João Salaviza: “Vai ser sempre difícil fazer filmes”

João Salaviza: “Vai ser sempre difícil fazer filmes”

19 Novembro, 2015 /
João Salaviza

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O passo em frente de João Salaviza está dado. Montanha, a primeira longa-metragem do jovem cineasta Português, arrebatou plateias em Veneza, Montepellier, S. Petesburgo e Lisboa. Em semana de estreia nacional — distribuído pela Midas, o filme chegará a 14 cidades de Norte a Sul —, conversámos com o realizador para conhecer a sua angústia, metodologia de trabalho e posição face ao estado atual da cultura lusa.

 

Sentiste-te, durante a rodagem do Montanha, a “encher” algumas das sequências?

Antes pelo contrário, até porque filmei muito mais do que foi utilizado. Esta ideia de tentar captar a intimidade e perceber o que os gestos quotidianos de uma família — e em particular a do David — podem dizer sobre eles próprios implica um foco e uma atenção enorme a tudo o que eles fazem, principalmente sendo um filme em que a ideia era filmar o corpo em transformação. Fui obrigado a dar uma importância enorme a tudo o que ele diz e ao que não diz. Gostava até de fazer um filme de vinte horas. Num mundo perfeito, teria feito um filme muito maior.

Filmaste algo que te arrependesses de não ter usado?

Também não. A montagem é um trabalho que passa precisamente por moldar o filme de modo a que ele possa voltar à sua génese, ao seu ponto de partida. Há cenas caras que não apareceram no filme; há cenas que têm um grande valor intrínseco e autónomo que também não entraram, mas que se fossem necessárias estariam lá.

Há mais espaço para o pormenor dentro da longa-metragem?

Acho que não. A duração de uma curta e de uma longa permite não apenas ter filmes maiores ou menores, mas principalmente um maior tempo de trabalho e de convivência com as pessoas com quem trabalhas. Isso torna as relações entre as pessoas mais fortes e mais claras. A atenção aos pormenores, aos detalhes e às histórias que os corpos contam tem muito que ver com o tempo que passei com as pessoas que filmei. De alguma forma, sendo uma longa-metragem, não me queria afastar da premissa que tinha nas curtas. Ter um filme de uma hora e meia permite criar uma relação de afeto com o miúdo que estou a filmar — e que eventualmente é partilhada pelo espectador —, em que cada gesto acaba por ganhar uma razão muito maior do que a sua dimensão prática. Quando o miúdo toma banho, será que a cena é só sobre o miúdo a tomar banho, ou há mais camadas por debaixo dessa aparente superficialidade?

Tudo isso está relacionado com a lógica de observar sem intervir e deixar a câmara filmar?

As cenas são construídas segundo ideias dramatúrgicas que são minhas, mas que são fortemente contaminadas pelos miúdos, em particular neste último filme. Tento nunca filmar coisas que vão contra a natureza deles ou que ache que não fazem sentido. Desde coisas mais amplas — como uma declaração de amor ou o facto de o David esconder da mãe o facto de o avô ter morrido — até coisas mais simples, como o plano do David a comer uma sandes à porta do hospital. As cenas são construídas por mim e por eles numa relação muito próxima. Não parte tanto da lógica dos documentários, em que se deixa a câmara ligada e se espera que a cena desenvolva. Nós estamos juntos a construir uma cena para que depois ela sugira essa aparente naturalidade.

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Como é que se constrói uma realidade arquitectónica e estética — partindo de pormenores como a casa ou os exteriores do bairro — que em nada tem que ver com aqueles rapazes?

Tem que ver, mais uma vez, com o tempo que passamos juntos. O interior da casa foi construído para o filme por nós, mas era importante que todos os objetos e a roupa contassem uma história. Temos de sentir que aquela t-shirt ou aquele sofá têm uma história, que não são objetos de cinema. Por outro lado, esta ocupação que os miúdos têm do espaço na maior parte das cenas implicou que passássemos meses dentro da casa, não necessariamente a ensaiar, mas a viver. Vimos televisão, conversámos… Não quis que os dias da rodagem fossem dias especiais; teriam de ser dias como todos os outros,em que a única diferença fosse a câmara apontada aos atores.

Sentiste-te de algum modo perdido durante as gravações?

