A revista de arte domus publicou, no passado dia 31 de março, uma entrevista com Marina Abramović; a partir de Munique, onde apresentaria esta semana a ópera que preparou durante anos, “As sete mortes de Maria Callas”, Abramović conversou sobre empatia e perseverança, dois alicerces da sua obra que hoje são postos à prova por todos nós. Entre vários temas, relembrou a amiga Susan Sontag.
“É muito importante ser-se objetivo quanto à situação em que o mundo se encontra. Quanto mais difícil a situação é, mais precisamos da cultura e da arte para nos salvar. Lembro-me da Susan Sontag ir a Sarajevo na altura da guerra da Bósnia e encenar “À Espera de Godot” num abrigo. O mais importante é manter o espírito humano em cima, não em baixo”, disse Marina Abramović ao entrevistador.
A relação de proximidade entre as duas é de conhecimento público e referência em vários livros de caráter biográfico, inclusive Walk Through Walls, a biografia da artista de que o Shifter já te tinha falado neste artigo. A amizade começou por uma admiração mútua do trabalho de ambas e floresceu quando Abramović viveu em Nova Iorque. No seu livro biográfico conta que Sontag foi quase todos os dias (se não todos) à performance “The House With the Ocean View”, na qual a artista sérvia vivia em palco durante doze dias, e como sem querer lhe ofereceu o livro da sua vida numa edição para a qual tinha escrito o prefácio: Correspondência a Três, de Boris Pasternak, Tsvetaeva e Rainer Maria Rilke.
O livro para o qual tinha escrito o prefácio saiu em outubro de 2001, Susan Sontag morreu em dezembro de 2004. Por essa altura já tinham sido celebrados dez anos do fim da Guerra da Bósnia.
A guerra estalou a cinco de abril de 1992. Um ano e meio depois, a 17 de agosto de 1993, estreava “À Espera de Godot”, o original de Samuel Beckett encenado por Sontag, no Sarajevo Youth Theatre, o momento que Marina Abramović relembra na sua entrevista à domus. O conflito só acabou em dezembro de 1995 e as suas marcas mantiveram-se vivas até aos dias de hoje – nos dias dos que já na altura eram nascidos, e nos que vieram mais tarde mas não esquecem o passado que os vestígios pela cidade não deixam esquecer.
Talvez Marina o tenha recordado pela sua própria proximidade com o território em que aconteceu, mas a verdade é que a tomada de posição de Susan ficou soldada nos que tiveram a oportunidade de integrar o elenco ou de ver a peça. Em agosto de 2018, a plataforma britânica The Stage foi à procura dos intervenientes desta performance, a propósito dos 25 anos do seu acontecimento.
Amber Massie-Blomfield, a jornalista que assina a peça, conta que a ensaísta americana já tinha visitado Sarajevo em abril com a associação PEN International e que, como havia de escrever mais tarde, sentiu que “não podia ser só uma testemunha” e “se voltasse, teria de ser para fazer alguma coisa”.
Por essa altura, a autora ainda não tinha escrito Regarding the Pain of Others, lançado em 2003, mas de alguma forma foi tocada por um assunto que viria a aprofundar mais tarde. Como é que podemos olhar para o sofrimento dos outros e ficar indiferentes?
Izudin Bajrovic, o ator que interpretou Vladimir no clássico de Beckett, contou a Massie-Blomfield que eram todos “muito magros” e que não tinham elementos tão básicos quanto “janelas, eletricidade, água ou comida”. Foi sobre a forma como olhamos para essas condições através das imagens, fotográficas ou em vídeo, que Sontag dissertou e, a certa altura, recordou uma história da sua primeira visita a Sarajevo:
«Uma cidadã de Sarajevo, uma mulher completamente devota do ideal jugoslavo, que eu conheci depois de chegar à cidade pela primeira vez em abril de 1993, contou-me:“A 1 de outubro de 1991 estava no meu apartamento impecável numa Sarajevo pacífica quando os servos invadiram a Croácia, e lembro-me quando o telejornal da noite mostrou imagens da destruição de Vukovar, apenas a poucas centenas de quilómetros de distância, eu pensei para mim ‘Oh, que horror’, e mudei de canal. Por isso como é que posso ficar indignada se alguém em França, Itália ou na Alemanha vê mortes a acontecerem aqui dia após dia nas notícias da noite e diz ‘Oh, que horror’, e vai procurar outro programa. É normal, é humano”. Onde quer que as pessoas se sintam seguras – esta era o seu penoso ponto de auto-acusação – vão ser completamente indiferentes.» — excerto de Regarding the Pain of Others (2003), Susan Sontag, tradução livre
“A compaixão é uma emoção instável. Precisa de ser traduzida em ações, ou desvanece”, diz no mesmo livro. Foi, provavelmente, por isso que traduziu a compaixão de um primeiro encontro na encenação de uma peça de Beckett no segundo.
