir quem teria trabalhado com a Mohave e ele apareceu. Meteu conversa com uns conhecidos, com quem estava falar, disse-me o que tinha a dizer, e foi-se embora tão depressa como tinha chegado. Nem o nome lhe consegui perguntar.
Aljubarrotense: Um chefe deles falava para um dos nossos, normalmente era [para] um gajo da Nazaré – sabem inglês, andavam nos barcos – depois [ele] traduzia para nós todos. E à noite, só se houvesse reunião isso era para a descasca, algo tinha corrido mal.
Pedro: E trabalhava lá muita gente daqui, ao que o senhor diz
Aljubarrotense: Muita gente, grande parte era tudo daqui, Nazaré, Valado, muita gente da Nazaré. As carrinhas saiam do Chão Pardo. Eu também levava um carrinha. Saímos ali nas bombas da Repsol do Valado, nas bombas, auto-estrada, saímos ali, carregar pessoal, enquanto houvesse pessoal, e depois direito a Torres Vedras.
O sistema de trabalho, fosse em Aljubarrota ou em Torres Vedras, ao longo das várias campanhas de sondagens sísmicas, tinha uma organização clara: a Mohave subcontratava externamente os serviços de que precisava. As profissões especializadas na geologia ou engenharias eram desempenhadas por empresas estrangeiras com trabalhadores estrangeiros, norte-americanos ou canadianos, no caso da Seis Pros. A companhia romena Prospectiuni encarrega-se do levantamento geofísico, tinha as máquinas, os fios, o material técnico. Já a Associação dos Produtores Florestais da Região de Alcobaça, a Ambifloresta e a Checklane (empresas locais) eram responsáveis pelo transporte de pessoal, identificação dos proprietários dos terrenos e autorizações para poderem aí trabalhar.
Pedro: E eles pagavam bem?
Aljubarrotense: 2000€ por mês.
Pedro: A cada homem?
Aljubarrotense: A cada homem, a cada um de nós, da gente. Dois mil, dois mil e picos. Agora os profissionais imagine quanto é que eles não ganhavam. Porque os chefes eram profissionais. Imagine quanto é que eles não ganhavam. Esses gajos deviam ganhar muito dinheiro.
Pedro: Então acha que isso foi bom?
Aljubarrotense: Foi, então.
Pedro: Para a região, para as pessoas, não sei, estou-lhe a perguntar.
Aljubarrotense: Ah foi, ganhávamos di.
Fossem ou não trabalhadores diretos da Mohave, a verdade é que o impacto económico destas campanhas de mapeamento sísmico foi real e concreto para quem morava nas regiões envolvidas. Não consegui confirmar um número concreto, mas todas as pessoas com quem falei diziam que tinham trabalhado com “muita gente” – houve quem falasse em 50, 100, 300. Claramente a ganharem muito acima da média do país e, sobretudo, do que se pagaria usualmente naqueles lugares para um trabalho que exigia poucas qualificações. Para elas, o petróleo ou o gás – mesmo que nunca se tenha chegado à fase das perfurações – significou bons salários, durante um certo tempo.
Parte III – Geologia
Alcobaça tem o fado de ter sido o concelho onde foi feita a primeira exploração de hidrocarbonetos no país. A praia da Mina, em Pataias, a sul da praia de Paredes da Vitória, mais conhecida, deu o seu nome a uma mina de asfalto chamada “Canto do Azeche”. Começou a ser explorada em 1844, depois da rainha D. Maria II conceder à empreitada um alvará. No livro Mina do Azeche – Património à Beira-Mar Esquecido, Tiago Inácio, o autor, cita o relato de que só nesse ano o director da Alfândega da Pederneira, na Nazaré, fez por carta ao Governador Civil de Leiria, reportando que a mina tinha produzido perto de 500 toneladas de asfalto. Uma grande parte deste produto foi usado nos caminhos de ferro e para asfaltar algumas ruas em Lisboa.
Seja petróleo, gás ou qualquer outra variante de hidrocarboneto, como o asfalto, a sua origem deve-se a condições muito particulares. Falei com quem percebe do assunto: geólogos.