Completamente. A primeira semana de rodagem foi catastrófica porque ainda estava a filmar com uma espécie de fidelidade ao guião, o que foi um erro. Rapidamente percebi que o filme teria de ser feito num registo muito mais intuitivo; que teria de ir atrás de intuições sobre o que os miúdos me iam contando, bem como de coisas que iam acontecendo em paralelo com a rodagem. Por outro lado, não há apenas esta angústia do David — que está muito presente durante o filme inteiro —, como também a angústia de um realizador a fazer o seu primeiro filme. Senti-me tão perdido como qualquer um dos rapazes, mas acho que vou sempre sentir isso em qualquer dos filmes que venha a fazer no futuro. Vai ser sempre difícil fazer filmes.

A falha tornou-se uma realidade mais próxima?

Não vejo os filmes como um ato de acertar ou de falhar. Acho que uma pessoa faz os filmes que quer e que consegue. Os filmes são uma consequência das pessoas que estão à frente da câmara e daquilo que um realizador quer filmar. Idealmente, se eu me implico no filme que estou a fazer, ele vai sempre ser uma consequência da forma como eu vejo as coisas que estou a filmar.

A pergunta parte do facto de seres considerado por muitos cinéfilos como um realizador de culto. Sentiste que desta vez não podias mesmo cometer erros?

Não, porque para mim a angústia de filmar tem que ver em primeiro lugar comigo próprio e em segundo com o sentimento de que respeitei a natureza das pessoas que filmei. Para mim, a única responsabilidade é comigo e com eles. A partir daí, tenho também a consciência plena de que o destino de um filme — quando se confronta com a realidade e com as pessoas que o vão ver — é absolutamente incerto e misterioso. Nada me garantia que o filme ia correr bem como tem corrido, mas também não havia muito que pudesse fazer quanto a isso. Não tenho angústias pessoais, tenho angústias profissionais; são angústias do ponto de vista pragmático de quem está a fazer um filme, mas que se resolvem num universo estrito e reservado às pessoas que fazem o filme.

Sentes que ficaste condicionado a um esquema de trabalho semelhante por a tua equipa ser a mesma que fez as curtas-metragens?

Pelo contrário. A partir do momento em que estou a fazer um filme sobre a intimidade, preciso que essa intimidade exista também entre as pessoas que estão a fazer o filme. A intimidade entre duas pessoas só existe porque são duas pessoas, não existe entre estranhos. No Montanha era necessário que a fronteira entre quem faz o filme e quem está à frente da câmara fosse difusa. A prisão seria filmar sozinho num grupo de gente com quem não tivesse uma relação mais do que profissional. Não sou patrão nem tenho pretensões de ser patrão. Quero que estejamos todos a ver o filme com o mesmo desejo. O Vasco Viana não está só a fazer direção de fotografia, está a fazer um filme; a Aracelli [Fuentes] não está só a fazer a maquilhagem, está a fazer um filme. Esta estrutura muito corporativista e dividida em sectores que não se juntam — como nas novelas, em que há pessoas que trabalham no mesmo projeto durante seis meses e não se conhecem — é completamente absurda. A equipa está junta a fazer o filme e cada um segura este elefante. Todos olhamos e sustemos a mesma coisa.

Encontraste o Rodrigo Perdigão — protagonista do Rafa, que também está presente nesta obra — fora do registo de casting. Porquê fazer um casting dito normal para encontrar outro “miúdo de bairro”?

O David veio parar ao casting de uma forma muito acidental, por causa de familiares em comum. Ele não queria vir. Era o único miúdo que não queria fazer um filme. O David chegou lá muito zangado e contrariado; foi isso que me fascinou. A forma como o encontrei foi diferente, mas aquilo que traz ao filme é de algum modo semelhante ao que o Rodrigo trazia, pelo facto de ter uma vivência completamente ancorada nos espaços públicos da cidade de Lisboa; é um miúdo que acorda às dez, onze da manhã, que vai para as arcadas do seu prédio andar de skate e que, se for preciso, só volta a casa no dia seguinte.

Até que ponto é que te sentiste obrigado a resguardar a intimidade do David ou da Cheyenne?

