“As ideologias habitam os indivíduos”: excerto de O Cérebro Ideológico, de Leor Zmigrod

2 Setembro, 2025 /
Imagem ilustrativa com vários modelos 3d do cérebro sobre um fundo colorido
Excerto do capítulo "Possessão Ideológica" do livro "O Cérebro Ideológico: Uma ciência radical das mentes suscetíveis" de Leor Zmigrod, publicado em Portugal pela D. Quixote.

Dizemos que as pessoas “têm” uma ideologia, como se ela fosse uma mala ou uma banana. Tal como os objetos que podemos segurar, estimar, ou descartar, as ideologias são imaginadas como sendo-nos externas. Às vezes trocamos uma ideologia antiga por uma outra mais nova e reluzente. Outras vezes somos nós os evangelistas que andam a tentar impingir uma ideologia aos não convencidos. Aceitem!

Trocamos e negociamos essas possessões ideológicas, e gabamo-nos dos valores das nossas mais recentes aquisições. No entanto, talvez estejamos enganados ao pensar que as ideologias são bens que detemos, bagagem que transportamos, que as ideologias existem de alguma maneira fora de nós.

Temos crenças, sim, mas também podemos ser possuídos por elas. Com poderosos instrumentos de medição, é agora possível ver as consequências da rigidez ideológica ao longo de toda a perceção, cognição e fisiologia humanas, e até nos processos neurais. Os nossos corpos não são impenetráveis às ideologias que nos rodeiam: aquilo em que acreditamos reflete-se na nossa biologia.

Ao contrário das impressões deixadas na areia, os cunhos ideológicos são difíceis de apagar. As nossas mais recentes descobertas científicas mostram que os cérebros humanos absorvem as convicções ideológicas com vigor e avidez. Afinal, os nossos cérebros são órgãos magníficos que aprendem com facilidade com base nos seus ambientes. Com perigosa rapidez. Por isso, quando ficamos submersos em sistemas dogmáticos, os nossos corpos absorvem de bom grado essas rigidezes. Repetir regras e rituais tem efeitos estupidificantes nas nossas mentes. Com cada reiteração e desempenho de rotina, os caminhos neurais que sustentam os nossos hábitos fortalecem- se, ao passo que as associações mentais alternativas – mais originais, mas ensaiadas com menor frequência – tendem a decair. Embora muitos de nós saibam intuitivamente que as ideologias ditam os nossos comportamentos sociais e simpatias morais, é menos conhecido que a repetição de regras e rituais ideológicos se derrama em cascata pelas nossas células.

A imersão em estruturas rígidas e autoritárias não é apenas um problema social ou político. É um problema profundamente pessoal para cada um de nós. As ideologias podem pôr em risco a saúde de nossas mentes e as nossas capacidades para ter autenticidade. Os nossos corpos aprendem a corporizar as convicções ideológicas de maneiras profundas e preocupantes. A menos que compreendamos o que são as ideologias e o que elas nos fazem, diferentes extremismos irão surgir e sofrer mutações, progredindo sem impedimentos nas nossas sociedades abertas e tolerantes. E até que venhamos a descobrir como é que o cérebro se metamorfoseia sob o domínio das doutrinas ideológicas, a liberdade genuína continuara a escapar-nos.

As ideologias são-nos vendidas como intemporais e fixas, mas elas são na verdade altamente fluídas e móveis. Esses agregados de ideias estão em perpétua mudança, assumindo novas aparências em cada geração. As visões ideológicas do mundo podem trocar de lados e de preferências políticas. Os partidos da tradição fazem campanha por reformas radicais enquanto os movimentos progressistas hesitam em inovar. Erguem-se armas em nome da vida. Usam-se lemas pela paz para camuflar a violência regressiva. O terrorismo pode sequestrar a luta pela liberdade e as exigências de liberdade podem parecer aterrorizantes.

As batalhas sobre as ideologias assemelham-se a jogos de linguagem. Lançam-se palavras, são arremessados dispositivos retóricos contra oponentes, que se evitam à justa. Reacionário, revolucionário, conservador, progressista, conspiracionista, supremacista, racista, radical, intolerante. Raramente sabemos o que significam esses rótulos ou a quem eles se referem propriamente. George Orwell observou que “a linguagem política… está concebida para fazer as mentiras parecerem verdadeiras e o crime respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao puro vento”. Encaixamos as pessoas e as ideias em categorias ordenadas por procurarmos clareza e identidade. O nosso vizinho é um fanático! O nosso adolescente é um pacóvio! Essas taxonomias encantam-nos e espantam-nos. Todavia, esses chavões linguísticos mascaram as realidades das ideologias tal como elas são vividas – desordenadamente, hipocritamente, orgulhosamente, autodestrutivamente –, com perda, alegria, humor, arrependimento, medo, com reversões, retratações, ruminações, intimidade e tristeza – com lágrimas e lamentações, sorrisos radiantes e confusos olhares de soslaio.