Em À Espera de Godot, Vladimir e Estragon esperam por Godot, uma personagem misteriosa que nunca percebemos ao certo quem é nem o que faz – apenas que tem uma importância central na história – enquanto trocam um diálogo apenas destabilizado por Pozo e Lucky. Beckett escreveu-a originalmente em francês e publicou-a pela primeira vez em 1952, quarenta anos antes da guerra despontar na Bósnia, num mundo com uma Jugoslávia ainda unida.
Gordana Knezevic, que na altura trabalhava como editora do jornal da cidade, disse ao The Stage que “À Espera de Godot era uma metáfora para Sarajevo, porque Sarajevo estava à espera de um milagre”. “Ninguém conseguia definir do que estava à espera. Mas havia uma crença de que alguém iria parar isto”, completou.
Segundo Izudin Bajrovic, o processo de ensaio era tudo menos comum, mas o possível num cenário de guerra. Não havia eletricidade e estava estabelecido um limite de quatro horas de ensaio por dia, à luz das velas. As indicações de Sontag tinham de ser transmitidas por um tradutor, uma vez que não falava servo-croata e poucas pessoas na produção e no elenco falavam inglês. Os atores estavam constantemente com fome e a escritora levava-lhes pães do hotel em que estava hospedada.
Ines Fancovic, a atriz que interpretava Pozo, partilhou com Amber Massie-Blomfield no mesmo artigo do The Stage que apesar das circunstâncias, esta era uma forma de estratégia de sobrevivência. “Se eu não trabalhasse quase todo o dia teria muita dificuldade a viver nesta guerra. Os bombardeamentos e a morte de muitos amigos abalou-me muito, mas representar ajuda-me a esquecer”.
No dia da estreia, ao fim da tarde, o palco estava iluminado por lanternas e velas – ao longe ouviam-se bombas a explodir. Gordana Knezevic recordou em 2018 a plateia do teatro, composta por “as pessoas que normalmente vão assistir a peças, o exército bósnio e dois ou três monges franciscanos”.
Como Bajrovic refere no artigo do The Stage, nada mudou com a passagem de Sontag por Sarajevo e a encenação do clássico de Beckett. Ainda assim, acredita que foi importante para mostrar que não eram esquecidos pelo mundo, e que havia alguém que queria realmente saber como viviam. Já Knezevic garante que esta foi “a coisa com mais significado” que Susan podia ter feito. “Era necessário mantermo-nos sãos, e preservar um sentido de normalidade. E para fazer isso tens de preservar a cultura. Tens de manter o teatro vivo. Foi assim que resistimos à ocupação: passando a mensagem de que independentemente do número de mortes que houvesse, nós continuávamos a ser humanos”, partilhou a jornalista.
O cerco a Sarajevo começou no dia 5 de abril de 1992 e durou 1425 dias. De acordo com o Sarajevo Times, 11541 morreram, das quais 1601 eram crianças. Por dia eram lançadas cerca de 329 granadas, apesar de o recorde ter atingido as 3777, um mês antes da estreia de À Espera de Godot, a 22 de julho de 1993.
Ainda hoje, visitar a Bósnia implica sentir a guerra, tal como acontece no Kosovo. As memórias impossíveis de apagar em vinte ou trinta anos e que ainda passam em testemunhos diretos na oralidade, entre gerações, preservam aprendizagens e carregam mágoas. Importa sempre não esquecer o passado, mas evitar o revisionismo pode trazer algum rancor.
A sensação de que algo se passou lá impõe-se a cada visita de um estranho, mas não o torna necessariamente mais consciente nem o põe da pele de quem viveu a guerra. E quanto a esta sensação, Sontag viria a escrever mais tarde que não há muito que possamos fazer.
“Nós não percebemos. Não conseguimos imaginar verdadeiramente como foi. Não imaginamos quão terrível é a guerra; e quão normal se torna. Não percebemos, não imaginamos. É isso que cada soldado, cada jornalista, cada trabalhador voluntário e observador independente que foi posto à prova debaixo do fogo, e teve a sorte de escapar à morte que atingiu outras pessoas próximas de si, constantemente se sente. E eles têm razão.” — excerto de Regarding the Pain of Others (2003), Susan Sontag, tradução livre
Podemos, ainda assim, recordar com empatia o que por lá se passou e pensar como a cultura não salva nações, mas pode ser a resposta para manter a sanidade mental em tempos de horror.