Mário Oliveira é professor de geologia e educação ambiental na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria. É também dirigente da Associação de Defesa do Ambiente e do Património da Região de Leiria – OIKOS. Tem estado envolvido neste processo dos furos – seja a questioná-los, escrevendo pareceres técnicos, seja participando em sessões de esclarecimento.
Mário Oliveira: Isso vamos partir do princípio que era preciso haver um fundo de mar, um mar…
Pedro: Que esta região já foi, não é?
Mário Oliveira: Que esta região já foi, que era preciso haver determinadas condições ambientais para se terem desenvolvido um conjunto de seres vivos microscópicos que depois se decompuseram e acabaram por gerar processos químicos em que houve concentração… Isto… Enfim, com uma série de evoluções e de histórias aqui pelo meio mas, no fim do processo, houve uma produção de um conjunto de reações químicas. Gerou-se um produto gorduroso, que é um hidrocarboneto, que pode ser líquido ou até pode ser gasoso, depois, em parte. Então, liberta-se um óleo e um gás desta reação.
Mas para que o petróleo ou o gás sejam explorados, é necessário que se reúnam alguns elementos e processos geológicos, entre os quais: uma rocha geradora, onde se decompõe a matéria orgânica; uma rocha que sirva de reservatório, normalmente calcários ou arenitos e uma camada que funciona como tampão, como argilas ou evaporitos, garantindo que milhares de anos depois o hidrocarboneto ainda esteja aprisionado. Chama-se a isto um sistema convencional de formação de hidrocarbonetos.
João Tomás tem 27 anos, é geólogo e natural do Juncal, concelho de Porto de Mós, mesmo ali ao lado de Aljubarrota. Trabalha numa pedreira de extração de calcários, no concelho de Alcobaça. Ele fala na linguagem técnica de quem estudou geologia, mas pedi-lhe que me explicasse de forma muito básica e simples, como se eu fosse muito burro. E ele tentou:
João Tomás: Sem estes três fatores não há, não se consegue ter…
Pedro: …uma bolsa.
João Tomás: …uma bolsa. Ou seja, se não houver a geradora não há óleo; se não houver o reservatório ele não se junta; se não houver o tampão ele espalha-se também e não se consegue. Basicamente é isto.
Nas formações convencionais consegue-se extrair a matéria-prima se ela existir numa quantidade tal que torne rentável o investimento. E é esse tipo de formação que todas as empresas procuram.
Mário Oliveira: Que, aliás, um dos nossos problemas em Portugal com o óleo, com o petróleo, não é não termos petróleo. Já há muitos anos que nós sabemos que temos.
Pedro: Temos e temos gás.
Mário Oliveira: Temos e temos gás. A questão é: não temos nem em quantidade, não temos conseguido descobri-lo nem em quantidade nem em qualidade.
Até agora. Mas a posta que a Mohave fez durante quase vinte anos não terá sido por acaso. E a esperança que a Australis tem, também não.
Pedro: Mas o facto de andarem, há tantos anos, empresas aqui na região a fazer isto, o que é que indicia?
Mário Oliveira: Indicia que eles têm, do ponto de vista técnico, eles têm suspeitas de que há de haver aqui um reservatório que valha a pena. Só que ainda não o conseguiram descobrir. Tão simples quanto isso. Ninguém anda atrás da galinha dos ovos de ouro se não souber que os ovos são de ouro.
E não é por acaso que a região Centro e Oeste do país é o alvo de quem procura os ovos de ouro. Aqui situa-se uma parte importante da chamada Bacia Lusitânica, que se estende mais ou menos entre Setúbal e Aveiro, na parte central da margem ocidental da Península Ibérica. Esta bacia sedimentar de tipo atlântico é a mais estudada e pesquisada das bacias portuguesas. Como formação geológica resulta da acumulação, ao longo de milhares de anos, de sedimentos, lamas, matéria orgânica, em áreas que já estiveram totalmente cobertas por água, que eram o fundo do mar. Formou-se entre 251 milhões e 65,5 milhões de anos, na era Mesozóica, entre os períodos Triásico Superior e o final do Cretácico Inferior. Falando grosseiramente – as minhas desculpas a quem estuda geologia – no tempo dos dinossauros. O que hoje é Península Ibérica e Europa já fez parte de um supercontinente do norte, chamado Laurásia, que incluía os continentes que hoje constituem o Hemisfério Norte: América do Norte, Europa e Ásia. A separação destes blocos, quando se formou-se o oceano Atlântico Norte (que separa as placas Norte-americana e Euro-Asiática) criou várias bacias sedimentares, como a Lusitânica.
