“Tudo o que é sólido dissolve-se no ar”, escreveram Marx e Engels no Manifesto Comunista muito antes do advento da digitalização se pronunciar sobre o planeta Terra, antes de as redes sociais dominarem as nossas relações interpessoais e de as criptomoedas surgirem como alternativa ao sistema financeiro global ou os NFTs aparecerem com a promessa de revolucionar o mundo da arte. Antes de, à vista de todos, tudo se dissolver no ar – ou no espaço digital que nos vendem como aéreo em expressões como cloud -, os teóricos comunistas cunhavam a expressão que em sucessivos détournements do seu significado essencial se foi afastando do seu contexto político inicial. Apesar do teor ambíguo da expressão, na sua essência relembra-nos que nada dura para sempre, remetendo-nos ao mesmo tempo para a ideia de que nada desaparece, tudo se evapora, tornando-se presente mas invisível, intocável, imensurável – um processo mental útil nos dias que correm.
O mundo como o conhecemos está (permanentemente) a mudar e as alternativas parecem surgir todas do ar do universo digital. Se a confiança nas instituições tradicionais está aparentemente em declínio, a crença numa solução tecnológica para os principais problemas da humanidade está cada vez mais em voga. Os exemplos são vários, ao ponto da sua descrição ser perfeitamente dispensável, mas nem todos prometem algo tão ousado como a blockchain. E, por isso, nem todos são tão difíceis de observar e interpretar a uma perspectiva equidistante.
O assunto é complexo e as opiniões dividem-se, mas vale a pena analisar em profundidade, aproveitando o assunto do momento para uma imersão em todo este universo. O primeiro ponto a reter é a distinção entre estes três conceitos: de um modo bastante simplificado podemos dizer que blockchain é uma rede de registos pública e descentralizada que regista transações – essas transações podem ser emissão ou troca de tokens -, já as criptomoedas ou fungible tokens e os NFTs, non-fungible tokens, são, por assim dizer, partes desse bloco que se distinguem pela sua fungibilidade, conceito que se explica melhor recorrendo a exemplos analógicos. Uma criptomoeda funciona de forma semelhante a 1 euro, com um valor divisível que permite uma troca directa com um activo semelhante, ao passo que um NFT é algo como uma carta colecionável, ou um contrato de uma casa, cujo valor não é objectivamente divisível nem transacionável por um activo semelhante. O segundo é a distinção entre os NFTs e a sua aplicação ao mundo da arte — mas lá chegaremos mais à frente.
Os NFTs foram notícia por todo o mundo no princípio de 2021 depois de nos primeiros meses do ano se terem registado algumas das vendas com o preço mais alto de sempre nas plataformas deste mercado. Um tweet de Jack Dorsey chegou aos 2,9 milhões de dólares, um jpeg com 5000 trabalhos de Beeple foi vendido por 69 milhões de dólares num leilão da Christies e depois o mundo descobriu que o Ethereum tem um elevado custo energético. Mas se estes exemplos ilustram bem o actual momento, ofuscam a percepção sobre o panorama global. Para o perceber melhor falámos com quem acompanhou tudo de perto.
Para começar a história há que recuar no tempo, reconhecendo que aquilo a que assistimos nos últimos tempos é (também) um efeito colateral da pandemia, como sugere Alice Bucknell, uma das artistas que assinou Toward a New Ecology of Crypto Art: A Hybrid Manifesto: “O interesse recente nos NFTs é indissociável do impacto socio-económico e cultural da pandemia e do confinamento. A nossa relação com a arte no último ano foi sobretudo online e por isso houve uma gravitação natural da hierarquia das peças ‘materiais’ sobre as peças ‘imateriais’.”