Apesar das complexidades e das contradições, existem pontos em comum na maneira como as ideologias são praticadas e pregadas, independentemente dos seus objetivos ou das suas reivindicações. Sejam elas nacionalistas, racistas ou religiosas, existem paralelos no modo como todas as ideologias se infiltram nas mentes humanas. Essas semelhanças não são coincidências; são inerentes à estrutura do pensamento ideológico. Como observou o pensador político Eric Hoffer em O Verdadeiro Crente, “há uma certa uniformidade em todos os tipos de dedicação, de fé, de busca do poder, de unidade e de autossacrifício”. Embora as ideologias possam estar vestidas com diferentes cores, trajes ou bandeiras, existem evidências de que, entre os diferentes grupos ideológicos, os mecanismos de coerção ideológica são em larga medida os mesmos.

Para detetarmos as semelhanças psicológicas entre as ideologias, precisamos de ter uma noção do que é uma ideologia e do que ela não é. Na sua formulação mais simples, uma ideologia é um tipo de narrativa. Uma história convincente acerca do mundo. No entanto, nem todas as histórias são ideologias, e nem todas as formas de narrativa coletiva são rígidas e opressivas. Há uma diferença entre cultura e ideologia. As ideologias oferecem descrições absolutistas do mundo e são acompanhadas por prescrições sobre como devemos pensar, agir, e interagir com os outros. As ideologias legislam o que é permitido e o que é proibido. Ao contrário da cultura – que pode celebrar excentricidades e reinterpretações –, na ideologia a não conformidade é intolerável e é essencial o alinhamento total. Quando o desvio das regras leva a punições severas e ao ostracismo, afastamo-nos da cultura e entramos na ideologia.

Do fascismo e do comunismo ao ecoativismo e ao evangelismo espiritual, os grupos ideológicos oferecem respostas absolutas e utópicas para os problemas sociais, regras estritas de comportamento e uma mentalidade de grupo por meio de práticas e símbolos dedicados. Estes aspetos existem em todo o espectro das persuasões ideológicas. Tais caraterísticas podem surgir mesmo quando a ideologia é guiada pelas intenções mais sinceras e pelos ideais mais nobres – mesmo que alegue proteger a dignidade ou o florescimento humanos.

Em geral, as ideologias são imaginadas como grandes visões. Grandiosas e atmosféricas. Intangíveis e fora do nosso controlo pessoal. Poucos de nós conseguem delinear os princípios exatos de nomes pomposamente providos de letras maiúsculas, como Conservadorismo, Liberalismo, Fascismo, Comunismo, Capitalismo, Racismo, Sexismo, Teísmo ou Populismo, com toda a miríade de significados e de interpretações. Como se viessem dos céus, esses ismos descrevem os contornos da vida e prescrevem a ação humana, instruindo-nos sobre o cosmos e sobre como nos devemos relacionar uns com os outros nesse âmbito. Para os crentes, o destino utópico de uma ideologia parece ter sido talhado a partir das nuvens da eternidade. Uma força iminente que paira sobre as nossas cabeças, e que deve ser venerada e reverenciada.

A imagem das ideologias como celestiais e estáticas sempre me incomodou. As ideologias coexistem entre nós, dentro de nós, na terra. Não nos céus da história ou nas torres das elites políticas. Não há nenhum plano transcendente em que elas vivam; nenhumas altitudes de onde as atitudes desçam já plenamente formadas e sagradas. As ideologias habitam os indivíduos. As mentes individuais convertem as doutrinas sociais em pensamento ideológico, um estilo de pensamento que é governado por regras mentais estritas e por saltos mentais cuidadosamente controlados.

Embora a maioria das definições perceba as ideologias como correntes históricas e movimentos sociológicos, em vez disso estou interessada em examinar as ideologias como fenómenos psicológicos. Essa lente psicológica permite-nos inquirir o que faz uma ideologia aos seus crentes e quem atrai mais facilmente. Ao visar os processos que ocorrem nos cérebros individuais, podemos sondar quando e que uma ideologia restringe a vida mental dos seus seguidores e se alguma vez poderá libertá-los.

Mesmo que uma ideologia pareça justa, ética, vital, urgente ou bonita, creio que ela deve ser examinada de perto. Podemos estudar a estrutura de uma ideologia, a sua génese e os seus efeitos, o que ela altera nas mentes dos seus seguidores. Podemos escrutinar o que uma ideologia fratura ou silencia numa mente; que processos biológicos e mentais uma ideologia distorce. A ideologia impõe um controlo apertado sobre os cérebros dos crentes? Ou deixa-os fazer perguntas e devanear livremente?