João Tomás:
A nossa costa, a formação de… A bacia lusitânica é muito idêntica às camadas que existem no Canadá, daí as empresas estarem a vir cá explorar, porque na costa do Canadá é explorado, e a formação é muito idêntica. As idades e o tipo de material é muito idêntico.
Sabendo que o Canadá é o terceiro país do mundo em reservas de petróleo – mesmo que não sejam só formações convencionais, como as que explicamos acima – torna-se mais fácil entender a insistência das petrolíferas nesta zona do país.
Parte IV – Mohav = Australis?
O furo que a Australis agora se quer fazer na Rua dos Prazeres, onde mora a Maria Celeste, que ouvimos no início deste episódio, é só mais um. A Bacia Lusitânica é como um bolo com várias camadas e essas camadas não são uniformes nem na espessura, nem no tipo de rocha. Pode-se furar num sítio onde se espera que haja petróleo ou gás e não estar lá nada ou não estar nas quantidades ou qualidade pretendida.
Localização, nome, ano de realização da sondagem e resultados dos furos de prospeção de petróleo e gás, em Portugal Continental (mar e terra). Fonte: DGEG, 2018
Só com o nome Aljubarrota foram realizados seis furos de pesquisa, pelo menos três provaram a existência de gás a diferentes profundidades e em diferentes tipos de formação rochosa. Na região, num raio de 30 de quilómetros, foram realizadas mais de 20 sondagens de pesquisa quer no concelho de Alcobaça, quer nos vizinhos, ao longo dos anos.
Filipa Faustino:
Nós colocámos essa questão, lembro-me perfeitamente: se, eventualmente, encontrarem alguma coisa, se aquilo lhes correr bem, como é que nós vamos ficar?
Esta é Filipa Faustino, habitante da Quinta do Mogo ou apenas Mogo. O pequeno lugar, situado num vale com vista para a Serra dos Candeeiros não estava preparado para a confusão que aí viria, embora a algumas dezenas de metros esteja seja o Cadoiço, uma povoação vizinha onde se fizeram já quatro furos e de que também falámos no início deste episódio.
Filipa Faustino:
E a resposta foi tão simples quanto: ‘Ah, isso se, logo se vê. Agora não vamos supor uma coisa que não sabemos o que é que vai acontecer’.
A chegada da Mohave Oil & Gas ao Mogo foi uma surpresa para toda a gente, porque os furos sempre foram feitos, a umas centenas de metros dali, no Cadoiço, em campos agrícolas e sem casas próximas, ao lado do IC9. Entraram primeiro e avisaram depois.
Filipa Faustino:
O que eles puseram um aviso qualquer na caixa do correio. Mas uma coisa muito vaga! A dizer que iam continuar com… foi assim que nós soubemos. Foi assim depois que nos juntámos e que decidimos marcar uma reunião, porque estávamos descontentes. Aquilo era mesmo muito barulho, era imenso barulho.
A população foi reclamar à junta de freguesia de Aljubarrota e marcou-se a tal reunião, de que a Filipa foi a grande impulsionadora. Estiveram presentes um representante de cada uma das 12 famílias do Mogo e os presidentes de Junta e da Câmara – os mesmos que hoje ocupam os cargos.