Completamente obrigado. Para mim há uma distância que o cinema nunca pode passar; se estou a fazer um filme sobre a intimidade e os segredos da adolescência, há sempre segredos que não tenho o direito de conhecer nem de filmar. Nunca filmo nada que não queiram que seja filmado. Mesmo as cenas mais íntimas, com beijos ou uma carga afetiva mais forte, são bastante trabalhadas com os atores.

Deduzo que não tenhas podido aproveitar tudo o que eles ofereceram à câmara…

Não, até porque eles são mais novos e provavelmente mais inconscientes do que eu. Jamais filmaria a nudez ou coisas que lhes tirassem a dignidade ou o direito à vida privada. O cinema constrói uma máscara ficcional que permite voltar à verdade de cada pessoa com uma proteção, e que aqui existe, tal como no Rafa já existia. Eles estão a falar das suas vidas protegidos pelo cinema. Por isso é que o cinema é grande.

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Dizes que o trabalho do realizador não passa tanto por dar conselhos, mas sim por perceber como é que o ator se adequa à cena. Onde é que entra aí o input de quem faz o filme?

Para mim é muito importante não me sentir uma espécie de deus ex machina. Não quero ser dono da realidade. Faço cinema pelo desejo de descoberta, pelo prazer da viagem que eu e os atores fazemos. Nos meus filmes, preciso de criar um espaço no décor que permita essa descoberta, mesmo correndo o risco de que o filme vá por caminhos inesperados. Por vezes, pequenos milagres da realidade confrontam por vezes o modo como a rodagem está a decorrer. No Arena, entra uma velhinha pelo plano adentro no final da sequência da ponte, isto quando a personagem do Carloto Cotta atira a bicicleta. O impulso de outro realizador teria sido dizer “corta”; mas eu achei aquilo incrível. O modo como aquela senhora entra no plano revela a habituação que aquele bairro tem à violência. No Rafa, gastei o último rolo de película quando estava a filmar o plano final em que o Rodrigo pega no bebé e olha para cima. Havia outros takes que tinha feito antes, mas aquele olhar para cima era uma espécie de tomada de consciência que o miúdo tinha de que em breve tudo iria ser diferente. No Montanha, a cena em que o David aparece a andar de cadeira de rodas pelo quarto parte da exaustão dele no dia em que filmámos a sequência do hospital Santa Maria. Farto de esperar, o David roubou uma cadeira à enfermaria e nas horas em que esteve à espera aprendeu a equilibrar-se. Mais tarde decidi filmar isso.

Uma das últimas cenas do filme tem um lado quase voyeurista. Como é que se filma uma cena de sexo entre adolescentes, resguardando a inocência deles?

Eu filmo a intimidade durante todo o filme, mas de repente surge essa sequência, em que do ponto de vista físico há maior contacto, mas que é das cenas mais solitárias do Montanha. Uma primeira experiência sexual — independentemente do que acontece — pode ser uma experiência de uma solidão profunda, que é a de estar sozinho mesmo acompanhado por outra pessoa. O que estou a filmar não é tanto o sexo, mas a solidão de cada um naquele momento. De qualquer forma, foi tudo feito com muito cuidado. Foi uma cena muito falada. Eu próprio tive maior pudor do que eles. A sequência é filmada em grandes planos ora de um ora de outro, embora tenham estado sempre juntos.

A ideia de retratar o David tenso e infeliz depois dessa cena partiu de ti?

O filme tem um contraponto, que é o facto de tanto a felicidade como a angústia poderem surgir em simultâneo. Mesmo depois de ele ter ficado a primeira vez com a Paulinha [personagem da Cheyenne Domingues], há sempre o lado de sombra, que retrata a morte iminente do avô. Naquele momento em que ele sai de casa da Paulinha, há quase uma sensação mística de que ele antecipa o que vai acontecer passada meia hora. Essa é uma cena de passagem que nos liberta de tudo o que aconteceu até ali, mas que já prevê o que vem depois. É por isso que ele para e não vai logo para casa; primeiro fica nas escadas, cospe, anda um pouco e fica a ver o amanhecer. Esta ideia do corpo que se transforma a cada dia pode ser tão determinante que, se nós pensarmos na cena do início em que o David é acordado pela mãe, temos ali um corpo franzino e frágil, desprotegido — é muito mais uma imagem da infância. Consequentemente, no travelling em que ele sai de casa da Paulinha, percebe-se que ele cresceu; percebe-se que já não é a mesma pessoa.

