Comunista que curte carros. Marginal que não tem receio de ser o centro das atenções. Don L é um daqueles artistas impossíveis de reduzir em rótulos sem trair alguma parte essencial do que representa. Com uma carreira que já vai longa e lhe vale uma legião fiel de fãs, Gabriel Linhares da Rocha — nome de registo — tem ao longo das últimas décadas forjado um jeito muito próprio de musicar a sua forma de vida.
Político sem ser panfletário, revolucionário sem estar só revoltado, o artista que é conhecido como o rapper favorito do seu rapper favorito, domina os métodos e códigos do rap americano, mas nunca se contenta com reproduzi-los. Pelo contrário, desde sempre revelou a vontade e o à vontade para os apropriar como ferramenta de exploração dos seus universos pessoais — do geográfico ao sentimental.
Em 2025, e pouco mais de um ano depois de uma passagem por Portugal onde pudemos testemunhar a comunhão com o seu público — capaz de cantar todas as letras em uníssono com o rapper —, o último bom malandro estará novamente de passagem por Lisboa e pelo Porto, desta vez para apresentar um novo trabalho. Caro Vapor II é, mais do que um novo álbum, é a revisita a um momento marcante da sua carreira, um registo do que mudou desde então, e o culminar do aperfeiçoamento do seu estilo. Com uma toada reflexiva, faixas abertamente políticas e um discurso claramente identificado com o imaginário do Sul Global, Caro Vapor II, tal como o seu autor, está muito longe de se esgotar nesses rótulos. Com revolução, utopia, mas também amor, paixão e malandragem, batidas diversas e uma enorme riqueza musical, o disco é, mais do que um manifesto político auto-referencial e hermético, um convite inspirando para uma revolução quotidiana — que não sacrifica o presente, e faz da sua fruição um devir revolucionário.
Entre concertos de apresentação deste trabalho, e poucos dias antes de atravessar o Atlântico para começar por Lisboa a sua tour europeia, diretamente de um hotel em Brasília, o rapper falou com o Shifter. Numa entrevista que teve como ponto de partida o último trabalho de Don L e a sua passagem por Portugal, a conversa seguiu o jeito deambulante, eclético e inspirado do disco, e deu espaço para que o músico nos falasse melhor sobre as suas inspirações, motivações e preocupações e da forma como as procura expressar no seu trabalho artístico.
S.— A minha primeira pergunta é óbvia: por que é que, ao fim de dez anos, regressas a Caro Vapor? Há temáticas que reservas para esta série?
D.L.— Quando eu fiz o Caro Vapor I também levou um tempo. O Caro Vapor I é um condensado de um momento em que me questiono sobre vários assuntos e dilemas muito introspectivos da nossa vida, em contraste com a nossa condição social, com o que a gente vive — com os meios de conseguir fazer as melhores escolhas para que a gente aproveite o melhor possível, da forma melhor possível esse nosso vapor.
Esse nosso vapor já foi chamado do Vapor Barato pela Gal Costa e eu fiz essa brincadeira de ser o Caro Vapor, já que nessa nova era, nesse novo tempo, a gente passa a almejar uma vida em que a simplicidade do viver não tem mais espaço. Tudo passa a ser muito caro. Qualquer coisa que se almeje para ter o mínimo de uma vida digna, passa a ser uma escolha de percorrer um caminho onde tudo começa a ficar mais caro. E ali era vida e veneno de Don L. Era um momento, como se fosse uma… fala-se muito de crise de meia-idade, né? Eu acho que eu tenho uma crise de um quarto de idade. Cada vinte e poucos anos, ou a cada dez anos, tem uma crise na real, porque você tem que lidar com as escolhas que você fez dez anos atrás e pensar como com os seus próximos dez. Então, era meio isso.