Filipa Faustino: Olhe, eu sei que na altura foram lá pessoas para ver a casa por causa da passagem de carros pesados e tudo. Eu não sei se teve alguma influência, mas aquela casa já é velha, mas depois disso ficou cheia de fissuras. Já estava lá, há muitos anos, há bastantes anos. Houve mesmo uma parte que abateu e tudo. Mas pronto, aquilo foi muito giro passarem lá para fazerem o levantamento mas depois ninguém nunca mais perguntou nada, não quer saber de nada.
Pedro: Mas está a falar-me de que casa, Filipa?
Filipa Faustino: Da minha!
Pedro: Ah, da sua. Onde eu encontrei o seu pai hoje.
Filipa Faustino: Sim.
Sendo o lugar tão pequeno, daqueles onde toda a gente se conhece, Filipa não foi a única a ter problemas. Henrique é casado com Maria e moram na Quinta do Mogo. Os nomes deles são fictícios, porque não querem ser identificados.
Mas voltemos à história, de que eles se lembram como se tivesse sido ontem.
Henrique: Acontece que depois de andarem 15 dias, de dia e de noite, a fazer [barulho], não deixaram dormir ninguém. E não havia hipótese nenhuma. Ainda fiz queixa e disse que chamava a polícia e não sei quê… Mas que isso era um assunto que estava nas mais altas instâncias e que não havia hipótese nenhuma de eu me pronunciar sobre…
Pedro: Quem é que disse isso?
Henrique: Diziam na Junta e diziam que não havia não havia hipótese nenhuma de eu me pronunciar sobre isso. E a Polícia, inclusivamente, aconselhou-me a não me pronunciar porque isso já estava muito para além deles, isso já estava muito para além deles.
Quando isto se passou, em 2011, estava também a ser feito um furo no Cadoiço. Correu tão bem que no cimo da torre de perfuração uma chama ardeu constantemente durante dias – uma técnica conhecida como flaring ou queima da tocha, em português, cuja finalidade é manter o poço de gás em segurança, a uma pressão constante. Se há chama, há gás. Se ela arde durante dias é porque lá está numa quantidade e pressão interessantes. Mas para esta povoação, que antes de ser retalhada entre herdeiros, era uma grande propriedade familiar, as coisas não correram assim tão bem.
Henrique:
Ah, inclusivamente, há uma coisa muito interessante. Tenho aqui um furo de água, já de há muitos anos, já há 30 anos, está aqui ao lado, mesmo, e esse furo de água secou. Quando eles fizeram o deles, [o meu] secou. Eu reclamei e disse: ‘epá, além de me terem incomodado, terem partido a estrada toda’ – eles disseram que arranjavam, não arranjaram, a estrada está toda partida, mesmo, com camiões que andaram aí e não sei o quê. Disseram que arranjavam a estrada não arranjaram, partiram a estrada toda, secaram-me o furo de água. Reclamei. ‘Ah não o seu furo só tem 50 metros, o nosso furo tem muito mais, mas está isolado até aos 50m’.
Não ficou por aqui.
Maria: A grande perturbação foi o movimento, uma pessoa quer sair de casa para ir trabalhar…
Henrique: Não conseguia.
Maria: Não conseguia porque os camiões eram enormes.
Henrique: Olha e ainda te partiram o carro todo. Uma máquina.
Maria: Uma vez partiram-me o meu carro. Novo.
Henrique: Pagaram. O seguro.
Maria: Pagaram sim senhor.
Henrique: Ali no cruzamento, vinha uma máquina com uma pá, bateu no carro e rebentou…
Esposa: Vinha um indivíduo funcionário que não tinha carta de condução se quer, a conduzir um trator.. Boom.. com a pá da frente do trator em cima do meu carro.
Henrique: Com uma retroescavadora.
Pedro: E a senhora estava lá dentro?
Henrique: Sim, foi no cruzamento. Levou o carro à frente, partiu o carro todo.
Maria: Tinha o carro há… um mês…
Henrique: Um ano.
Maria: Não era nada! Há um mês ou dois!
Henrique: Um mês ou dois… Pois, era aquele carro que a gente viu, aquele branco. A frente ficou toda destruída.
Esposa: Vinha um indivíduo funcionário que não tinha carta de condução se quer, a conduzir um trator… Boom.. com a pá da frente do trator em cima do meu carro.
