A febre de Ainda Estou Aqui, último filme do realizador Walter Salles que lhe valeu o primeiro Óscar para o cinema brasileiro, deixou-nos num loop de músicas de Juca Chaves (“Take Me Back To Piauí”), Erasmo Carlos (“É Preciso Dar Jeito, Meu Amigo”) e Tim Maia (“Azul Da Cor do Mar”). E enquanto tocam na nossa cabeça, damos por nós a pensar em momentos, frases, enquadramentos que vimos na tela de cinema.
Como ultrapassar a cena em que Eunice Paiva, magistralmente interpretada por Fernanda Torres, regressa a casa após ter estado presa durante 12 dias? Como deixar de pensar nas frases: “Nós vamos sorrir. Sorriam!”, que diz aos filhos quando a vida lhes dá vontade de chorar? Era o final da década de 70, o Brasil vivia uma ditadura militar, Rubens Paiva, o marido de Eunice Paiva tinha desaparecido depois de ter sido levado por militares. Mas há muito a transportar para a atualidade — para além do cliché de “iStO é TãO aTuAl”.
E uma das cenas mais marcantes nesse sentido decorre quando, depois de receber a notícia do desfecho do desaparecimento do marido, Eunice Paiva visita o grande amigo e sócio de Rubens, Baby. Quando lhe pergunta o que é que levou o marido a ser preso, Baby explica que com a influência e os contactos que tinham, tanto ele como Rubens não tinham como não fazer nada. Não tinham como ficar no conforto das suas casas e não ter uma mão na resistência, mesmo que não sacrificassem alguma da normalidade das suas vidas e não se envolvessem na resistência nas ruas.
Essa é, provavelmente, a cena sobre a qual mais temos pensado no Shifter. Porque vivemos um momento histórico em que também não temos como não fazer alguma coisa. As reflexões que trazemos, as escolhas editoriais, as decisões que tomamos — nada disso é neutro. Seja assumindo posturas críticas das tecnologias da moda, seja trazendo para publicação temas marginalizados e histórias esquecidas, nunca deixaremos de pensar no que fazemos como um privilégio e de o redimir decidindo com consciência e intencionalidade. Se prezamos a independência editorial – por muito que nos torne a vida pessoal mais precária – é para que possamos continuar a fazer o que achamos correcto e no sentido de um mundo melhor. E não tinha como ser de outra forma.