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Baby Reindeer não é isto ou aquilo. É muita coisa ao mesmo tempo

Baby Reindeer não é isto ou aquilo. É muita coisa ao mesmo tempo

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Baby Reindeer não é a série mais brilhante, mais justa, muito menos a que me serve melhor. Mas tem pontos de interesse que vale a pena analisar.

Aviso: este texto contém referências relacionadas com abuso sexual, pelo que aconselhamos precaução se esse tema for um gatilho para ti. Também contém spoilers e referências a cenas da série.

“Quero apresentar uma queixa. Como devo proceder?”. Logo nos primeiros minutos de Baby Reindeer, série original do Netflix criada por Richard Gadd, percebemos ao que vamos. No canto superior esquerdo, um aviso de possibilidade de gatilho pela existência de cenas relacionadas com abuso sexual confirmam. Donny Dunn, Richard Gadd em personagem, encara a câmara ao estilo britânico e parece trazer um convite muito direto: vai contar-nos uma história difícil, e a partir do momento em que a soubermos passamos a ter uma responsabilidade. 

Desde que estreou há umas semanas, Baby Reindeer tornou-se um fenómeno difícil de controlar. A história baseia-se nas vivências do humorista escocês Richard Gadd e mais do que uma passagem pelas páginas do seu diário é uma espécie de viagem por sessões de terapia em que vai abrindo novas portas que nos permitem compreendê-lo. A primeira história que decide contar, que se torna a grande narrativa da série, é o motivo que o leva à cadeia para fazer uma queixa: ao longo de vários anos uma mulher perseguiu-o até à exaustão — escreveu-lhe 46 mensagens no Facebook, 41071 emails, enviou-lhe 350 horas de áudio, apareceu diariamente no lugar onde trabalhava e nos shows de stand up que fazia ocasionalmente. Tudo começou com uma chávena de chá. 

Martha é o nome da stalker de Donny Dunn. Se encararmos a história como um produto de ficção da Netflix, mesmo tendo consciência de que se baseia em factos verídicos, pouco interessa se Martha é ou não o nome real da pessoa em quem Richard Gadd se inspira para a sua personagem. Martha é uma mulher que se apresenta como uma advogada que conhece pessoas super importantes e que pára um dia num pub em Camden Town para beber um chá. É atendida por Donny Dunn, um aspirante a humorista que trabalha ali apesar de ter sonhos maiores. O início da relação entre os dois parece quase uma inevitabilidade: Martha diz não ter dinheiro para beber nada, Donny oferece-lhe um chá porque empatiza com ela. E embora possa sentir, num primeiro momento, que há qualquer coisa na postura de Martha que não bate certo, decide confiar. Com o tempo, Martha vai aparecendo uma e outra vez, e Donny vai-lhe dando mais espaço.

O que se segue nesta teia de aparentes inevitabilidades é a história que leva Donny Dunn até à esquadra para fazer queixa de Martha. E passou muito tempo desde aquela primeira chávena de chá no pub. Durante todos esses anos, houve vários motivos que demoveram Donny de apresentar uma queixa formal. É a complexidade da teia feita de todos esses motivos que torna Baby Reindeer uma série interessante — mas também é a exposição crua do processo mental de Donny Dunn, sobrevivente de abuso, que tem dado azo ao caos que tem sido a sua recepção. 

Baby Reindeer tornou-se uma experiência meta: com a estreia da série começou uma caça à verdadeira Martha. E uma série cujo foco estava (ou poderia estar) no abuso e nas muitas camadas que compõem a experiência de um sobrevivente logo se tornou num espetáculo mediático que parece não ter fim. Richard Gadd pediu publicamente para não tentarem desvendar a real identidade de Martha porque esse não era o ponto da série; Piers Morgan entrevistou uma mulher que diz ser Martha; a realidade e a ficção começaram a misturar-se. E tornou-se impossível separá-las sempre que falamos sobre Baby Reindeer

Donny Dunn (Richard Gadd) e Martha (Jessica Gunning) em Baby Reindeer / Cr. Courtesy of Netflix © 2024

Antes de tudo, a densidade

Na imprensa internacional, as comparações com I May Destroy You, série de Michaela Coel para a HBO, foram surgindo como uma inevitabilidade. Tal como Baby Reindeer, I May Destroy You (2020) baseia-se na história de abuso de Michaela Coel — que não só escreveu o guião da sua própria história como é a protagonista e faz de si mesma. No caso de I May Destroy You, o episódio traumático de Coel acontece numa noite cujas memórias lhe vão surgindo com pouca clareza; não se lembra bem do rosto do homem que a violentou, era um desconhecido. E um dos pontos mais interessantes da forma como nos vai contando a história são os diferentes níveis de abuso que se apercebe ter vivido com pessoas com quem foi estabelecendo diferentes tipos de relação. 