Henrique: Com uma retroescavadora.
Pedro: E a senhora estava lá dentro?
Henrique: Sim, foi no cruzamento. Levou o carro à frente, partiu o carro todo.
Maria: Tinha o carro há… um mês…
Henrique: Um ano.
Maria: Não era nada! Há um mês ou dois!
Henrique: Um mês ou dois… Pois, era aquele carro que a gente viu, aquele branco. A frente ficou toda destruída.
E como não há duas sem três.
Henrique: : A água inundou-me um terreno todo ali em baixo.
Maria: Ah, pois foi!
Henrique: A água inundou-me um terreno todo de lamas e não sei o quê.
Maria: Pois foi, escorreu tudo lá para baixo.
Henrique: A água com espuma… Com uma espuma que eles punham no furo e não sei o quê.
Maria: Pois foi. É verdade.
Henrique: Inundou-me um terreno todo. Tenho ali um pomar…
Maria: Muita espuma, muita espuma…
Henrique: Ficou tudo inundado de águas e de lamas.
Maria: Nós e os vizinhos.
Henrique: Água e lamas, não foi só água!
Pedro: E então? O que é que aconteceu?
Henrique: Nada.
Maria: Aconteceu… Inundou e mais nada.
Henrique: Disseram que repunham tudo como estava e não repuseram nada.
As promessas Henrique e Maria não esquecem. Mas era preciso aguentar, tudo melhoraria.
Henrique:
Tem de ser, isto vai muito dinheiro aqui para a zona, isto vai ser muito bom para vocês todos. Vocês têm de suportar isto agora 15 dias, de dia e de noite, e depois começa a ser mais suave, depois não vai haver barulho.
Em 2011, trabalhava-se de sol a sol. Era preciso furar. Era preciso avançar. Mas de repente…
Henrique:
De repente, depois de terem incomodado toda a gente, a torre nunca chegou a ser montada. Depois de terem gasto montes de dinheiro com o primeiro furo, com a plataforma que foi feita em betão e não sei o quê, vieram aí um dia, com um camião de betão, taparam tudo, e abandonaram.
Hoje, a estrada continua esburacada. O terreno onde se furou parece uma grande praça inerte, rodeada por rede ovelheira, coberta de brita, com grandes tufos de ervas aqui e ali. Talvez a pressa em sair do Mogo tivesse que ver com os preparativos para a grande novidade que viria a público dali a uns meses.
A 26 de junho de 2012 a Galp anunciou um acordo com a Mohave, para ficar com 50% da concessão “Aljubarrota-3”. Lembrem-se que dentro de uma concessão, que é uma determinada área no país, pode haver vários furos. Nesta de que falamos, a que deram o nome “Aljubarrota-3”, incluíam-se os furos do Cadoiço, onde ardeu a chama de gás, e do Mogo, que não deixava dormir Henrique, a Maria ou a Filipa.
Mas os 4,3 milhões de dólares (3,4 milhões de euros) pagos pela empresa portuguesa à Mohave tinham em mente uma outra perfuração, nova, com o nome de código “Alcobaça 1”. Ficava na Quinta do Telheiro, quase dentro da cidade, a uns meros 800 metros do Mosteiro de Alcobaça, classificado como Património Mundial da Humanidade pela Unesco.
Se no Mogo o furo foi selado, a Quinta do Telheiro era agora a nova aposta. De toda a gente: governo, autarquias locais, empresas.
A 3 de setembro, realizou-se a grande cerimónia de assinatura que selava a parceria entre a Galp e a Mohave. Uma comitiva de homens de negócios, dignitários vários, forças vivas regionais e locais e governantes vão a Alcobaça abençoar o negócio e visitar o estaleiro dos trabalhos. Entre toda aquela gente estava o ministro da economia, Álvaro Santos Pereira, e o secretário de Estado da Energia, Artur Trindade. A RTP esteve lá para registar o momento. Esta peça do jornalista Rui Alves Veloso, passou nessa noite, no Telejornal.