A onda que trouxe os NFTs arrastou consigo todo um manancial de conceitos, mais ou menos estilizados à moda da internet. Entre eles, crypto art é um dos que surge à partida, como forma de caracterizar a arte. A história dos NFTs começa no princípio das blockchains e nem a sua utilização para a venda de obras de arte digitais começou assim tão recentemente, como conta ao Shifter Rodolfo Oliveira, que assina como Oficinas TK, artista sediado no Porto que desde 2018 explora as blockchains como alternativa ao circuito convencional de distribuição da arte e que criou uma galeria virtual para blockchain art, o Thoreau Blockchain Art Center, na Decentraland — um universo virtual descentralizado detido por uma DAO (Organização Autónoma Descentralizada) — que nos ajuda a perceber o trajecto dos últimos anos e como em 2021 se atingiu um pico de transações. “Houve uma outra fase que se manifestou durante o início da pandemia com um influxo grande de novos criadores (alguns deles já com forte presença online e seguidores nas rede sociais); atraídos pela tecnologia, pelos ideais mas também pela possibilidade de poderem monetizar o seu trabalho digital”, diz-nos, aludindo ao facto de os artistas verem neste espaço um novo circuito de comercialização das suas peças, uma ideia que é corroborada por Ramiro Mendes, leitor do Shifter que se estreou recentemente nos NFTs, e Joanie Lemercier, um artista belga que esteve no centro do debate em torno desta tecnologia. “Para ser directo e completamente honesto, o grande benefício é que é um novo mercado. Uma forma de monetizar o trabalho e fazer algum dinheiro. Tenho-o feito no mercado tradicional da arte nos últimos anos mas tem sido difícil porque o mercado da arte é fechado, é muito exclusivo e é difícil ser aceite.”, revela Lemercier ao Shifter. Quanto ao estatuto deste mercado, que lhe fez ter a confiança dos artistas, Oficinas TK destaca alguns importantes acontecimentos como a criação de organizações de curadoria sob a forma de DAOs e a entrada em cena de instituições como a NBA, liga de basquetebol norte-americana, e a MLB, liga de baseball, no negócio dos colecionáveis em NFT.
Luís Freitas, programador português de aplicações da blockchain e criador de uma coleção de NFTs em 2018, acrescenta a este trajecto uma camada importante de desenvolvimento tecnológico, justificando o recente proliferar de aplicações: “Uma das coisas que gosto sempre de relembrar é que em 2018, quando comecei a desenvolver projetos em Ethereum, não existiam ferramentas como o The Graph no ecossistema. O The Graph permite que qualquer desenvolvedor indexe e consulte dados de uma forma muito simples, e isso é o exemplo de uma ferramenta que alavancou muitos projetos em Ethereum.”. E é precisamente quando se fala de Ethereum que a criptoarte se encontra com a crítica mais sonante de que tem sido alvo, o custo energético das transações – que, na verdade, tem uma razão mais profunda que esta blockchain.
“Esta injustiça ambiental só vai piorar à medida que mais artistas e investidores continuarem a participar de forma acrítica no sistema da criptoarte. Enquanto falamos, há blackouts relacionados com criptos a acontecer em todo o mundo, do Irão à Abkházia; e mais sistemas de mineração de criptomoedas estão em construção, inclusive no Texas, que enfrentou uma das crises de energia mais mortais de sempre no mês passado.”, alerta Alice Bucknell. E é olhando para o exemplo do Irão que percebemos a complexidade desta questão e a sua relação com a tecnologia de base, transversal a outras blockchain como a mais famosa delas todas, a bitcoin.
Perante as sanções económicas impostas pelos Estados Unidos da América ao Irão, a mineração e as transações em bitcoin têm sido vistas como uma alternativa de financiamento do país. Nos últimos anos estabeleceram-se várias mining farms pelo país, algumas das quais detidas por parcerias entre China e Irão; em janeiro deste ano uma dessas empresas viu-se obrigada a parar temporariamente depois de um vídeo viral nas redes sociais mostrar milhares de mining rigs na cidade de Rafsanjan. Também uma conta de electricidade referente à mesma produção de bitcoin terá sido leakada revelando o custo energético e o preço a pagar pela empresa – cerca de 1,2 milhões de dólares. Os números mostram a importância da receita para os cofres iranianos, e que o consumo energético da empresa não é assim tão significativo na soma do país, contudo, os virais fizeram crescer os sentimentos anti-China. Para além destas operações institucionais, crescem os projectos ilegais numa iniciativa difícil de travar pelo Governo que definiu mesmo uma percentagem da electricidade que podia ser consumida para operações de mineração.
“Os artistas não começaram a criar NFTs no Ethereum porque queriam destruir o planeta a troco de dinheiro.”
Num post no seu blog, o artista Memo Akten alertou para os valores elevados associados às operações na blockchain Ethereum e fez soar os alarmes. Joanie Lemercier foi um dos apanhados de surpresa, como conta no seu blog. O artista belga, que se identifica como activista pelo clima, migrara para a criptoarte pouco tempo antes de descobrir o seu impacto ambiental, quando procurava uma solução para diminuir a pegada carbónica gerada pela necessidade de visitar feiras e galerias de arte noutras partes do mundo. Como diz Rodolfo, das Oficinas TK “os artistas não começaram a criar NFTs no Ethereum porque queriam destruir o planeta a troco de dinheiro. Isto aconteceu porque foi no Ethereum, com os seus smart contracts, que puderam construir este veículo.” Ideia que é, de certa forma, corroborada do ponto de vista técnico por Luís Freitas que trabalha actualmente na Mintbase, uma aplicação que começou na blockchain Ethereum mas procura agora integrar o protocolo NEAR para atingir uma maior sustentabilidade.