Coel mostra-nos, por exemplo, que o abuso pode acontecer numa relação aparentemente consensual. Arabella, a personagem principal interpretada por si, é uma jovem escritora empoderada, que parece ter controlo sobre tudo na sua vida — se lhe apetecer ir até Itália atrás de um homem por quem está apaixonada, vai; se lhe apetece fumar na sala de casa enquanto vê televisão, fuma; se lhe apetece sair à noite e conversar com estranhos, sai e conversa. São as memórias do seu corpo que um dia lhe mostram que algo de errado aconteceu; alguma coisa que saiu do seu controlo. 

A forma como Michaela Coel nos conta a história de Arabella é revolucionária pelo olhar que traz a partir da sua própria história. É a perspetiva de uma mulher sobre a memória do episódio de abuso por que passou, as tentativas de o ultrapassar, a crueldade de ter que provar que aconteceu, a solidão de quem vive um episódio traumático que pouca gente parece conseguir compreender. Ao mesmo tempo, é a história de uma mulher negra que se recusa a ser colada à categoria de vítima e que traz todas as suas referências e o contexto no seu entorno para primeiro plano. Não é mais uma história de ficção sobre abuso. 

Da mesma geração de Coel, Mae Martin trouxe uma outra narrativa sobre abuso. Em Feel Good (2020-2021), Martin também é a personagem principal de uma história que se baseia na sua. A narrativa principal mostra-nos a sua relação com George, uma jovem londrina que até então só se tinha envolvido com homens cisgénero, e a sua luta por uma vida em sobriedade; mas quando começamos a descobrir a origem de alguns dos seus padrões de comportamento, percebemos que há uma história de abuso que Mae recusa recordar. Há um ponto em comum entre Mae e Donny Dunn: ambos são humoristas em início de carreira  e há alguém que se aproveita do lugar de poder que ocupa em relação a eles. Mas a história de Mae Martin — que também surge no especial de stand up que fez para o Netflix — não está propriamente num primeiro plano. A série Feel Good não é sobre isso.

Com Baby Reindeer surge uma outra forma de falar sobre abuso. E o que estas três séries nos mostram é que é possível contar histórias de abuso com densidade, a partir de diferentes lugares, com diferentes particularidades. Nos três casos, há um processo de canalizar a dor para um objeto artístico que decidem partilhar com o mundo. 

O que chama à atenção em Baby Reindeer é que o protagonista é um homem cisgénero que, numa primeira instância, é perseguido por uma mulher mais velha do que ele e parece alimentar essa perseguição. Como diria Teri, uma personagem por quem Donny se apaixona e de quem falarei mais à frente em detalhe: ele parece gostar desta atenção. Depois, é ser vítima de abuso sexual por parte de um homem que admirava, e cuja relação acredita que trará frutos ao seu futuro como humorista — escusado será dizer que entretanto também já foram apontadas várias identidades para este homem, tendo alguns amigos de Gadd de fazer um comunicado a desmarcar-se. E nas entrelinhas desses dois abusos, vemos Donny à procura de si mesmo. A forma como Richard Gadd escolhe contar a sua história é, aparentemente, o mais próximo possível de viver dentro da cabeça dele: empatizamos, sentimos repulsa, questionamos comportamentos do próprio Donny. Mas em momento algum Gadd tenta romantizar a sua personagem e torná-la mais agradável. 

Há, aliás, várias coisas condenáveis em Donny. E esta personagem pode ser-nos útil para pensarmos na linha que separa a representação de uma realidade e a perpetuação de estereótipos e violências. Essa conversa faz-se nas camadas cinzentas. Algumas das críticas que lhe foram feitas no X diziam que a série era machista, homofóbica, transfóbica e gordofóbica. Será a série tudo isso, ou será Donny Dunn algumas dessas coisas em determinados momentos? Enquanto espectadores, teremos capacidade de o perceber e tirar ilações? 