Rui Alves Veloso:
Os trabalhos até já decorrem. A Mohave Oil & Gas Corporation, detida por canadianos, acredita que existem quantidades suficientes para avançar e anunciou que irá investir 230 milhões de euros na prospecção e exploração de petróleo e gás natural em Portugal. Alcobaça é um dos sítios onde está a ser feita a prospeção. Se os testes forem positivos, aqui pode vir a ser extraído gás natural a cerca de 3 mil metros de profundidade. O Ministro da Economia visitou o local.
Álvaro Santos Pereira:
Para nós o que é importante assinalar é a confiança que existe de empresas multinacionais, em parceria, neste caso também com a Galp, em investir umas boas centenas de milhões de euros no desenvolvimento dos nossos recursos naturais”.
Álvaro Santos Pereira fazia fé nos números da empresa e parecia acreditar que se iam criar 200 postos de trabalho diretos, 1400 indiretos e chegar a uma produção de 8 mil barris de petróleo por dia.
A Galp também estava radiante. Nesse dia, ao Expresso, o vice-presidente da petrolífera, Luís Palha da Silva, formado em economia e gestão de empresas, ex-diretor executivo da Jerónimo Martins, ex-https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrador da Cimpor, que fora secretário de Estado do Comércio, entre 1992 e 1995, no governo de Cavaco Silva, declarou: “É um orgulho para a Galp estar a trabalhar no interesse de Portugal. Mas é o interesse empresarial que mais nos move neste projeto.” Continuou: “Nesta indústria não há certezas, mas sentimos que há boas perspetivas de este projeto ser bem sucedido. Também queremos que, dentro de dez anos, a Galp satisfaça por inteiro as necessidades energéticas do país, tanto com este projeto, como noutros em Angola, Moçambique, Timor e Brasil”.
É certo que falta algum tempo para 2022, a década que Palha da Silva dava à Galp para satisfazer “por inteiro” as necessidades energéticas do país. Um exercício revelador para perceber a fragilidade dos grandes anúncios sobre investimento ou criação de emprego é analisar os arquivos dos jornais. No zona Oeste, não há fonte mais credível e reputada que a Gazeta das Caldas, um dos regionais mais importantes do país, editado há quase um século. Bastou-me ir ao site, procurar pelas palavras “Mohave” e “Gás Natural” para ter um filme do que se passou. Vou ler-vos apenas os títulos das notícias e as datas em que foram publicadas:
- 23 de Março – Mohave quer procurar gás natural na cidade de Alcobaça
- 30 de Março – Mohave acredita que há gás natural em Alcobaça com viabilidade de exploração ao longo de uma década
- 27 de Abril – Câmara de Alcobaça dá luz verde a prospecções de gás na cidade
- 7 de setembro – Mohave acredita em “7 milhões de metros cúbicos de potencial” no subsolo de Alcobaça
- 21 de Outubro – Sinais “encorajadores” na prospecção de gás em Alcobaça
- 28 de Outubro – Prossegue a busca da “chama certa” do gás natural em Alcobaça
Menos de dois meses depois do grande anúncio de parceria entre a Galp e a Mohave, a 5 de novembro, a jornalista Ana Isabel Costa, da Antena 1, tinha más notícias.
Ana Isabel Costa:
Ainda não foi desta. Apesar da grande expectativa em encontrar gás e petróleo em quantidade suficiente para explorar e comercializar, já se pode dizer que não passou disso mesmo: expectativa.
Em Alcobaça, como no Mogo, semanas depois de perfuração consecutiva, dia e noite, o local foi abandonado.
A 24 de maio de 2014, a primeira página do Diário de Leiria fazia manchete com o título: “Sonho do gás chega ao fim em Alcobaça”. O matutino citava um comunicado divulgado pelo extinto Diário Económico, no qual a Porto Energy, empresa dona da Mohave, assumia não ter conseguido “atrair interesse de investidores nas suas concessões em Portugal” devido “à falta de produção de petróleo e gás”.
Desta forma, a petrolífera deixava oficialmente o país. Mas será que isso realmente aconteceu?
(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)
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