O David e a mãe acabam o filme exatamente como o começaram, ainda que num contexto diametralmente oposto. No início vemos a personagem da Maria João a proteger o filho e no final temos o inverso. A ideia era deixar claro que a passagem para o estado adulto se dá quando passa a ser o filho a proteger os pais?

Acho que há duas experiências que filmei que são muito violentas: a primeira é o corte radical da infância — mesmo que aos dezasseis ainda haja os últimos vestígios dessa fase presentes —, que chega com a consciência da morte. O fim da infância acontece — a menos que haja um trauma — quando nos começamos a aperceber de que as pessoas de quem gostamos afinal não são imortais e que também podem morrer. Por outro lado, há a consequência da percepção dessa realidade, que é o momento em que se sente que vamos ter de proteger os nossos pais de alguma forma, quando sempre foi ao contrário. No fim do filme, dá-se o primeiro momento em que o David decide efetivamente proteger a mãe. O Montanha acaba exatamente quando sentimos que ele deu o primeiro passo para outro estágio qualquer.

Tanto a família do Rafa como a do David têm algumas semelhanças: existe uma irmã pequena para cuidar, uma mãe frágil e um pai inexistente. O que te levou a construir as personagens sem uma figura paternal?

Eu gosto muito de pensar como é que dentro de uma família cada pessoa representa outras funções para além daquelas a que está destinada. O modelo tradicional da família “pai, mãe, filha, filho e cão” também tem imensas nuances, é claro. A história parte de um miúdo que está numa encruzilhada de imensas coisas. Mesmo dentro da família, ele não é só um filho; transforma-se em quase pai da irmã mais nova; há um lado muito adolescente na Maria João Pinho que desequilibra a relação dos dois e dá a entender que não existe uma figura realmente maternal. O Stig Dagerman — um escritor sueco de quem gosto bastante— fala muito sobre estas famílias disfuncionais num contexto nórdico; o que sinto sempre que o leio é que dentro de cada família nunca somos só uma coisa num determinado momento; nunca somos só o filho ou o pai. Estes papéis familiares são permanentemente transformados em função das circunstâncias, e a mim interessou-me filmar isso.

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O plano inicial seria filmar o Montanha perto da zona onde cresceste. Sentes que terias tido uma abordagem diferente com o guião se a geografia tivesse sido mais próxima da tua infância?

Provavelmente quereria ter revisitado alguns dos lugares onde me movimentei na adolescência. Por outro lado, o que fiz foi continuar a trabalhar a ideia de memória mesmo fora dos locais que conhecia. Há muitas coisas no filme que são, de facto, memórias da minha adolescência; a cena da discoteca em que ele vê a Paulinha e o Rodrigo a beijar-se remete para uma discoteca que era o Rookie — um sítio mítico do bairro alto onde hoje é uma casa de fados — em que os skaters, o pessoal do punk, do hardcore e do hip-hop lisboeta se reuniam. Não tendo filmado no local exato, tentei transformar essa atmosfera e atualizá-la.

Demorou a construir a ligação forte que vemos entre o David e o Rodrigo?

Eu apresentei-os alguns meses antes da rodagem. A partir daí, começaram a construir uma relação entre si e com a própria Cheyenne, que depois impregnou o filme. Quando lhes pedia algo, explicava sempre que se conheciam melhor um ao outro do que eu. Eles iam sair à noite nos fins-de-semana de rodagem; depois voltavam, contavam histórias e nós filmávamos essas histórias. Ouvi-os inclusive a falar de uma situação que o Rodrigo viveu — e que passou bastante nas notícias —, que tem que ver com uns miúdos da linha de Sintra que morreram afogados numa pedreira. Esses miúdos eram da mesma escola do Rodrigo. Mais tarde pedi-lhe para contar o mesmo para o filme.

Porque é que o ponto de quebra entre os dois se dá com a mota e não com a rapariga que amam?