Sendo Donny a personagem que nos guia ao longo de toda a série — a história é contada a partir da sua perspetiva — , é fácil (e justo, por vezes) rotularmos a série com alguma dessas características do seu comportamento. Mas é importante analisarmos para lá do rótulo. Numa narrativa paralela à história com Martha, descobrimos um Donny mais jovem que decide ir tentar a sua sorte para Edimburgo, onde todos os anos decorre o Fringe Festival. Donny é um underdog, não tem conhecimentos na área, e um dia, fruto do acaso, acaba por chegar a uma zona privada para os VIPs do festival e conhece um dos autores de uma das suas séries favoritas, Darrien. Naquele momento ainda não sabe, mas será o seu abusador. 

A partir desta história de abuso surgem vários pontos interessantes de analisar: depois desta relação não correspondida com o autor-ídolo (chamemos-lhe assim), Donny parece sentir alguma culpa do que aconteceu e acaba por regressar a casa do agressor. Este gesto de vulnerabilidade traz autenticidade à história — quem o diz é a psicóloga Catarina Barba, que falou sobre o assunto num dos últimos episódios do podcast Voz de Cama, e que é especialista no tema. Depois, Donny entra numa relação de distanciamento com o seu corpo e começa a envolver-se com muitas pessoas, de diferentes géneros. E se por um lado pode surgir a sensação de que Donny só se começou a relacionar com homens depois do abuso — análise que cai no estereótipo “comecei a ter relações homoafetivas porque fui abusado” — , ao longo dos episódios vamos percebendo que Donny teve de lutar contra a sua própria homo e bifobia internalizadas. E a experiência bissexual de Donny Dun — no limite, de Richard Gadd — não é menos válida por ser mais problemática. Ele sente o que sente e passa por muitas batalhas internas que são comuns a outras pessoas na vida real. Não falar sobre elas não é solução para que deixem de existir. O mesmo acontece com Mae Martin em Feel Good.

Depois de nos apresentar a sua abertura sexual pós-episódios de abuso, Donny diz que começou a inscrever-se em apps de encontros com pessoas trans*. É numa dessas apps que, sem estar a contar, tropeça na primeira pessoa por quem sente algo forte em muito tempo: Teri.   

Teri e a inteligência emocional 

Ela é, provavelmente, a personagem mais interessante de toda a série. Teri é uma psicóloga bem sucedida e bem resolvida, que se apaixona por Donny com a ideia de que ele trabalha nas obras — é a história que ele inventa para a personagem que criou nesta app, e que não desmente à medida que se vão aproximando. A relação é mantida em segredo, e a justificação de Donny é Martha; se forem discretos, Teri não estará em perigo. Mas há uma cena no metro, depois de um jantar romântico, em que percebemos que Martha podia ser uma ameaça, mas não era o único motivo.

Desde a criação de uma persona à cena do metro, tudo indica que Donny sente que não é suposto ele relacionar-se com pessoas trans*. Mesmo no caso de Teri, com quem parece estar a desenvolver uma relação romântica, vemos que embora tenha acesso a uma pessoa que ele é apenas na intimidade, ela sabe menos sobre a vida real dele do que a própria Martha. E tudo aqui é problemático. Mas não há dúvidas: nesta história entre Donny e Teri, ele é o problema. Teri é a personagem que demonstra mais inteligência emocional, sabe o que quer, embora queira manter esta relação, sabe quais são as suas linhas vermelhas. Teri vive sozinha, tem um espaço só para si, decorado à sua maneira, tem amigos que a querem ver bem e acaba por ter um final feliz — longe de Donny. 

A interpretação magistral de Teri é de Nava Mau, atriz mexicana que já tinha passado pela série Generation. Numa entrevista com a GQ, Nava Mau diz que o que a convenceu a ficar com o papel foi a forma como a sua personagem estava escrita: “A Teri não tem dúvidas sobre quem é (…) Ela praticamente não vai tolerar nenhum ataque a seu respeito”. Embora Teri não seja a personagem principal, ocupa um lugar central na narrativa e, ao contrário de grande parte das personagens trans* escritas por homens cisgénero na história do cinema e da televisão, não tem traços estereotipados, não tem um final trágico, é dona do seu destino. 

