Ao longo da história, já desde a antiguidade, as mulheres desempenharam muitas vezes papéis de curandeiras, sacerdotisas, parteiras, enfermeiras, médicas, educadoras medicinais e herbalistas.
Inicialmente, estas “mulheres sábias” não eram temidas nem demonizadas. Na verdade, eram aceites e muito reverenciadas pelas suas comunidades, graças às suas competências e conhecimentos — os segredos tanto para trazer a vida ao mundo como para manter a morte afastada — que na altura elas passavam de mães para filhas, de geração em geração. E até mulheres que praticavam bruxaria abertamente — uma crença que também pode ser traçada desde a antiguidade, tanto na mitologia Grega e Romana, como no folclore Celta — foram, no início, respeitadas pelo seu conhecimento. Apesar de um elemento de medo também se erguer em torno do poder delas.
Há algo importante a ter em atenção. Quer fossem ou não bruxas, o ofício destas mulheres não era apenas uma forma de terem emprego mas também, em certa medida, uma forma de terem poder num mundo que aos poucos, mas firmemente, se estava a tornar dominado pelos homens.
Embora no antigo Egipto, por exemplo, as mulheres pudessem estudar, ensinar e praticar medicina — algumas cidades, como Sais, até tinham escolas especializadas em obstetrícia — ao longo do tempo, as mulheres foram empurradas das práticas formais e forçadas a encaminhar os seus conhecimentos para a privacidade das suas casas. E, eventualmente, até as suas próprias casas deixaram de ser espaços seguros para continuar as práticas que as suas ancestrais mantinham vivas há séculos. Esta mudança foi desencadeada por uma série de fatores coincidentes, mas na verdade nunca teria sido possível sem uma das maiores invenções da humanidade: a prensa ou prelo — máquina de impressão automática.
A prensa de impressão surgiu na China e foi inventada por um homem chamado Bi Sheng. Mas, graças ao viés histórico a favor do Ocidente, provavelmente estarás mais familiarizado com Johannes Gutenberg, o ourives alemão a quem se atribui a criação da primeira prensa de impressão moderna por volta de 1440 DC.
Foi a invenção de Gutenberg que teve um papel significativo na Europa nos séculos que se seguiram, permitindo que ideias, notícias e conhecimento fossem partilhados amplamente, o que contribuiu para a disseminação da educação, da alfabetização e, como muitos argumentam, do Renascimento. Mas também foi a mesma invenção que ajudou a disseminar outras coisas: preconceito, polarização social e até violência. Em particular contra as mulheres.
É verdade que alguns padres dos primórdios das igrejas cristãs, como o Santo Ambrósio e o Santo Agostinho, começaram a olhar para mulheres que tinham nem que fosse um pouco de poder, conhecimento e audácia pagã — curandeiras, parteiras, herbalistas, etc — com uma crescente suspeição já desde o século IV DC. Mas as suas ideias não se espalhavam tão rapidamente. Maior parte das pessoas eram analfabetas, os sermões religiosos eram dados em Latim, e os trabalhos escritos — também frequentemente em Latim — não eram acessíveis ao público em geral.
Felizmente para algumas, e muito infelizmente para dezenas de milhares que viriam a ser acusadas de serem “bruxas”, a máquina de Gutenberg chegou mesmo quando essas ideias começavam a ter um rumo sombrio. Malleus Maleficarum (‘Martelo das Bruxas’), provavelmente o texto mais misógino alguma vez escrito, foi publicado em 1486 — mesmo quando as primeiras lojas de impressão começaram a disseminar-se pela Europa. Escrito por dois padres Dominicanos, o texto serviu como um manual da caça às bruxas, com um título a sublinhar o seu propósito de forma pouco ou nada subtil: a aplicar o Êxodo 22:18, “A feiticeira não deixarás viver”.
Infelizmente, esse não foi o único texto a encorajar as pessoas a identificar, interrogar e perseguir aquelas que se acreditava serem aliadas do diabo. A imprensa popular rapidamente se juntou à tendência, produzindo inúmeros panfletos e folhetos de uma página — os precursores dos jornais — dedicados a “notícias” sensacionalistas sobre mulheres de forquilhas na mão, a queimar cidades e a comer crianças. Estes eram muitas vezes acompanhados por ilustrações exageradas, com cores vivas, com “bruxas” em topless e títulos igualmente chamativos, que a historiadora Natalie Grace uma vez descreveu como “o equivalente ao atual clickbait”. As histórias eram, elas mesmas, o equivalente moderno às fake news.
Ainda assim, eram populares entre a população em geral e muito lucrativas para a indústria da imprensa em crescimento. Então, qual era o mal?
De acordo com um estudo recente publicado na Theory and Society, a impressão de textos sobre bruxaria e caça às bruxas, particularmente o Malleus Maleficarum, teve um papel crucial na disseminação da perseguição das mulheres suspeitas de bruxarias por toda a Europa. Depois de analisarem dados de 553 cidades na Europa Central entre 1400 e 1679, os investigadores observaram um crescimento significativo tanto na frequência como na intensidade de julgamentos de bruxas após a publicação de cada nova edição de Malleus Maleficarum e outros textos semelhantes.
O seguinte gráfico deste estudo mostra claramente essa tendência:

O estudo também destacou que à medida que uma cidade adotava as práticas de caça às bruxas descritas nos manuais, as cidades vizinhas rapidamente seguiam o exemplo, aprendendo com as ações umas das outras.
Eventualmente, essas ideias e as “melhores práticas” espalharam-se como um incêndio por todo o continente, resultando em milhares de mulheres a serem rotuladas como a personificação do “demónio absoluto”.
No total, estima-se que a caça às bruxas, que começou no final do século XV e durou 300 anos (o último julgamento oficial de bruxaria conhecido ocorreu na minha terra natal, a Polónia, em 1783), levou à acusação de cerca de 90 000 pessoas, com quase 45 000 execuções. A grande maioria das pessoas acusadas e condenadas à morte eram mulheres — especialmente aquelas que tinham alcançado um certo grau de poder ou popularidade nas suas comunidades, mulheres idosas, viúvas, mulheres pobres e aquelas consideradas de “má reputação”, como mulheres que tinham filhos fora do casamento ou que se acreditava terem um comportamento “lascivo” e “promíscuo”.
Em nenhum outro momento da história as mulheres enfrentaram uma campanha de misoginia violenta em tão grande escala, sancionada legalmente e endossada religiosamente, como durante o período da caça às bruxas na Europa. Como Silvia Federici escreve no seu livro recente Witches, Witch-Hunting, and Women:
“On the flimsiest evidence, generally nothing more than a denunciation, thousands were arrested, stripped naked, completely shaved, and then pricked with long needles in every part of their bodies in search of the ‘Devil’s mark,’ often in the presence of men, from the executioner to the local notables and priests.
And this was by no means the end of their torments. The most sadistic tortures ever invented were inflicted on the body of the woman accused, which provided an ideal laboratory for the development of a science of pain and torture.”
Se não fosse a invenção da prensa, talvez o preconceito em relação às mulheres cujo único “crime” foi desviar-se dos ideais cada vez mais rígidos de feminilidade não teria escalado a proporções tão horríveis. Mas não é a tecnologia em si que devemos culpar. Porque não foi uma impressora aleatória que acordou um dia e decidiu aterrorizar as mulheres com acusações inacreditáveis, torturas horrendas e execuções públicas. Foram alguns homens armados com ódio e medo das mulheres que consideravam “perigosas”.
As mulheres também tiveram um papel na caça às bruxas, embora fosse passivo. Elas eram coagidas — geralmente por meio de tortura e pelas mãos dos homens — a denunciar outras mulheres, incluindo amigas próximas, ou corriam o risco de serem queimadas na fogueira. Isso também destruiu efetivamente as redes femininas de cooperação e sociabilidade que haviam sido a base do poder social das mulheres nos séculos anteriores. No entanto, essa foi apenas uma das muitas consequências trágicas da caça às bruxas.
Como mostraram, por exemplo, a historiadora Carolyn Merchant e as jornalistas Barbara Ehrenreich e Deirdre English, a caça às bruxas forçou as mulheres a abandonar o vasto conjunto de conhecimentos que gerações de mulheres antes delas haviam adquirido — conhecimentos sobre a natureza, medicina, espiritualidade e, talvez o mais importante, o corpo feminino. Infelizmente, é isso que a propaganda faz. Suprime o “antigo” para dar lugar ao “novo”, que, neste caso, foi a supressão do poder social, do conhecimento e das práticas culturais femininas em favor da total submissão ao controlo masculino e institucional, particularmente dentro da família nuclear.
A demonização da “bruxa” também foi fundamental para designar o âmbito do comportamento feminino “aceitável” — assexuado, domesticado e visto como tendo uma função principal: produzir uma força de trabalho abundante. Martinho Lutero, o padre e reformador religioso alemão que também apelava entusiasticamente ao massacre de supostas bruxas do púlpito, terá declarado uma vez: “Deixem-nas [as mulheres] ter filhos até à morte. Foram criadas para isso.”
E caso as mulheres optassem por não seguir esse caminho da feminilidade “ideal”, bem, a tortura brutal e a morte da bruxa serviam como um aviso severo do que poderia acontecer.
Tudo isso foi acompanhado por políticas institucionais, leis e regulamentos cada vez mais misóginos, que privaram as mulheres da sua autonomia e as expulsaram de certas indústrias e profissões, culminando no “culto à verdadeira feminilidade” vitoriano e na ideologia das esferas separadas.