A força dessa cena tem que ver com isso. Eles estão a discutir a mota porque o David não tem coragem de assumir que sente que o Rodrigo lhe roubou a miúda. O David tem muito essa lógica de ir por caminhos alternativos às coisas que quer entender ou discutir. Na cena anterior, estão os dois a andar de mota e ele pergunta-lhe se tinha dormido com a Paulinha; o Rodrigo dá-lhe sempre respostas muito evasivas até que ele diz “vamos queimar a mota”. Queimar a mota é a única coisa que ele pode fazer em relação ao Rodrigo, porque em relação à Paulinha não sabe o que fazer.

A mulher — seja a adulta, a adolescente ou a criança — tem uma vivência menos atribulada no filme; os homens, sejam eles o Carloto ou o David, desesperam pelo amor da Cheyenne ou da Maria João e elas ignoram-nos. Foi propositado?

Se calhar é como nos filmes do Godard, em que os homens saem tramados pelas mulheres [risos]. Não me interessa minimamente filmar a mulher como uma muleta narrativa dos homens, como se vê em imensos filmes. A história do cinema infelizmente é uma história dos homens. Há poucas atrizes que tenham sido protagonistas, tendo isso transcendido a sua beleza física. Filmar a Cheyenne desta forma tem que ver com o facto de ela se encontrar — na vida e no filme — num estágio de maturidade ligeiramente avançado em relação ao dos miúdos. Eles estão a descobrir a miúda com quem cresceram a transformar-se em mulher antes de eles se transformarem em homens. Por isso é que há aquela cena em que a Paulinha acende um cigarro e o David lhe pergunta: “agora também fumas? Por onde é que tens andado?”. Sente-se que há uma vida que ele já não pode controlar e na qual ele não participa. Tudo isso se conclui naquela festa da casa com piscina em que há tipos mais velhos do que ele. Ele parte destemido, no alto dos seus quinze anos, e traz Paulinha para casa. Como ela ainda não se sente confortável com homens mais velhos, procura esse conforto no amigo.

Também há o oposto. A figura da Alice aparece só para ser usada…

Aí há uma coisa puramente adolescente, que é o beijo fortuito com a miúda que está ao nosso lado; em que não se percebe realmente quem é que quer beijar quem. Mas isso reforça ainda a mais a ideia de o David estar sozinho, porque quando o vemos na cena seguinte, ele está ainda mais triste do que estava dantes e tenta enganar o Rodrigo no autocarro, dizendo-lhe que vai visitar a Alice. Depois tem a mesma conversa com a Paulinha; finge que está contente por ter conhecido uma miúda, mas quanto mais ele fala nela, mais nós percebemos que ele quer é a Paulinha, apesar de ele próprio ainda não se ter apercebido disso.

Salvo raras exceções, o filme vive apenas dos sons da cidade e das vozes dos atores. Sentes que a música, na relação com as tuas obras, parte mais da sua ausência do que da sua demarcação?

Sempre utilizei pouca música nos meus filmes, e agora pela primeira vez tenho algumas sequências com música, mas é sempre música de cena, música diegética. Quando eles estão os três a ler o livro, ouvimos o Puto Português, com uma música que é o Ta Male, e que provavelmente vem da aparelhagem de um vizinho. Mais à frente, ouvimos as músicas que o Norberto Lobo fez num registo muito diferente do habitual. Pedi-lhe para fazer as duas músicas que ouvimos na discoteca; sugeri que se aproximassem à música que os Lightning Bolt fazem só com uma guitarra e baixo. Mas até essa música aparece como som de cena. Finalmente, há o Paranoia, que é um trance meio psicadélico, sugerido pelo David. Gosto que as músicas estejam relacionadas com os espaços e com as personagens e não tanto com a ideia de comentar o filme como são usadas noutros filmes, em que surge o piano para reforçar a tristeza. Recuso-me a fazer esse tipo de coisas. Gosto que a música venha do chão e não de cima.

Ainda no lado técnico. Parece voltar a haver no Montanha — em contraste com o Rafa ou Cerro Negro — um regresso à luminosidade (sobretudo nas cenas diurnas na urbe), tal como no Arena. Porquê trazer a luz de volta?