Isto não é apenas um pormenor quando o panorama de Hollywood, historicamente, fecha as personagens trans* em categorias que se vão repetindo. Não é uma generalização: vemo-los reunidos no documentário Disclosure (2020),  de Sam Feder, e no trabalho académico de Joelle Ruby Ryan. Ryan organiza estes padrões em três categorias: transgender mommy (a personagem cuidadora, quase sempre sem vida amorosa e/ou sexual), transgender deceiver (a personagem que utiliza a expressão de género como ferramenta para enganar outras pessoas), transgender monster (a personagem que comete crimes) . 

Nava Mau acredita que o facto de Teri ser, também, inspirada numa ex-namorada de Richard Gadd ajuda a acrescentar alguma fiabilidade à personagem. A sua história baseia-se na de uma pessoa que foi próxima de Gadd, uma pessoa real; não assenta em ideias feitas nem surge apenas para servir a história como token. E mesmo que possa ter um lado fetichista na vida de Gadd, Teri agarra a sua própria história de uma forma que não a subjuga a um lugar de subalternidade.  

Nava Mau, Teri em Baby Reindeer. Cr. Courtesy of Netflix © 2024

A relação com Donny não tem só momentos negativos, mas é muito marcada pelos que vão acontecendo. Depois da cena no metro, e de Teri perceber que não sabia quase nada sobre o real Donny, separam-se. Voltam a aproximar-se e estabelecem uma relação de confiança e maior proximidade, mas acabam por terminar a relação de vez. Um dos gatilhos é um ataque de Martha, stalker de Donny, uma das cenas mais duras da série a par das situações de abuso que Donny viveu. E tão grave quanto o ataque de Martha a Teri é a indiferença das pessoas que assistem e o facto de Donny não apresentar queixa. 

Embora passe por momentos problemáticos ao longo da série, e chegue a entrar numa espiral depressiva, é interessante notar que o arco da personagem termina em bom. Num dos últimos episódios, Donny vê Teri com um novo namorado, a sair do seu apartamento, e aparentemente feliz; percebe que ela seguiu em frente. Nava Mau disse publicamente que para si foi reconfortante perceber que Teri teve o seu “final feliz”. “A Teri arranjou um novo namorado, ela não perdeu os seus amigos, não perdeu o emprego, não perdeu o seu sorriso. Ela está bem. E eu acho isso ótimo, porque grande parte das vezes vemos histórias de pessoas trans que terminam com elas magoadas”, disse também à GQ.  

Nava Mau tem recebido o merecido reconhecimento mediático, mas surgiu uma história no X que é impossível ignorar e adensa a importância deste capítulo. Reece Lyons, atriz britânica, fez uma thread na qual conta que Richard Gadd a procurou e convidou a fazer um casting para a personagem Teri enquanto, ao mesmo tempo, a ia convidando para sair. A reação de Reece em relação ao guião não foi tão positiva quanto a de Nava Mau — até porque, conta na thread, como se estava a aproximar de Richard Gadd deu por si a questionar se ele a trataria daquela forma na vida real. A justificação que lhe deu para ter não ficar com o papel foi que “a Netflix estava à procura de alguém que já fosse uma estrela”. 

Reece Lyons pode não ser uma estrela, mas não é uma desconhecida: há três anos foi protagonista da peça Overflow, um monólogo escrito por Travis Alabanza (que também escreveu o livro None of the Above), apresentado no Bush Theatre, em Londres. Também tem feito um caminho assinalável na luta por mais lugares para pessoas trans* em papéis na ficção. Inclusive papéis que não sejam só para personagens trans*. Numa peça recente do Guardian, Lyons diz que existe transfobia internalizada no meio e que nenhuma pessoa trans* conseguirá ter uma carreira se só for escolhida para fazer papéis trans*. A luta de Lyons mostra-nos que devemos celebrar o final feliz de Teri, mas que há muito por conquistar. O “final feliz” não é um fim em si mesmo. 

A fórmula Netflix

Não sejamos ingénuas: a história de Richard Gadd serve os parâmetros da Netflix. A história prende, está escrita para o binge watching, tem vários momentos de clímax. No fundo, tem tudo aquilo que o cinema de Nani Moretti não, como representado numa das cenas mais icónicas do Sol do Futuro: momentos what the fuck, plot twists, um, ou vários climax ao longo da série pelos quais não temos de esperar muito. Apesar da densidade da história, o produto audiovisual é constrito à fórmula Netflix – que lhe permite “ser traduzida para mais de 90 países”.

