Algumas entrevistas requerem especial preparação, seja pela pouca informação que temos à disposição sobre quem vamos entrevistar seja pelo medo de cair nas fórmulas fáceis e nas informações repetidas sobre alguém, pelo tempo apertado, pela localização condicionante. Tudo conta e tudo estraga e é por isso que escrevemos esta história de uma maneira diferente. Desprezámos os cânones e marcámos uma entrevista com o Keso sem sequer ter visto a sua fotografia. Na memória levámos as letras quase todas decoradas – pelos menos dos dois últimos discos – e um interesse mórbido pelo percurso de um músico que nos vai dizendo tanto. O resultado é uma conversa mediada, uma espécie de entrevista sem limites, que nos levou a conhecer o Homem por trás do rapper.
A conversa começou ainda o microfone não estava à gravar. À entrada da livraria Sá da Costa, no Chiado, já no baixo do último cigarro, trocaram-se referências dando o mote ficou dado para a entrevista:
“Eu só fiz rap. Desde sempre fiz rap, vim da escola do rap francês e da cena portuguesa como é evidente. Mas o meu género musical de eleição para ouvir não é o rap. Ao fim de tanto tens intenções e gostos por outras coisas. Posso dar-te os meus 2 ícones da musica: Thom Yorke dos Radiohead e o Damon Albarn.
Esses são os meus 2 personagens, consegues logo perceber: o Thom Yorke pelo lado mais melódico e pela forma como usa a voz, o Damon Albarn pelo lado mais criativo e versátil. Não canto como o Thom nem tento imitá-lo. Neste disco há duas referências de que as pessoas costumam falar, Floating Points e James Blake. É normal que existam essas influências.”
Inspirados pelas prateleiras cheias de livros antigos e enquanto perguntávamos pela “Metamorfose do Kafka”, mudámos o rumo da conversa numa deriva sobre a importância das referências no Rap.
O objectivo não é ser intelectual, é “desintelectualizar” a coisa mas não no sentido de a tornar banal. Há rappers que fazem a coisa street mas a gente não quer deixar de ser culto.
– Tens um poema do Miguel Torga, tens um excerto de um dos grandes pensadores portugueses, o Agostinho da Silva, etc..
Não é o papel do rapper, é da pessoa. Eu como venho de um meio de bairro, um meio social que não é o mais favorecido de todos, sempre tentei instruir-me ao máximo e fazer a minha formação indo o mais longe possível.
O primeiro livro que eu li foi o “Harry Potter e a Pedra Filosofal” – já fazia graffiti e rap – comecei a ler tarde. Por exemplo o cinema comecei antes, mas quando vim estudar para Lisboa tornou-se um vício.
E nota-se uma evolução nos álbuns: O primeiro é linguagem simples, mensagens até um pouco confusas. O segundo é um bocado como o “Libertino em Braga” do Luiz Pacheco, pensa num portuense em Lisboa. E este é voltar atrás. Se tivesses as 3 obras juntas, eu podia responsabilizar-me pela segunda. A primeira é muito cedo e este último disco não quero que seja uma obra de referência. Não foi feito com o intuito de ser um discão – mas é a primeira vez que estou a dar um tratamento de imprensa, agente e não sei quê.
Este disco foi feito numa pós-depressão, uma situação mesmo delicada. Na altura afastei-me do mundo, para piorar foi depois de perder quase 5 anos de música que tinha feito.
Perdi tudo e nem tinha dinheiro para comprar um disco novo – um disco interno. Tinha lá praí 3 álbuns e esses discos eram todos na onda da faixa bonus track “Medo” deste último, que muita gente não sabe que existe porque não tem o disco físico.
Fechado um dos primeiros capítulos da conversa e depois de uma revista rápida às prateleiras, tempo para introduzir na mistura outra parte importante.
– Para além de rapper, Keso é também assinatura de Graffiti… Assumes que sejam a mesma pessoa?
Eu desliguei-me um bocado do Graffiti quando comecei a estudar na faculdade, não tinha dinheiro para comprar latas nem queria fazer esse esforço porque as latas são caras mas… o Hip Hop no geral foi tomado pelo mundo todo pelas mais diferentes nacionalidades e foi-se dispersando. O gajo que faz Graffiti já não é propriamente o gajo que gosta de Rap. Tens a street art, que se formou da escola do Graffiti e se afastou.
Mas no Porto, eu comecei a pintar há muitos anos na altura em que, por exemplo, a Capicua também pintava. E há o Keso e houve sempre o Keso graffiti. Acho que isso no Porto nunca se separou, é evidente que há muita gente que não sabe sequer que eu faço graffiti. Como é que provável que alguns pensem em mim como graffiter e não como rapper.
Mas gosto que andem os dois de mãos dadas sim.
– Como ouvinte quotidiano do último disco e depois de observar a reação do público, foi impossível evitar comparações quotidianas. O registo underground, a agressividade moderada e um pensamento claramente alternativo foram a premissa para a recordação de uma citação de Slavoj Zizek: “Os radicais de esquerda são os verdadeiros conversadores”.