O Caro Vapor II nasce agora, dez anos depois, com algumas respostas para questões que foram levantadas ali, mas também muito mais perguntas. É sobre uma nova era, um novo tempo. Muito do que a gente fala agora não seria nem entendido naquela época e passou muito pouco tempo. Para você ver como o nosso vocabulário mudou, como nossos sonhos mudaram, as nossas perspectivas de vida mudaram… Eu costumo dizer que no Caro Vapor I a vida online imitava a vida real e agora é o contrário. Agora, as pessoas tentam na vida real imitar a vida online. Simular o que seria a simulação da vida na internet, no virtual. É uma vida totalmente dominada pela presença de algoritmos, de robôs que são controlados por big techs. A gente passou a viver num tipo de distopia que era imaginada nos filmes de uma forma mais material. Se você for ver Blade Runner, e esses filmes assim, os robôs estavam por toda parte materializados, e talvez eles estejam algum dia, mas agora já estão entre nós de forma imaterial através de um aparelho que está no nosso bolso 24 horas por dia — que permite essa comunicação que eu estou tendo agora com você e é maravilhosa. Mas ao mesmo tempo traz tantos outros fatores que mudam completamente a nossa forma de viver.
Então, isso é algo que mudou muito do Carro Vapor I para o Carro Vapor II, a tecnologia dominou completamente a nossa vida. Mas os dilemas são os mesmos. A gente vive no mesmo sistema económico. Só que parece que as coisas se acentuaram, que as coisas ficaram mais nítidas.
S.— Há novos vícios, não achas? Tens muito essa figura na tua música, do vício e da cura?
D.L.— Isso, isso, exatamente.
“Se você tem um conceito que se pretende de vanguarda ou propositivo e a sua forma é conservadora, o seu discurso também vai tender a ser conservador. Vai ser percebido, vai ser sentido, como um discurso conservador.”
S.— Li numa entrevista em que dizias que este disco “não tinha nada gringo”. Queria que me falasses um pouco sobre isso. A ideia é que a estética reflita o lado político? E como foi esse processo?
D.L.— Sim, a estética tem que acompanhar o conteúdo. Essa separação entre conceito e forma — conceito e estética — na arte ela não existe, é artificial. Se você tem um conceito que se pretende de vanguarda ou propositivo e a sua forma é conservadora, o seu discurso também vai tender a ser conservador. Vai ser percebido, vai ser sentido, como um discurso conservador. Então, tenho que acompanhar na estética o discurso, o que eu estou propondo, porque a arte é sentida. A arte primeiro vem pelo sentimento, depois é que você vai pensar sobre, né? Eu era moleque, eu escutava rap gringo sem entender nada do que os caras estavam falando, mas eu estava sentindo ali a estética, a forma, a fonética, a impostação da voz, tudo isso influi no que você está querendo passar.
E essa escolha do sem batidas gringas — que é uma coisa que eu queria fazer desde o começo, mas que fui evoluindo ao longo da minha carreira — acho que calha num momento muito especial nosso aqui no Brasil em que a gente precisa levantar a cabeça e lembrar do que a gente é. Ter o orgulho do que somos, né? O Brasil é um país que tem uma história de milhares de anos, mas que como o Brasil tem apenas 500 anos. É essa formação forjada na violência colonial e nessa mistura de culturas e raças que tem contribuições de todos os envolvidos que são grandiosas, e a gente esquece de tudo que a gente fez, às vezes. A gente fica cabisbaixo, fica com baixa autoestima por causa de um momento que a gente está vivendo, que é um momento político, social e económico que, eu diria, não é dos melhores.
Acho que todo o mundo está desse jeito, não é uma peculiaridade nossa, mas cada um cuida do seu, né? Pensando, aqui, no que é importante para a gente: eu acho que é importante retomar o nosso projeto de soberania, de ser brasileiro, de entender que a gente é foda. A gente criou João Gilberto, Jorge Ben, Caetano Veloso, Milton Nascimento, como a gente pode andar de cabeça baixa tendo isso? A gente faz rap, mas o rap faz parte dessa absorção da cultura mundial, como um dia a gente absorveu também elementos dos portugueses que vieram para cá e fizemos o samba. Com tudo o que veio da África e dos povos indígenas, criámos um estilo de música que é também um estilo de vida, um lifestyle — um lifestyle de você conseguir em condições totalmente adversas buscar uma forma de vida que não seja só sobrevivência. Apesar de tudo, a gente está aqui, mas a gente não quer só sobreviver, a gente vai viver também.