Adaptado à fórmula, Baby Reindeer troca algumas nuances e subtilezas importantes por uma jornada errante que culmina, invariavelmente, em sucessivos becos dos quais parece não haver saída. Não há jornada, não há herói, não há moral; há uma história densa contada a um ritmo alucinante e com uma crueza em alguns momentos quase voyeurística – e que dá à série contornos de reality show.  

Mas a cedência à fórmula Netflix não deve ser visto como um demérito, fazer parte de um enquadramento Netflix tem, ao mesmo tempo, alguns pontos igualmente interessantes — resultado da possibilidade de investimento na produção. A série teve uma coordenadora de intimidade para o desenho e coordenação de cenas de sexo — um requisito da própria Netflix para filmes e séries que justifiquem. Neste caso foi Elle McAlpine, a mesma coordenadora de intimidade de Poor Things, o penúltimo filme de Yorgos Lanthimos, que vem da escola de Ita O’Brien, uma das pioneiras da coordenação de intimidade e responsável pela coordenação de I May Destroy You. Na altura em que Michaela Coel ganhou um BAFTA, dedicou-lho. Richard Gadd ainda não falou publicamente sobre a experiência de gravar com uma coordenadora de intimidade, apenas Nava Mau o referiu em entrevistas. 

A série teve também um consultor queer que trabalhou na revisão do guião e no aconselhamento da construção de cenas. Jeffrey Ingold, o consultor, escreveu um artigo de opinião para o Guardian em que defendia a importância de vermos histórias como esta na tela. “Quando li esta cena [de abuso por parte do Darrien] pela primeira vez, no guião original, eu soube que ia ser dolorosa para muitos homens gay e bi. Perdi a conta ao número de homens queer na minha vida que partilharam histórias angustiantes de terem sido aliciados ou abusados sexualmente”. E Jeffrey Ingold acredita que essas histórias negativas, que acontecem dentro da própria comunidade LGBTQI+, também devem ser contadas. 

Baby Reindeer parte de duas peças cómicas que Richard Gadd já tinha apresentado pelo Reino Unido, a homónima Baby Reindeer e Monkey See Monkey Do. O ambiente de sala de teatro é certamente mais controlado, e as reações a esses espetáculos a que temos acesso estão disponíveis em sites como o Reddit. Mas, claro, surgiram com mais força agora que Baby Reindeer é um sucesso Netflix. O fator gigante-do-streaming traz outros públicos e outra projeção. Com os avisos de gatilho que a série tem de ter, é pouco provável que alguém a veja ao engano, mas não há como escapar ao circo mediático que se gera em torno do conteúdo. E do tema do abuso. 

A opção não é não falar sobre e fingir que não existe. Sabemos que a projeção também pode trazer empoderamento a sobreviventes — várias pessoas disseram reconhecer-se nas histórias de I May Destroy You e em Manchester houve um aumento de procura por ajuda por parte de homens cisgénero desde que Baby Reindeer estreou.

Reconhecermo-nos no que vemos, por muito doloroso que possa ser, pode ter um efeito de encorajamento para pedir ajuda ou, numa primeira instância, servir como referência para sinalizar o problema. No caso de Baby Reindeer, com a história entre Donny Dun e o autor-ídolo, a série parece ter servido de alerta para as vítimas, aumentando consideravelmente o número de denúncias . Mas, por outro lado, também terá desencadeado uma parte problemática: capitalizou o stalking

Imbuídos no espírito imersivo, espectadores da série concentraram esforços para encontrar os verdadeiros Martha e Darren, perseguindo quem achava que podia ser pelo caminho.  O rótulo de “história verídica” ou “true crime” serve como uma tocha atirada a uma floresta, com muitos espectadores a assumir o lugar de detective na trama. A Netflix sabe e alimenta(-se) (d)essa relação entre o espectador e os detalhes mais insólitos da história verdadeira — no Reino Unido, partilhou os números de mensagens enviadas por Martha numa espécie de gráfico, desfocando mais uma vez as barreiras entre a realidade a ficção. De resto, o true crime é um dos subgéneros mais populares e rentáveis da Netflix

O abuso não é um espetáculo, mas de certa forma a Netflix vive desse espetáculo. Vejamos como uma história inspirada em factos verídicos, que se apresenta como tal, explora os traços das personagens até à exaustão como se fossem… meras personagens. Como se uma produção audiovisual fosse um terreno de ninguém, onde tudo é válido e não podem existir consequências. Entre o espetáculo que se tem gerado no pós-série, pessoas da vida real tornam-se personagens e assistimos a uma continuação do que vimos em sete episódios de série, mas agora em tempo real. E somos, também nós, espectadores, personagens desta história. 