Mas infelizmente a propaganda misógina continua viva e de boa saúde hoje em dia. Só se dissemina através de um media diferente.
Ao longo dos últimos anos, tenho escrito frequentemente sobre o aumento do discurso misógino online. O que é particularmente perturbador é que não se trata apenas de insultos e estereótipos parvos espalhados pela web, proferidos por crianças ou adolescentes entediados que não sabem melhor.
Existem sites e fóruns — coletivamente chamados de “manosfera” — onde os homens inventam e espalham teorias misóginas sobre as mulheres, a sua natureza supostamente inferior e seu lugar na sociedade. Esses inquisidores e demonologistas modernos também tendem a retratar as mulheres como criaturas do inferno, devoradoras de homens, assassinas de bebés e bodes expiatórios de todos os males da sociedade. Parte dessa retórica é até mesmo disfarçada sob o pretexto de “evidências científicas”, baseando-se em teorias evolucionistas mal interpretadas, gráficos falsos e estatísticas enganosas. As plataformas de redes sociais prendem rapazes e homens em câmaras de eco misóginas, onde essas crenças são continuamente reforçadas, já que os algoritmos são projetados para mostrar aos utilizadores mais do mesmo conteúdo com o qual eles já interagiram antes.
Não é um exagero dizer que algumas partes da internet servem essencialmente como o equivalente atual de Malleus Maleficarum.
Mas o problema também não está apenas confinado a espaços online.
Os preconceitos misóginos, a desinformação e a utilização de bodes expiatórios são comuns nos media tradicionais — especialmente nos meios de comunicação de direita —, na política e até mesmo nas políticas aprovadas por alguns governos. As mães solteiras são culpadas por destruir a “santidade” da família nuclear. As mulheres sem filhos e as que tomaram a decisão de não ter filhos são assediadas por não cumprirem o seu “único verdadeiro propósito”. Mulheres em papeis tipicamente “masculinos””, especialmente em cargos de liderança, são acusadas de roubar “empregos dos homens” e consideradas “inadequadas” para as suas funções. E a lista continua.
Não é propriamente difícil traçar paralelos perturbadores com o passado distante em tudo isto, não é? Ainda assim, só porque a misoginia de hoje pode não parecer tão grave, não devemos ser tão rápidos em descartá-la como inofensiva.
A história dos julgamentos de bruxas mostra claramente o que acontece quando a propaganda misógina alimentada pela tecnologia fica fora de controlo. É capaz de aterrorizar sociedades inteiras, isolar as suas vítimas, desencorajar a resistência e fazer com que as pessoas sigam um movimento porque “toda a gente está a fazê-lo”. E isso não leva apenas à polarização social, mas também à violência. Podemos não estar a queimar mulheres na fogueira, mas as taxas de violência doméstica baseada em género, violência sexual e assédio online continuam a ser alarmantes.
Ainda existe uma via estreita para o que é consideradocomportamento feminino “aceitável”, e qualquer mulher que ouse desviar-se dela paga um preço.
No entanto, não podemos esquecer-nos de que, embora as tecnologias possam tornar-se ferramentas de violência e perseguição, também podem estimular mudanças positivas. A mesma tecnologia de impressão que ajudou a alimentar a caça às bruxas acabou por difundir a alfabetização e a educação em massa e, por sua vez, ajudou a desafiar as superstições prejudiciais em torno da bruxaria e das mulheres.
As tecnologias não são inerentemente boas ou más — simplesmente são. É como as usamos que importa mais.
De vez em quando, paro e penso: “oh, sim, eu teria sido definitivamente queimada na fogueira, internada num manicómio ou forçada a submeter-me a uma lobotomia se tivesse nascido em qualquer outra época.”
Enquanto escrevo esta última parte, estou a beber uma infusão de ervas — uma mistura de dente-de-leão, urtiga, camomila, melissa e hortelã-pimenta. Também cultivo as minhas próprias ervas. Tenho um gato preto. Não tenho filhos. Mas talvez o pior de tudo seja o facto de ser instruída e dizer o que penso sempre que me apetece. Ficarias surpreendido (ou talvez não, se também fores uma mulher na Internet) com a quantidade de homens que se irritam com a minha própria existência e voz.
Como para tantas mulheres que vieram antes de mim, o meu ofício é uma forma de emprego, sim, mas também me dá poder neste mundo. E isso continua a ser assustador para algumas pessoas, graças à velha propaganda misógina que se devia ter tornado uma relíquia do passado.
 
											 
				 
								


 
															
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