Eu acho que o Arena é um filme sobre um tipo que vive na clausura e que procura a luz, enquanto que no Montanha — e apesar de haver muitas cenas em que se sente a presença do Verão —, há um sentido de resguardo que o David procura nas sombras e na noite. As cenas verdadeiramente fulcrais acontecem à noite. As personagens podem-se revelar a elas próprias na escuridão mais do que na luz. Há esta coisa quase vampiresca de um miúdo que foge da luz para viver à noite. É uma coisa meio sonâmbula, ele parece que nunca dormiu muito. A própria cena em que ele finalmente discute com o Rodrigo começa de dia e acaba de noite, apesar de ser um só plano. A dada altura passa um comboio e os postes de iluminação acendem porque fica de noite.

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É curiosa a reação do David às chamas. Ele fica durante bastante tempo a ver a mota arder. Foi indicação tua?

Eu pedi-lhe que saísse quando achasse que devia sair, mas que confirmasse que a mota ardia. Há esta coisa muito catártica no fogo, e eu sentia a falta de algo que desse sentido ao título do filme. Faltava natureza para chegar à Montanha. Ali era muito importante ter a presença de um elemento natural que fosse um contraponto ao lado urbano do filme. Era importante que tivesse uma espécie de deslumbre, de tomada de consciência na presença do fogo.

Como é que se faz o balanço do fascínio que existe entre os não atores e entre os atores?

O meu fascínio pelos atores é da mesma ordem que o fascínio pelos não atores. O que me interessa neles não são os seus talentos de representação nem o seu currículo, mas precisamente coisas das suas vidas. O Carloto já conhecia bastante bem; há um lado nele que é bruto, suave e angustiado ao mesmo e que eu quis filmar. O mesmo aconteceu com a Maria João Pinho, que tem uma angústia adolescente— mesmo depois dos trinta — muito forte para a personagem de uma mãe, sendo que ela não é mãe na vida real. Esqueço-me quando estou a filmar de quem são os atores e de quem são os não atores.

Dizias que poder fazer este filme é uma sorte, dada a conjuntura. Como é que um realizador premiado em Cannes e Berlim ainda pode estar sujeito à sorte dos tempos?

Há mais luta do que sorte nisto tudo, mas sou um privilegiado por conseguir fazer os meus filmes da maneira que queria até aqui, como o Miguel Gomes explica no início do As Mil e Uma Noites. Mas também não posso cair neste discurso autoculpabilizante, nesta culpa cristã de que uma pessoa tem de se sentir culpada e pagar o preço de fazer aquilo em que acredita. Fazer aquilo de que gosto e em que acredito também exige lutar imenso contra antagonismos externos, muitos deles que em nada têm que ver com o filme, mas com a classe política, com um país absolutamente despreparado para tudo o que seja diferente.

Vês-te com maior esperança depois da queda do governo de direita? Há muitos artistas que dizem que foi dos piores governos a gerir a cultura em Portugal.

Foi o pior. Foi o governo mais profundamente ideológico de todos os que existiram no nosso país. Nomearem para Ministra da Cultura — mesmo neste governo de fantochada de dez dias —, uma tipa que votou contra direitos dos homossexuais… Para mim era o suficiente para que ela nem fosse deputada. Este pensamento é perigosíssimo porque tem que ver com tudo; tem que ver com os filmes, com a intimidade, com os direitos individuais. Um governo que fecha o Ministério da Cultura é um governo que nos diz que só há uma forma de pensar e olhar as coisas, e que só ele sabe que forma é essa. Eles querem controlar absolutamente tudo; é uma espécie de fascismo o que estes tipos tentam impor. É claro que não vou comparar estes fantoches que nos governaram com o Estado Islâmico; no entanto, em todos os sítios onde houve governos que tentaram promover o pensamento único, as primeiras coisas que se destruíram foram a educação e a cultura, por isso não deixa de ser paradigmático que a cultura tenha sido aniquilada e que quase tenha deixado de existir financiamento para o cinema — com o famoso ano zero em 2012, em que não houve filmes apoiados. Se estes três partidos se conseguirem entender, tenho a certeza de que vão voltar a investir na cultura, percebendo que ela gera uma riqueza mais importante, que é a riqueza emocional e intelectual.

Depois do Montanha, que encerra o capítulo das curtas, há a nostalgia do que se fez e agora já não se pode fazer mais?

Não. Há o desejo de fazer o filme a seguir [risos].

Fotos: Guilherme Braz/Shifter

Autor:
19 Novembro, 2015

O Henrique Mota Lourenço é redactor de cultura do Shifter. Estuda Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa.

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