E se Martha fosse diferente? 

Esta caça às personagens da vida real não aconteceu com I May Destroy You ou com Feel Good. Mas o investimento na promoção destas séries também não foi proporcional a Baby Reindeer — nem a sua popularidade, consequentemente. Tentar perceber porquê é navegar em suposições que talvez não sejam assim tão descabidas. As personagens principais de I May Destroy You e Feel Good são uma mulher negra, no primeiro caso, e uma pessoa não-binária e a namorada, no segundo; em Baby Reindeer é um homem cisgénero bissexual e a sua stalker. Nas séries de Michaela Coel e Mae Martin o abuso é um ponto essencial à narrativa, mas há história para lá desse tema; na de Richard Gadd a história para lá do abuso é o tema principal, o stalking (outra forma de abuso).  E há outro fator “surpresa”: nesta última, a vítima é um homem, que socialmente não se espera que esteja neste lugar. 

Também a stalker de Donny Dun ocupa um lugar central na história. Desde logo, o nome da série está relacionado com ela, a principal imagem de promoção mostra-nos Martha a guardar Donny num copo de vidro, a gargalhada que dá constantemente e que se ouve na sala inteira tornou-se uma piada da internet. É a atriz Jessica Gunning que brilhantemente dá vida a Martha. E a aparência de Martha também não pode ser ignorada: é uma mulher gorda, quase sempre de saia ou vestido, numa tentativa constante de estar bem arranjada. A aparência de Martha pode até ser inspirada na real stalker de Richard Gadd, mas ao longo da série vão surgindo comentários e posturas em relação a Martha que estão relacionados com o seu peso — de um lado, os colegas de Donny ridicularizam Martha e brincam com uma eventual relação entre os dois (porque para eles seria impossível Donny sentir-se atraído por Martha não por ela ter comportamentos obsessivos, mas por ser uma pessoa gorda); do outro, Donny parece ter pena da sua stalker

No contexto desta série (e não só), se faz sentido repensar as personagens trans* e ouvir o que espectadoras trans* têm a dizer sobre elas, também faz sentido olhar para personagens gordas e ouvir o que espectadoras gordas têm a dizer sobre elas. E o que as espectadoras têm dito é que a série Baby Reindeer cola as pessoas gordas ao estereótipo de creepy. Algumas preferem nem a ver. E em que é que isto difere, por exemplo, de séries em que a personagem creepy é um homem magro, como Donny Dunn? É que há muitas séries em que o homem magro também é o bom da fita, o vilão, o creepy; mas não há muitas histórias em que uma mulher gorda seja representada de uma forma positiva. Inclusive a mulher que se apresenta como sendo a “verdadeira” Martha diz que vai processar a Netflix e fez comentários gordofóbicos sobre a atriz Jessica Gunning.

Marta torna-se uma cliente assídua do pub onde Donny trabalha. Cr. Courtesy of Netflix © 2024

Seria diferente se Martha fosse representada de outra forma? Que conclusões poderíamos tirar a partir da sua personagem se a atriz que a interpretasse tivesse uma leitura mais aceite dentro dos padrões de beleza normativos? Teriam os amigos de Donny feito pouco dela? 

Não é esperado de todos os conteúdos televisivos e cinematográficos que sejam meros recursos educativos onde é evidente quem é o bom, o mau e o vilão. É esperado, sim, que possam ser cada vez mais complexos, menos homogeneizados, mais diversos, mais próximos da pluralidade de realidades que existem no mundo. É, por isso, natural que surjam personagens transfóbicas, com homofobia internalizada, gordofóbicas, machistas; não é suposto que seja natural passar um pano a esses comportamentos. O segredo está na forma como se conta a história, na abertura que se dá para que os espectadores tirem as suas leituras e no espaço que se cria para as debater. E se podemos aprender alguma coisa com isso, enquanto espectadores, não há dúvidas de que a Netflix também lucra com toda esta história. Mesmo que para isso, tenha de pôr toda uma floresta tenha de arder. 

Índice

  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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