Acho que nesse momento do Brasil, em que estamos sobre um ataque imperialista dos Estados Unidos, como muitos países da Europa estão agora também, a gente precisa lembrar o que a gente é. A gente inventou o avião, cara. Tá ligado? A gente tem grandes cientistas, grandes cientistas sociais, grandes antropólogos, grandes… tudo. A gente tem tudo. E a gente às vezes age como se a gente fosse qualquer coisa, sabe? Então era muito importante para mim nesse momento lembrar que “olha o que eu faço é música, e dentro da minha área a gente criou um dos tesouros artísticos mais ricos do mundo, do planeta, da humanidade.”
S.— Eu lembro-me sempre de um meme da internet que diz: “O Chico Buarque desta geração continua sendo o Chico Buarque”. Parece que às vezes fica difícil que novos artistas com uma pauta mais política sejam reconhecidos como tal, mas não é porque não existam, concordas?
D.L.— Sim, totalmente.
S.— Tu assumes essa politização. Eu queria perguntar-te se achas que isso te prejudica. Parece que hoje em dia tudo tem que ser higienizado, tudo tem que perder a carga política para ter o seu lugar. Como é que tu equilibras essa tensão?
D.L.— Eu sou um artista que tem essa dimensão, eu tenho consciência dessa dimensão. E tenho noção do que a gente perdeu, mas também da dimensão do que a gente ganhou.
Porque, sabe o que acontece? Hoje em dia a gente tem uma — vamos dizer assim — uma aceitação maior da arte periférica, mas ela também está sob ataque. Você vê vários caras do funk sendo perseguidos, sendo presos pela polícia, como o samba foi perseguido um dia. Mas noutra outra dimensão, o funk é aceite quando é domesticado.
A arte periférica, a todo momento, sofre ataques de combate, puro e simples, — como está acontecendo com prisões de artistas — ou de domesticação dos artistas, para dizer só o que é interessante ser dito para as coisas permanecerem como estão. Mas a gente tem uma tradição muito grande de caras como Chico Buarque, como Caetano Veloso, que são pessoas que estavam numa posição de fala da sociedade brasileira privilegiada naquele momento, mas que tiveram a coragem de usar dessa posição para imaginar um outro Brasil, para dizer coisas que deveriam ser ditas e de forma bonita, de forma que não empobrece a arte. Eu sou um grande fã do Chico Buarque, mas também um grande fã de Bezerra da Silva, um grande fã de Cartola, que estavam em outra condição social e, ainda assim, dizendo coisas importantíssimas e também de forma bonita, de forma artística. Olha o que é a poesia de Cartola. Cartola que passou a vida inteira morando no morro da Mangueira.
A gente tem isso tudo e eu, conscientemente, optei por não desprezar essa tradição, por não deixar morrer essa tradição. A gente precisa resgatar isso, é uma riqueza nossa, entende? A gente não pode agir como se isso fosse algo do passado, algo que esteve aqui presente algum dia, como se a gente não pudesse aproveitar dessa tradição, desse conhecimento que foi construído.
S.— Uma coisa que se destaca muito na tua música é que ela é bastante política, mas não é frustrada, ou depressiva, é bastante alegre. Isto é algo importante para ti?
D.L.— É. A música não precisa ser panfletária, senão fica chato. Eu não gosto de música panfletária. No rap tem umas categorias que são muito velhas, e uma delas é o rap consciente. Eu brinco dizendo: “Nossa, eu odeio rap consciente, acho chato para caralho”. Claro que eu tenho todo respeito a quem faz e se intitula como rap consciente, mas eu não gosto é do rótulo, entendeu? E eu não considero que eu faça isso, acho que eu faço outra coisa. Eu me filio mais a um tipo de arte como de quem você citou, de artistas que tinham uma carga política, mas que ao mesmo tempo faziam isso. Você pode ir em qualquer lugar do mundo, tem gente ouvindo a música deles sem entender nem a letra, porque é uma música de uma qualidade artística ímpar, entendeu?