Eu não me considero conservador. Não sei até ponto isso está estereotipado mas acho que é algo que envolve outras pessoas, implica que imponhas o teu conservadorismo.
– Mas não achas que passas por radical?
Esse meu lado ficou ainda mais vincado agora que fui obrigado a ir para fora, algo que eu nunca quis.
Eu costumo dizer: eu tenho o direito de viver entre os meus. Pá, isso pode ser tanto de direita como de esquerda. Eu sou um humanista.
Ainda no outro dia saiu uma entrevista em que assumo o meu pequeno ódiozinho ao mundo, mas uma coisa simpática – o meu lado mais misantrópico – e pegaram nisso e puseram em headline. Qualquer pessoa que vir aquilo vai pensar que sou um fundamentalista. Mas é só um assumir de posição que é típico do rap – e neste caso nem é só do rap.
Sou eu só a reclamar o meu lugar e o meu espaço. Ainda que não queira ganhar protagonismo a quem quer que seja.
Ontem estavam-me a perguntar porque é que eu e o Nerve temos algumas coisas em comum. Quer dizer somos amigos mas eu acho que na realidade não há muito em comum naquilo que fazemos. O Nerve trabalha mais uma parte e eu trabalho a outra. Eu prefiro deixar sempre o meio termo para que a mensagem chegue às pessoas, prefiro dar-lhe uma embalagem mais floreada sem abdicar da mensagem. Se calhar transmito-a de um modo mais relaxado, mais teatral. Mas identifico-me totalmente com aquilo que ele escreve.
Há muito pessoal que faz aquele registo antropológico muito claro de observação/comparação, que é aquilo que acontece bastante no Rap. E nós (tanto eu como ele, e talvez outras pessoas) não estamos tão focados nesse sentido, estamos mais focados na observação interior sem comparação, que é intemporal. E é isso que faz das obras diferentes, mas qualquer tipo de obra é fixe – até pode ser o shalala shalala que pode servir para qualquer coisa. Nunca podemos julgar.
– Até a ironia na “Defeito Sério” esse paradoxo (‘Ser honesto é um defeito sério’). É por um lado radical, por outro humanista…
Isso é um exercício muito português e muito portuense. Não é uma ironia pura mas é muito habitual entre os portuenses – mas mesmo as peixeiras, o pessoal de bairro e de guetto tem essa cena de fazer essa ironia assim. Não sei até que ponto as pessoas pensam sobre isso. Mas por exemplo aqui na (música) “Manobras (de Outono)”, eu convidei um dos gajos mais odiados do Porto que ao mesmo é um personagem cheio de características e com uma riqueza na linguagem, no próprio timbre – o Kapataz.
É um gajo de quem muita gente tem medo e foi interessante colocá-lo nesta roupagem quase épica, foi como meter-lhe um escudo e uma espada e metê-lo no Ben-Hur a fazer de guerreiro.
– Acabas por ter um papel agregador?
As pessoas que me conhecem sabem que eu sou assim, eu dou-me com toda a gente. É mesmo raro ter problemas, ninguém quer ter problemas comigo. Eu prezo muito as minhas amizades e respeito muito isso e faço de questão de com o passar dos anos continuar igual com as pessoas e a tratá-las bem.
E isso num meio pequeno como o Porto acaba por ser engraçado. Eu faço isso na minha vida. Kapataz e Gatos do Beco não são sangue da mesma praia mas eu estou lá e sou aquele gajo que vai mediar os dois. E isso é engraçado, eu conheço as pessoas há imensos anos e depois num momento, juntamo-las e elas acabam por se cruzar muitas vezes por minha causa. E isso é bom, o meu concerto no Maus Hábitos, por exemplo, foi super engraçado. Tinhas tudo e mais alguma coisa misturado ali, aquilo parecia um caldeirão e de repente foi uma granda festa. Vias muita gente ali que não se falava e de repente estava ali… a trocar ideias. Isso é importante.
– Dizes que este não é um disco central mas acaba por ser marcante até pelas circunstâncias. Foi uma forma de expressar o que tens acumulado, não?
Sim algumas coisitas… Ainda queria fazer um disco este ano mas não. Como os discos anteriores que estava a fazer são todos tocados, eu sei as músicas todas de cor – é só uma questão de ir para estúdio e gravar, começar a trabalhá-las. Mas para este ano não, este ano sai o disco de remix – que mais uma vez vai ser mesmo fixe. Mais uma vez vais ver ali pessoas que não têm nada a ver, tudo ali misturado. Isso é mesmo fixe, meu.
Mas foi demasiado tempo, a não ser que tenha algum projecto.
– Então estás mesmo “De volta”?
Eu cada vez que lanço um disco ‘tou de volta, por isso… Não tenciono ficar tanto tempo sem fazer música.
Também é preciso tempo para ter coisas para falar. Às vezes custa-me um bocado pensar que faço música há 14 anos… Isso para os miúdos, devem pensar que sou um dinossauro, “O meu pai já ouvia isto”. Mas tem calma, eu comecei foi com 13 anos. Com o Mundo, estava quase a fazer 14, foi pela altura de Novembro. Passado 2 anos lancei o KSX, com 15 anos em Junho de 2003.