Toda a visão do mundo pode ser praticada de forma extrema e dogmática. Todo o tipo de narrativa cultural que é usada para explicar o mundo pode pender para uma ideologia totalizante. Por isso, inquirir o que uma ideologia nos incita a pensar não basta; também precisamos de analisar como ela nos faz pensar. Quando uma ideologia exige um pensamento rígido e ritualístico, exige que enviesemos a nossa visão, reduzamos ao silêncio as dúvidas que nos atormentam, abdiquemos das nossas subjetividades e possibilidades criativas. Quando uma ideologia exige um pensamento rígido e ritualístico, exige que nos tornemos outrem. Alguém menos singular e único, menos curioso, menos livre.

Tradicionalmente, julgamos uma ideologia com base nos seus méritos, nos defeitos e nos saltos de lógica. Tendencioso, tendencioso, tendencioso, anunciamos. Minando os sistemas de crenças dos nossos oponentes, desenterramos contradições e hipocrisias. Diferentes camadas de ingenuidade, de insensibilidade ou de ignorância que merecem ser votadas ao desprezo ou ao ridículo. Criticamos os pontos de vista dos nossos adversários pelos seus pressupostos legais ou económicos, os seus males sociais, ou as semelhanças históricas com visões de mundo mais antigas.

Espero mostrar que podemos questionar as ideologias em termos diferentes – nos termos do indivíduo isolado. Do cérebro individual. Acredito que podemos julgar uma ideologia com base no que acreditar nela faz aos corpos e aos cérebros humanos; se ser-se um crente apaixonado estreita os nossos movimentos, refreia a nossa flexibilidade, restringe as nossas respostas ou nos leva a cometer violência. Se tivermos menor amplitude para a plasticidade e a mudança e menos acesso direto às nossas sensações, corremos o risco de nos desumanizarmos, a nós e aos outros. Tornamo-nos menos sensíveis, menos elásticos, menos autênticos. Se virmos a realidade através de uma lente ideológica, acabamos por evitar a riqueza da existência em prol de uma experiência mais reduzida e estereotipada. Estudando o cérebro ideológico com dispositivos de neuroimagiologia e testes cognitivos, podemos iluminar modos de dominação que eram anteriormente invisíveis. Com as ferramentas da ciência, podemos desenvolver novas maneiras de criticar as ideologias.

Talvez algumas ideologias passem nos nossos testes essenciais. Muitas não passarão. Poderemos acidentalmente passar a desconfiar das possessões ideológicas que mais prezamos. Uma ciência da ideologia pode inspirar-nos a pôr em causa os nossos ídolos, os nossos ícones, as nossas metáforas, as nossas utopias imaginadas. Pode estimular uma análise cuidadosa e uma autorreflexão honesta. Pode até tornar- se a base para a ação pessoal ou social. Examinar as origens e as consequências neurocognitivas das nossas crenças – de onde elas vêm e como transformam os nossos corpos – proporcionará pistas sobre o tipo de sistema de crenças que poderemos desejar manter e sobre quais poderemos ser persuadidos a abandonar.

Acreditar apaixonadamente numa doutrina rígida e um processo que se espalha pelos nossos neurónios e que flui para os nossos corpos. As ideologias não são meros invólucros para as nossas vidas; elas penetram nas nossas peles, nos nossos crânios, nas nossas células nervosas. As ideologias totalizantes moldam o cérebro como um todo, não apenas o cérebro quando ele é confrontado com proposições ou debates políticos. A ciência começa a revelar que as profundas reverberações das ideologias podem ser observadas no cérebro mesmo quando não estamos de modo algum envolvidos com a política. Como os nossos cérebros aprendem a corporizar a doutrinação de maneiras profundas e insidiosas, os rituais sociais que aprendemos a praticar podem passar a ser as realidades biológicas das nossas mentes e dos nossos corpos. Por conseguinte, existe o perigo de que quando um indivíduo está imerso em ideologias rígidas, não sejam apenas as suas opiniões políticas e os seus gostos morais que estão a ser esculpidos – todo o seu cérebro está a ser esculpido também.


 
Excerto do capítulo “Possessão Ideológica” do livro “O Cérebro Ideológico: Uma ciência radical das mentes suscetíveis” de Leor Zmigrod, publicado em Portugal pela D. Quixote 

Autor:
2 Setembro, 2025
Picture of Leor Zmigrod

Leor Zmigrod

Leor Zmigrod é uma cientista premiada e pioneira no domínio da «neurociência política». Estudou na Universidade de Cambridge como Bolseira Gates antes de ganhar uma bolsa de investigação no Churchill College, em Cambridge. Zmigrod publicou mais de trinta artigos revistos por pares e foi bolseira visitante em Stanford, Harvard e nos Institutos de Estudos Avançados de Berlim e Paris.

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