“Atualmente, o Ethereum produz cerca de 12M de toneladas de CO2 anualmente, cerca de 27Kg de CO2 por transação. Isto acontece porque o método de consenso usado pelo Ethereum é o PoW. Apesar de ter no seu roadmap a transição para o Proof of Stake (PoS), que é uma alternativa mais verde quando comparada ao PoW. Essa transição apesar de já estar em andamento, pode levar alguns anos a estar completa.”, introduz Luís Freitas, abordando a questão do impacto ambiental, revelando que é tema comum nos seus círculos relacionados com blockchain ou cripto. A razão do custo do elevado consumo energético prende-se com o método de consenso usado nos nódulos de validação da blockchain, e por isso, para o criador do Ethereum, Vitalik Buterin, a mudança, que tarda tanto em chegar que já se tornou meme, para além de ecológica é também democrática. Numa entrevista, Buterin explica que o PoS pode consumir 1% da energia, e que “o sonho do PoW como um método de distribuição igualitária acabou por sufocar lentamente e morrer nos últimos anos”. O elevado custo energético dos métodos de mineração em PoW (como a Bitcoin ou o Ethereum corrente) faz com que computadores especializados dominem o processo de verificação deixando de fora da rede todos os internautas que queiram fazer parte dele (e eventualmente ganhar algo com isso). Se foi o sucesso na implementação dos smart contracts que valeu o sucesso ao Ethereum, outras questões podem pôr em causa algumas das suas dimensões mas deixam intactos os conceitos, pelo menos para alguns.
A forma como os NFTs surgiram no mainstream de rajada, com dias sucessivos de recordes batidos em vendas perfeitamente absurdas fez soar os alarmes e dividir as opiniões. Entre os artistas, encontram-se os que discordam do carácter revolucionário dos NFTs para o mundo da arte e aqueles que defendem o preciso contrário, numa troca de argumentos que traz várias camadas à discussão. “Por cada artista a ganhar um salário a vender NFTs, há dezenas de pessoas ricas a usar esta economia especulativa para criar mais riqueza e destabilizar o sistema”, diz-nos a artista americana baseada em Londres, Alice Bucknell, alertando para a questão da especulação. Como lembra no seu blog, o artista Everest Pipkin: “Não há ficheiro original. Eu faço uma cópia de um documento de texto, de um modelo 3d ou de um jogo e dou-te, e ambos temos o original. (…) É isso! Isso é a cena! Os artistas digitais usam um meio que pode proliferar numa rede e que pode ser detido por várias pessoas sem perder valor ou a aura da experiência do original.” O que nos leva para outra questão paradigmática, porque raio as pessoas compram algo que podiam sacar, que lembra o momento em que o artista Michael Green colocou à venda no Ebay um gif feito com base na obra de Jeff Koons por cerca de 5 mil dólares. “O facto de não haver nada a separar-te de ‘clique no botão direito + gravar’ excepto uma escassez artificial e um processo não verificado de propriedade devia fazer soar os alarmes”, diz-nos Bucknell, relacionando a dois importantes aspectos – a questão legal dos contratos e a ideia de escassez. Esta última relaciona-se com a possibilidade de cada artista definir o número de cópias “originais” do seu trabalho – a artista Grimes, por exemplo, fez parte dos sonantes 6 milhões ao emitir em NFT vários títulos de propriedade para a mesma obra, exemplo de como a tal escassez artificial pode distorcer as lógicas do mercado. Já para Joanie Lemercier, a recente loucura é uma questão circunstancial: “na minha perspectiva, isto é o que acontece quando o ‘mundo financeiro’ encontra a ideologia de Sillicon Valley’. Basicamente tens um novo mercado que é desregulado, potenciado por algum pessoal de Sillicon Valley que não quer saber de mais nada a não ser dinheiro. O seu foco é o dinheiro e as questões como a ética ou o ambiente tornam-se secundárias e não importam.” Rodolfo, das oficinas TK, vai mais longe e fala numa nova concepção de propriedade que não deve ser vista pelos exemplos mais mediáticos. “Este novo conceito de propriedade ainda é, no mínimo, intrigante para a maioria das pessoas que começa a acompanhar este fenómeno agora.”. Nos últimos dias o preço médio dos NFTs desceu cerca de 70%.