Os caras eram tão prá frente que eles tinham que passar pela censura, as letras iam para os encarregados da ditadura militar de censura. Eles tinham que fazer algo que eles [os censores] não fossem entender, mas que o povo fosse entender. Olha que genial, os caras tinham que ser. Então isso forjou-os, isso obrigou-os a serem muito criativos — imagina isso. A gente tem que lembrar disso e fazer jus. Se você vem nessa linhagem, você tem que fazer jus.
S.— Uma coisa que eu acho que salta muito também nas tuas letras e na tua música é que tu estás à vontade com coisas que podem parecer contraditórias. Eu lembro-me sempre da música com o Chinaski, em que tu dizes sou comunista e curto carro; exprimes uma certa legitimação de equilíbrio entre um lado revolucionário, mas também o aproveitar da vida. De onde vem?
D.L. — Ah, muito, mano. Posso até parecer repetitivo aqui, mas é que é muito importante isso. A gente tem a tradição dos povos indígenas brasileiros que tem um conceito chamado de bem viver. Quando os colonizadores chegaram aqui e encontraram povos que poderiam parecer, à primeira vista, povos atrasados, era muito pelo contrário. E agora as pessoas estão entendendo tecnologias que eram conhecidas aqui. Por exemplo, a agricultura agora está descobrindo que é legal fazer uma agricultura agroecológica e orgânica, porque os nutrientes vão ser muito melhores para a nossa saúde, porque a qualidade da comida vai ser muito melhor. Isso é o que os indígenas faziam. Eles fizeram a Amazónia — a Amazónia é uma floresta plantada e cultivada pelos povos indígenas. Aquele povo tinha um respeito muito grande à vida, a viver bem, ao conceito do bem viver. Os povos indígenas ameríndios tinham esse conceito, quase todos, e a gente tem que lembrar disso.
A gente quer mudar o mundo, a gente quer fazer ou construir outra coisa, porque isso aqui não está legal para ninguém, mas nesse caminho, nesse processo, a gente quer também estar vivendo bem. Isso é uma dificuldade, por um lado, porque a gente não é como outros povos que fizeram revoluções em condições duríssimas e conseguiram ser resilientes a trajetórias inteiras de vida, pensando nas próximas gerações e tal. Eu reconheço isso como algo bonito, mas isso não é a gente. A gente nunca conseguiria fazer isso, porque o nosso povo preza pela nossa vida no aqui e agora, a nossa revolução tem que ser vivendo. Isso é que é louco, e a gente vai ter que lidar e construir isso.
“Mas a gente está, até agora, preferindo lidar com a ideia de que não tem escolha a não ser viver uma distopia. Isso é muito limitador. A gente está imaginando muito pouco.”
S.— E é muito contrário àquilo que dizias no princípio, não é? Isso não existe online. Online parece que é uma competição de quem é o mais indignado, o mais frustrado. Acho que a arte tem que ter um bocadinho esse papel de incentivar a imaginação para esse lado.
D.L. — Sim, a gente precisa retomar as nossas conexões sociais da vida real, orgânicas. Utilizar a tecnologia a nosso favor e não ser escravo dela. Essa é a dificuldade.
É muito louco… olha que mundo em que a gente vive — a gente tem um conhecimento criado coletivamente muito avançado como humanidade. Toda a tecnologia é algo criado socialmente e coletivamente, não foi uma pessoa que inventou. Uma pessoa é dona de uma big tech, mas ela não inventou isso. Para chegar aí, tiveram que ter investimentos em universidades, investimentos em ciência, investimentos em educação, que são coletivos e construídos coletivamente. E no dia em que a gente conseguir utilizar esse conhecimento a nosso favor, para o nosso bem comum, bem coletivo, a gente pode viver uma utopia. Mas a gente está, até agora, preferindo lidar com a ideia de que não tem escolha a não ser viver uma distopia. Isso é muito limitador. A gente está imaginando muito pouco. Estamos sendo muito pobres de imaginação ao não pensar que isso pode ser usado a nosso favor de uma forma maravilhosa. Acho que a gente tem que retomar a vida offline, mas entendendo que essa tecnologia tem que ser também apropriada por nós e usada a nosso favor.
