Diamantino é um craque mundial que consegue imaginar o campo, na hora de marcar golos ao adversário, como se atacado por um delírio psicadélico kitsch (envolve cães fofinhos num cenário em tons rosa). Só que um dia, a sorte muda, o jogador falha um penalti, passa de herói nacional a saco de boxe, e acaba por tentar buscar um novo propósito para a sua vida após testemunhar a crise dos refugiados. Pelo meio, as suas duas irmãs gémeas tentam convencê-lo a frequentar um programa secreto que visa alterar geneticamente o seu corpo enquanto o tornam num porta-voz para um novo movimento nacionalista.
É esta a sinopse possível para Diamantino, automaticamente um dos OVNIs maiores do cinema contemporâneo português – um filme cuja base referencial não encontra propriamente qualquer paralelo cá dentro do nosso rectângulo à beira-mar, sendo o cinema trabalhado por John Waters, cruzado com as comédias de Pedro Almodóvar o melhor referencial possível lá fora. Portugal, mesmo tão próximo da “Movida” de Madrid, sempre quis buscar uma identidade mais séria, por acreditar que o drama é sim mais legítimo. Potencial camp houve sempre, claro, mas a seriedade acabou sempre por dominar tentativas mais burlescas, mais facilmente vistas como inconsequentes aqui (até porque o trash “tuga” dificilmente conseguia reunir as qualidades suficientes para se elevar a camp. Até agora. )
Arriscando uma afirmação tão audaz como a dupla de realizadores e argumentistas Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, podemos afirmar que estão aqui as vozes mais originais e mais punk desde que João César Monteiro nos deixou. Este filme é de facto tardio mas ainda assim à frente do nosso tempo (sobretudo se o nosso tempo for o tempo português), um objecto de difícil referenciação temporal, mesmo que sim, no parágrafo anterior tenhamos buscado Waters e Almodóvar, essas duas eternas “crianças terríveis” queer, uma delas mais amadurecida com o virar da década de 1990.
As piadas são cáusticas, viajando da sátira política ao humor sexualizado (aqui também há um resquício das comédias de troca de género de Blake Edwards, na procura por um terceiro nome que consiga descrever este OVNI), usando lógica de contos de fadas (irmãs maléficas, interpretadas pelas gémeas na vida real Anabela e Margarida Moreira, numa outra decisão de casting inspirada), ficção científica distópica, e uma figura real incontornável de seu nome abreviado CR7, personagem principal desta odisseia minada, reinterpretada por um colosso chamado Carlotto Cotta, que usa e abusa de um sotaque de ilha para um boneco que revela ter mais profundidade à medida que o filme vai ficando mais delirante.
O pacote pode efectivamente ser kitsch mas convém não menorizar o esforço aqui presente. Diamantino é uma experiência cinematográfica inesquecível, uma droga alternativa a tudo o que está em cartaz, que usa e abusa de liberdades narrativas (e nesse aspecto é um filme mais queer que os demais vistos nos festivais da especialidade) sem com isto perder uma visão altamente consistente. Já se invocou a noção de obra-prima por muito menos, nos últimos meses…
Texto de André Gonçalves
(Nota: este texto foi originalmente publicado no c7nema, um dos mais antigos sites de informação, opinião e crítica de cinema em Portugal, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)
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