Uma mudança de paradigma ou uma ilusão de alternativa?
Joanie e Rodolfo reiteram a sua crença no mercado da blockchain como uma forma mais acessível e democrática para os artistas monetizarem a sua arte – sobretudo digital – uma ideia que não é acompanhada por Alice, ainda que subscreva as críticas ao mercado tradicional e relembre que nele também existe muita especulação, mas a um ritmo mais baixo. “Para muitos art dealers, no mercado de arte contemporânea sempre houve um jogo de especulação como uma área elitista. Mas o processo de acumulação de riqueza e a aposta no eventual crescimento do valor de um artista é incomparável com o ritmo acelerado de criação e lançamento de criptoarte”. Ramiro Mendes aponta a para a mesma problemática por um outro ângulo, denunciado uma certa saturação das plataformas que faz com que os artistas mais conhecidos acabem por ocupar o espaço central. É comum nas principais plataformas, nos últimos tempos, ver diversos artistas a produzir e a vender obras com um ritmo francamente anormal, explorando o hype que conseguem por vendas anteriores ou projectos virais.
“A maioria dos intermediários tradicionais tem falhado historicamente em assegurar que os artistas possam beneficiar do droit de suite/royalties das vendas secundárias do seu trabalho, das quais apenas os intermediários beneficiam na maioria das vezes.”, explica Rodolfo Oliveira num ponto que requer uma alusão técnica ao que é um NFT. Um NFT é como se fosse um título de propriedade em que está uma referência da obra (imagem, texto, o que seja), a menção do seu criador original, e podem ser programadas uma série de regras automatizadas dependente da plataforma em que são vendidos. O NFT pode determinar por exemplo que a venda daquele título de propriedade num mercado secundário reverta em X% para o seu criador, garantindo margem sobre as vendas secundárias de uma obra. Num cenário perfeito e de interoperabilidade entre as blockchains, seria também possível que o NFT cobrasse automaticamente os royalties pela exposição digital da obra e evitasse o uso indevido das mesmas – contudo, esta questão tem sido também trazida para cima da mesa pelas vendas fraudulentas que têm sido detectadas nas plataformas que revelam a dificuldade em evitar esses maus usos.
A divisão de opiniões não deixa margem para dúvidas, em certa medida, da versatilidade da tecnologia e do quão determinante é a forma como esta é programada (como em tantas outras tecnologias percebemos). Se Rodolfo Oliveira, das Oficinas TK, que chegou antes do hype, diz que “ao permitir o acesso a qualquer pessoa, quer esta tenha formação académica ou não, independentemente do seu país de origem, cor de pele, género ou orientação sexual, os NFTs são na minha opinião um dos maiores e mais bem sucedidos esforços de democratização da arte.”, outros como Alice ou Everest Pipkin, reiteram que os NFTs não resolvem nenhum problema da arte e da sua indústria. Everest escreve na sua publicação de blogue que o facto de a tecnologia já existir e o mercado não a seguir é um sinal disto mesmo. Já Jonathan Beller, crítico cultural, Professor de Estudos dos Media e Humanidades e de Estudos Visuais, no Pratt Institute, em Brooklyn, Nova Iorque, e reconhecido pelas suas ideias sobre a economia da atenção, escreveu para o Coindesk um artigo com o título sonante “NFT Does Not Stand for Non-Fascist Token, but It Should“ e uma proposta de reflexão que não lhe fica atrás. Beller recorre às ideias de Walter Benjamin no seu A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica para destrinçar os padrões de evolução do mercado da arte em NFT em função do recente momento, deixando um aviso – e uma espécie de apelo – sobre a forma como fenómeno se tem vindo desenrolar, traçando paralelos com outros meios e tecnologias.
“Hoje em dia, apesar das promessas de horizontalizar a comunicação, o cinema e os social media foram tomados pelos sistemas de estrelato e influência”, escreve Beller denunciando por comparação a forma como os NFTs se revelaram ao mundo nos últimos tempos, numa série de acontecimentos que vão contra as promessas daqueles que os defendem. Beller alerta para o facto de os modelos actuais (e mais populares) de emissão e venda de NFTs não levarem à descentralização radical prometida, e se inspirarem na imaginação do mundo financeiro e na possibilidade de enriquecimento com a tecnologia. “O encaixe perfeito entre os NFTs e o culto do génio, do culto da personalidade, do grande artista, da celebridade, do super atleta ou do bilionário não se relaciona bem com a promessa democrática e pós-capitalista da blockchain, como uma infraestrutura de um mundo sustentável”, diz Beller, que nos parágrafos seguintes revela, ainda assim, crença na tecnologia: “Mas a criptomedia tem potencial para fazer mais e melhor. Tem o potencial, através da desintermediação e remediação, de refazer o tecido social com um apelo pela justiça. Para isso temos de impedir que a arte, que tem o potencial de criar formas de beleza que só tinham sido sonhadas ou de transformar relações sociais ou criar novas estéticas de relação, de se tornar na sua antítese – um racional para a sobreavaliação das personalidades carismática, cuja existência depende da desigualdade”.