– Estudaste cinema, quando vamos ver a ligação desses mundos?
Vão ver brevemente.
A opção é muito simples, há fenómenos e fenómenos e há um deles em que eu definitivamente não quero entrar. Eu não quero que a minha música seja vista – há muita gente que vê música, que não ouve. E isso não é o que eu quero.
E nisso considero-me um caso super bem sucedido. Por exemplo o Raios Te Partam e O Revólver Entre As Flores foram discos que eu tomei muito, muito longe de casa e com a casa bem composta e eu olho para aquele publico e penso “Vocês nunca viram a fronha deste gajo!” Eles nem sequer sabiam quem eu era! Aquelas pessoas ouviram a música!
Mas sendo eu conhecedor e trabalhando muitas vezes na área, se alguma vez fizer um videoclip, aquilo tem que se transcrito tal e qual como eu imaginei. E nunca consegui fazer isso barato – nem ter dinheiro para tal. Mas eu não sou capaz de fazer um vídeo sentado em frente a uma câmara… Nem eu em frente a uma câmara com os meus amigos atrás. Já para fazer teasers para o youtube, fico todo envergonhado com aquela merda.
Vai haver uma grande noticia acerca do primeiro vídeo. Recebi aí um convite, mas não posso falar sobre isso. Mas digo-te se tivesse de escolher 4/5 gajos para o fazer em Portugal, ele seria um deles. E receber um mail do gajo a dizer que queria fazer…
– E ao vivo, quais são os planos?
Quando eu faço música, especialmente a partir d’O Revólver (Entre As Flores), eu faço a pensar em ser interpretada por 6/7 pessoas em palco. E cada um tem uma tarefa muito específica. Faço uma linha de baixo, vai tendo as suas variações, drums a mesma coisa, etc. Mas com o cachet que cobro neste momento é impossível sair de casa com outra pessoa.
– Sentes que há desvalorização?
Se tu queres ser valioso, é como numa empresa. Só és valioso para a empresa se andares ali feito estúpido, se abdicares da tua vida. Eu não abdiquei da minha vida, continuo a fazer o que faço, lanço um disco de vez em quando, de 5 em 5 anos, é normal que a pessoa não saiba quem eu sou, que não ligue àquilo que faço. Eu não posso exigir.
Não me vou virar para alguém e dizer “Olha, cobro 8 mil euros.” “Mas porque é que cobra 8 mil euros?” “Porque tipo, eu e uma colher fazíamos mais que 15 gajos juntos”. Essa malta cobra mesmo muito dinheiro mas trabalharam para isso, são figuras públicas, trabalharam para isso. É um mercado em que eu que não quero estar.
Tens de ser responsável, vamos de encontro à ideia de há bocado. Eu sou um conservador de mim próprio e gosto muito de fazer determinadas coisas, que sou incapaz de fazer em prol de dinheiro e no mercado da música isso funciona muito assim.
Dás a cara para a palhaçada e vais ganhar dinheiro. É o que é, não ha nada a fazer. Se algum dia chegar a um cachet decente que me permita tocar com uma banda, eu vou fazê-lo.
– Até lá…
É triste meu. Da mesma forma que tenho gosto em fazer um videoclip e queria fazer um videoclip caro, qualquer espectáculo deve ser bem programado e devia ser um investimento e nós queremos dar o melhor às pessoas. Eu não sou um gajo de indústria, eu quero dar o melhor às pessoas através da minha música, autorial.
Opá, fogo, as vezes era fixe ter algum dinheiro. No outro dia tava a falar com um amigo meu de uma banda de covers da Nazaré e ele já recebeu cachets maiores que eu. Mas é natural, isto é underground man, é só pra nós!
Fernando Pessoa não digo mas, sei lá, imagina teres o Gonçalo M. Tavares ao lado da Floribella, os dois com um pote, quem enchia o pote mais depressa com moedas?…. Mas depois há coisas como Luiz Pacheco chegar ao final do livro e encontrar “preciso de uma lata de feijão”, por amor de deus não é, só de dizer arrepia.
– É daqueles casos em que a frustração aumenta a densidade da obra.
No mundo profundamente doente ninguém é saudável ou só há um forma de ser saudável que é ser louco.
E eu tenho uma tendência natural para isso, desde miúdo que sou assim. Não te consigo dizer que seja propositado, é algo natural. Seja em que âmbito for, fui sempre o inverso de qualquer coisa e mesmo na vida, aconteceram-me merdas que não lembram a ninguém. A minha vida foi um filme do caralho e só vou fazer 30 este ano. Um gajo quando é assim um bocado mais subversivo… Mas é natural, já acordo assim.
Eu penso muitas vezes sobre isso porque às vezes me deixa numa infelicidade, uma cena um bocado angustiante. Daí também procurar isolamento… Quando falo em misantropia, não sou nem quero ser misantropo… Mas há um logrozito, identificamo-nos mais com o afastamento do que com a proximidade. Um gajo não fica em muito boas mãos mas cá anda.
Fotos de: Tiago Serrano/Shifter
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