O Luxemburgo é um país pequeno, de área idêntica à do distrito de Lisboa e pouco mais de 600 mil habitantes. É tão pequeno, aliás, que a sua capital se chama Luxemburgo e grande parte das pessoas que lá trabalham habita noutro país. O mais famoso luxemburguês? Provavelmente Robert Schuman, o “Pai da Europa” e duas vezes primeiro-ministro… da França.
A exportação de políticos continua a ser uma atividade cultivada com entusiasmo no único grão-ducado do mundo. O mais recente exemplo é Jean-Claude Juncker, atual presidente da Comissão Europeia, e anterior presidente do Eurogrupo, primeiro-ministro e ministro das finanças do seu país.
Desde que foi eleito para a Câmara de Deputados, corria o ano de 1984, nunca mais Juncker abandonou cargos políticos, numa carreira de 35 anos que terminará, ao que tudo indica, no final deste ano. Figura fundamental da política europeia desde as negociações do Tratado de Maastricht — o que significa ter sido uma importante figura da União Europeia antes sequer de existir uma União Europeia — Juncker é o líder europeu mais experiente ainda em funções – para se ter uma ideia, tomou posse como ministro das finanças em 1989, ano do início da queda do Muro de Berlim.
Eleito para a presidência da Comissão Europeia em 2014 com uma confortável maioria parlamentar e a oposição de apenas dois Estados-membros no Conselho Europeu – o Reino Unido, governado então por David Cameron, e a Hungria de Viktor Orbán, seu companheiro de partido –, a União que então se preparava para enfrentar parece-nos muito diferente da de hoje, para melhor. No entanto, um olhar atento às suas “dez prioridades” para a Comissão Europeia revela que os temas chave de 2014 são quase totalmente coincidentes com aqueles que nesta campanha são apresentados como inovadores por vários comentadores: o reforço do papel da UE como um ator global na política externa, a necessidade de diversificar as fontes de energia para responder às alterações climáticas e a necessidade de regulamentar o setor digital são apenas alguns exemplos.
Depois de 18 anos pacíficos como Primeiro-ministro do Luxemburgo, período em que conseguiu assumir um papel importante na cena internacional, apesar da dimensão do país que governava, o mandato como presidente da Comissão foi tudo menos tranquilo. Pessoalmente, é inescusável o caso LuxLeaks; logo nos primeiros dias de mandato veio revelar como, durante o seu governo, se aproveitou de uma diretiva europeia para conferir um estatuto fiscal especial a empresas que nele se instalassem, permitindo a poupança de milhares de milhões de euros em impostos devidos, por via de estratégias de planeamento agressivo; a certo momento, tornou-se público que 1600 empresas se registaram na mesma morada, o que demonstra extraordinária eficácia na utilização empresarial do diminuto território luxemburguês. Na verdade, os últimos 5 anos ficam marcados pela súbita perceção de que o projeto europeu, ao contrário do universo, não está condenado à expansão ou, inversamente, à implosão. Do rescaldo da crise económica e da crise dos refugiados, uma vaga do muito abrangente fenómeno que se veio a classificar como “populismo” conquistou um espaço político considerável aos partidos tradicionais, o Reino Unido votou em referendo pela saída da União e as relações com os EUA, aliado mais importante da UE, atingiram um histórico ponto baixo. Se se considerar apenas o início e o final do mandato, a União Europeia que Juncker lega ao seu sucessor parece consideravelmente pior do que aquela que recebeu.
Para além desses desafios para o futuro, o seu abandono assinala também a transição para uma nova política europeia – ainda que isso possa não ser evidente do ponto de vista geracional, já que o candidato do PSE, Timmermans, é pouco mais jovem e Barnier, o dark horse da corrida, até é mais velho. Juncker é um herdeiro da primeira geração de políticos à escala europeia: moderado, diplomático e consideravelmente europeísta. Esse velho centrismo parece hoje deixado a um mundo desaparecido, em que socialistas e populares controlavam confortavelmente os cenários políticos europeus e nacionais, facilitando entendimentos mutuamente benéficos que permitiram o aprofundamento consensual da ideia europeia. Com a fragmentação do Parlamento Europeu e das várias capitais, o processo político tenderá a ser mais disputado e, atendendo às especificidades do modelo europeu, adivinham-se inultrapassáveis bloqueios e acesos confrontos nos vários campos de decisão.
Jean-Claude Juncker ficará ainda na história por ter sido o primeiro presidente designado pelo método do Spitzenkandidat, que concede aos eurodeputados e, indiretamente, às eleições europeias grande poder no processo de escolha. No entanto, poderá também ser o último, uma vez que cada vez mais membros do Conselho Europeu e partidos com menor expressão eleitoral dele se desligam, em favor de uma centralização do poder nos Estados. Isso seria uma nova derrota da sua presidência, não conseguindo escapar do argumento que defende que, tivesse o seu mandato sido bem-sucedido, o sistema estaria condenado a vigorar.
No entanto, também vários sucessos podem ser encontrados nos últimos anos. O primeiro de todos é a mera sobrevivência do euro e da União Europeia, que em 2014 (e em vários momentos seguintes) parecia menos certa do que é hoje. Para isso muito contribuiu a dobragem do Cabo das Tormentas da crise económica, com o continente a registar atualmente um período de crescimento económico e queda do desemprego; nessa área de intervenção, merece referência o célebre “Plano Juncker”, criado com o propósito de injetar 500 mil milhões de euros em investimentos estratégicos na Europa (e não isento de críticas). No plano internacional, a ação de Federica Mogherini em nome da Comissão constituiu um alvo de permanentes críticas, mas foi significativa para a posição da UE no mundo o compromisso assumido para o aprofundamento de esforços conjuntos na área da defesa, sobretudo pelo investimento na indústria europeia.
De tudo isto se retira um legado complexo, difícil de classificar imediatamente como “bom” ou “mau”. Não obstante, Juncker foi por várias vezes o dinossauro na sala, que frequentemente nos lembrou do espírito original e dos valores partilhados pelas grandes figuras da construção europeia, com as quais moldou o seu próprio europeísmo. Foi também o bonacheirão carismático que cumprimentava com excessivo entusiasmo os líderes nacionais nas reuniões europeias, que tratava Orbán carinhosamente por “ditador” e que escolheu Nigel Farage como alvo frequente de extraordinárias batalhas retóricas. Por essas atitudes não escapou de críticas, provavelmente injustas, que dele fizeram um meme; nos dias que correm, talvez isso nem seja mau. Seja como for, será impossível escrever a história da União Europeia sem dedicar vários parágrafos à sua influência, direta e indireta, no resultado final. É a única grande figura europeia que a maioria de nós viu no ativo e com isso determinou decisivamente a nossa visão europeia.
Por isso, que já não é pouco, aqui fica um abraço, Jean-Claude.
João Diogo Barbosa