“Não são os NFTS em si, o ERC 721 ou o 1135, que são uma forma fascista”, escreve Beller num momento que resume o texto e refoca a ampla discussão na importância da forma como os sistemas que operam as tecnologias são desenhados. De resto, esta é uma discussão que há algum tempo se manifesta em associações como a DAOWO, associação londrina que nos últimos anos tem levado a cabo um trabalho de discussão. “O nosso foco é perceber como a blockchain pode ser usada para permitir uma cultura mais sustentável e empoderada, que transcenda as limitações e os perigos emergentes da pura especulação de mercado da criptoeconomia”, lê-se no seu site.
“Percebo muito pouco dos grandes mercados de arte, mas tenho muita empatia para com os pequenos criadores e aqui não falo só de arte, mas de jornalismo, software, qualquer tipo de criação. Estes pequenos criadores são ignorados nas plataformas grandes de hoje, porque os modelos de negócio destas não estão ajustados a toda esta nova vaga de criadores na internet e premeiam o que é mais visualizado ou gera mais polémica.” diz-nos Luís Freitas, programador, numa resposta que aponta para outros usos da blockchain e dos NFTs que prometem criar mecanismos de remuneração de conteúdo online que dêem mais controlo ao utilizador e maior rentabilidade ao criadores, eliminando os intermediários destas transações. Uma promessa que se vai tentando concretizar em pequenos passos ofuscados pelas notícias de máximos históricos de valorização das criptomoedas ou por acontecimentos absurdos normalmente relacionados com altas somas de dinheiro.
É, de resto, esta proximidade entre a tecnologia e o dinheiro, que molda em grande medida a relação dos vários agentes sociais com esta – com muitos interessados apenas pelas perspectivas de lucro e outros tanto divergentes pelo que consideram ser investimentos loucos e irracionais, e jornalistas a vender artigos por 500 mil euros só porque sim, numa aproximação quase fetichista à tecnologia. É neste ponto que vale a pena recordar a diferença entre as tecnologias, os serviços que as implementam e os fenómenos que geram – distinguir a mensagem do mensageiro. O serviço da tecnologia. O design da protocolo. A teoria da prática.
“A comunidade parece não se importar de discutir estas questões, de olhar para os problemas e de olhar para os números e isso foi óptimo – até temos um discord dedicado a esta questão.” — Joanie Lemercier
Se é provável que a face mais visível da criação das blockchain, da invenção dos smart contracts e dos sistemas de consenso descentralizado seja a Bitcoin e os milionários de ocasião que esta origina, é igualmente provável que alguns dos protocolos agora desenvolvidos – grande parte deles em licenças abertas que permitem a sua derivação – venham a constituir parte do universo digital num futuro mais ou menos próximo, como podemos observar pela assimilação de algumas destas tecnologias por parte de organizações, instituições e empresas. Mais provável ainda é que os conceitos que resistam não sejam os que hoje preenchem as tabelas de valorização, fazem headlines e dominam o discurso de quem quer enriquecer nas cripto — tal como o MySpace não foi a grande rede social que se pensava que ia ser —, mas os nomes pequenos com siglas estranhas deixados para as entrelinhas por não terem tanto sex appeal. É isso que indicia a assimilação institucional e industrial destas tecnologias.
Se os efeitos da pandemia podem ter sido, como noutros fenómenos como o Gamestop, uma espécie de sobreidentificação com o sistema, como diz Zizek – é preciso perceber como os meios certos podem ser usados para os meios certos. Como diz Jonathan Beller “NFT does not stand for Non-Fascist Token, but it should. Let’s not get fooled again.” e talvez a única forma de o evitar seja discutindo enquanto sociedade a melhor utilização a dar a estas tecnologias, antes que se tornem do domínio exclusivo de uma pequena percentagem.
[infobox]O Shifter tentou contactar alguns dos responsáveis pelas principais plataformas de comércio de NFTs que não responderam ao pedido de entrevista.[/infobox]
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