A gente tem coisas maravilhosas para fazer com ela. Agora, a gente não pode ser escravo dela. A gente não pode ser dominado por ela. Principalmente não pode ser dominado pelos algoritmos que jogam muito baixo, que trabalham com pesquisa científica sobre hormonas, sobre dopamina, serotonina, sobre como essas coisas agem no cérebro, qual o estímulo que vai funcionar. Que a partir das suas próprias ações, dos seus padrões de uso, vão identificando padrões psicológicos e mentais que vão trabalhar com a sua dopamina para te manter preso. Esse é o pior tipo de manipulação possível. A gente tem que ter consciência disso e criar estratégias para se libertar.
S.— Quando recomendei o teu disco na nossa newsletter, mencionei-o como uma espécie de manifesto pelo sul global. Preparando esta conversa, li uma entrevista em que dizias que os políticos olham para a França de uma maneira, mas olham para a Turquia de outra — olham para tudo que seja sul global de outra forma. Achas que é importante também criar esse imaginário e reforçar esse imaginário, essa identificação, do sul global?
D.L.— Criar essa identificação e conversar mais, eu diria. A gente passou gerações e gerações apenas olhando para a música norte-americana, noutro momento para a música europeia… Agora mesmo a música europeia só olha para a música norte-americana. Eu vejo as coisas que são criadas na Europa e sinto falta de coisas que tiveram tradições importantíssimas — da música eletrónica europeia, por exemplo — que são pouco desenvolvidas como algo original hoje em dia. Só se olha muito para Hollywood, para o império cultural norte-americano mesmo. E a gente aqui no sul global da mesma forma.
Eu sempre digo que desde que baixei aquele aplicativo, o radiooooo, foi a confirmação para mim. O radiooooo separa a música por décadas e locais, e aí você bota nos 50, aí você vai botando o que estava tocando na Turquia, o que estava tocando em Zimbabué.. E é de tudo diferente, cada lugar estava tocando um tipo de música. Quando você vai avançando nas décadas de 60, 70, 80, quando chega nos anos 90, começa a ficar mais parecido. Chega nos anos 2000, está tudo igual. Nos anos 2020, você bota no Vietnam, na Austrália, nos Estados Unidos, no Japão, na Turquia, e estão tocando coisas muito parecidas.
Tem algumas exceções, claro. Eu fico pesquisando e vejo que, por exemplo, a África não foi dominada culturalmente. Tem povos que são difíceis de ser dominados. Então, se você botar na Ásia, você vai ouvir muito mais R&B, rap, coisas muito parecidas com os americanos, em alguns lugares. Na Europa, totalmente. Não tem nenhuma diferença. Inclusive, todo mundo está cantando em inglês — pode ser na Alemanha, na Holanda, em Portugal, em qualquer lugar, está todo mundo cantando em inglês. E na África, não. Na África a galera tá fazendo um lance que tem influência do hip hop, mas tem essa coisa da diáspora africana que eles reconhecem como deles também, aquilo ali. E aí vai ter Kuduro, vai ter Amapiano, vai ter Afrobeats, vai ter um monte de coisa. Cada lugar é de um jeito, e isso é riqueza, cara. Como é que a gente pode perder isso para tornar todo mundo igual? A gente tem que conversar mais com eles também. Do jeito que eles gostam e escutam muito a música brasileira, a gente tem que ouvir a música africana. A gente tem que ouvir a música argentina, a música mexicana… o que está tocando na América Central? O que está sendo feito na América Central e que é de lá mesmo? Essa troca do sul global cultural eu acho que é importante, para que a gente favoreça também a troca política, que é o que tem que acontecer depois: a gente fazer comércio entre nós, a gente fazer turismo entre nós — ter essa troca cultural como a gente sempre teve, mas tem que continuar tendo com a Europa, com os Estados Unidos.
A gente não está, nesta forma de valorizar a cultura do sul global, desprezando tudo o que existe no norte global também e que também é nosso. A gente tem que chegar ao momento do humanismo radical, voltar à ideia do humanismo radical, que é o conceito de que todos nós somos humanos, seres humanos, trabalhadores e que temos condição de construir um mundo o melhor possível para todos nós. Mas até lá, a gente tem que valorizar o que é nacional, o que é local, o que é da sua cidade, da sua rua, para ir expandindo isso aos poucos.
