Por muito neutra que a tecnologia aparente ser, a verdade é que por ser desenvolvida por humanos se não for cuidadosamente pensada não se torna, por magia, inclusiva e igualitária. Em vez disso, um sistema criado por um humano ou por um grupo de humanos tende a replicar algumas das ideias pré-concebidas socialmente, podendo até ampliá-las a um nível nunca antes visto.
Recorrentemente, e em muitas das decisões que as máquinas tomam por nós, podemos aperceber-nos disso mas há exemplos ainda mais evidentes que outros a surgir no nosso quotidiano. Por exemplo, a voz das assistentes pessoais é por defeito feminina. Siri, Alexa ou Cortana, todas elas com nomes femininos são as marcas das principais assistentes pessoais e uma demonstração paradigmática de como o preconceito de que as mulheres são mais adequadas ao cargo de assistência pessoal foi replicado no mundo digital.
Por uma questão de marketing, talvez, e sem nenhum objectivo de performance associado ao tom de voz, as principais empresas e os principais criadores de tecnologia limitaram-se pura e simplesmente a replicar aquilo que é mais comum e relacionável na sociedade actual – estudos mostram como os utilizadores respondem mais positivamente à voz feminina. Com isso conseguiram, também provavelmente, uma maior facilidade na adaptação ao serviço mas ao mesmo tornaram o seu serviço igualmente um replicador do estigma. Mesmo nos casos em que há possibilidade de escolha – como nos assistentes pessoais acima mencionados –, a questão continua a ser redutora obrigando a escolher entre uma voz masculina e feminina.
É com essa problemática em mente e, com o intuito de a subverter, fazendo da tecnologia uma forma de despertar debate social, que um grupo de designers e tecnófilos de Copenhaga da agência da Vice, Virtue, colocou mãos à obra no desenvolvimento da Q. A Q é uma das primeiras vozes criadas digitalmente em que é impossível distinguir o género.
A primeira abordagem do grupo passou por gravar dezenas de pessoas que se identificavam com diferentes géneros a dizer as mesmas frases mas rapidamente se aperceberam de que esse desafio traria demasiadas complicações. A segunda opção passou por seleccionar uma voz que fosse intermédia, manipulando posteriormente ao ponto de a tornar ainda mais ambígua ou, se quisermos, sonoramente andrógina. Nis Nørgaard, em entrevista à Wired, falou sobre como mesmo este processo é tricky e sensível, visto que o cérebro humano depressa detecta e rejeita vozes alteradas; ainda assim, o resultado da experiência acabou por ser perfeitamente aceitável.
Para demonstrar a voz e dar alguma substância a este projecto, a equipa criou um website interactivo onde cada utilizador pode arrastar o balão de fala para cima e para baixo, fazendo aumentar e diminuir o pitch, aproximando progressivamente a voz do timbre associado ao masculino e ao feminino. No mesmo sítio, somos convidados a partilhar através do Facebook, Twitter ou LinkedIn a Q, fazendo a mensagem chegar à Apple, Amazon, Google e Microsoft, donas da Siri, Alexa, Google Assistant e Cortana, respectivamente.