S.— É curioso estarmos a falar de África, porque aqui na minha pergunta seguinte andava por aí… achas que faz falta um sul-futurismo, como existe o afrofuturismo? Sentes que o futuro é o sul, de alguma maneira?
D.L.— Sim, cara. Eu acho que a gente tem que olhar para o sul e imaginar um futuro. Temos que imaginar um futuro que não seja um futuro distópico, que não seja um futuro de morte das esperanças, né? Porque é muito fácil imaginar esse futuro da morte das esperanças, já foi imaginado desde os anos 70. Tem muito filme sobre como seria a distopia do futuro, e a gente já está nela. Não precisa mais. A gente tem de fazer o contrário. A gente tem que imaginar um futuro melhor para a gente, voltar a ter uma construção do que a gente quer construir. E não apenas ficar sujeito ao que nos é imposto.

S.— Eu gostei muito daquilo que disseste sobre a falta de diálogo no sul global. Como vês a relação do Brasil com Portugal? Na faixa “iMigrante” falas de Portugal, achas que também devia haver mais diálogo entre Brasil e Portugal?
D.L.— Eu acho que sim, como acho que Portugal tem muito a trocar com o Brasil. A gente tem esse trauma colonial que precisa ser resolvido de uma forma honesta, mas a gente está intrinsecamente, intimamente ligado. Isso é inseparável. Isso não tem volta. Depois de tudo que aconteceu, não tem volta.
Tem muitos brasileiros em Portugal, cada vez mais. E esses brasileiros que estão em Portugal estão sendo alvo de uma xenofobia e um racismo que é baseado em mentiras, como se a população que estivesse aí não fosse necessária para o país. Mas Portugal tem uma demografia que está envelhecendo, precisa de pessoas jovens, e o Brasil leva pessoas jovens que falam português, que tem uma cultura que já é irmã, e que paga impostos. É mentira que os brasileiros que estão em Portugal estão utilizando os serviços de segurança social sem pagar impostos. Tem um superávit do que o brasileiro paga e do que o brasileiro usa; ele está pagando muito mais do que usa. E a gente sempre foi muito receptivo. Apesar de todo o passado colonial, os portugueses sempre foram muito bem recebidos e muito bem tratados, e são até hoje muito bem recebidos e bem tratados, no Brasil. Você praticamente não conhece uma história de alguém que tenha sido hostilizado. Nunca vi acontecer. Não existe motivo para se criar uma inhospitalidade que não é recíproca. Saca?
“Não foi o povo trabalhador português que colonizou o povo brasileiro. Foi uma classe de Portugal que colonizou o povo brasileiro.”
S.— Eu acho que tem muito a ver com a internet. Quando fui ao Brasil pela primeira vez toda a gente me preparou para antipatia, para que me pedissem “o ouro”, e eu encontrei o contrário. Acho que a internet às vezes dificulta esta comunicação honesta, o olhar no olho, o ouvir a voz.
D.L.— Sim, total. E também conhecer a história. O meu sonho é que a gente consiga entender que, apesar de se dizer “Ah, Portugal levou o ouro do Brasil”, na verdade, foi a Inglaterra que levou. A gente foi colonizado por um país que foi colonizado por outro país indiretamente, né? E o povo trabalhador é o povo trabalhador mundial. Não foi o povo trabalhador português que colonizou o povo brasileiro. Foi uma classe de Portugal que colonizou o povo brasileiro. E, a partir de um movimento colonial, existiu um movimento de limpeza étnico-racial e de embranquecimento de uma população que se utiliza das pessoas pobres daquele país, para praticar racismo, para praticar todo tipo de horrores que aconteceu no Brasil. A gente precisa lidar com essa história de forma honesta. Mas não é como se fosse uma coisa de um povo. É uma classe. É um sistema económico que parte de uma classe. E o ouro não ficou em Portugal.
A gente tem que ter essa compreensão. E seria bom também que Portugal tivesse essa compreensão de que, na verdade, Portugal precisa também de uma soberania maior. Inclusive, em relação à União Europeia, em que Portugal trabalha numa posição super desfavorecida, como um país desindustrializado, que fica à mercê da França, da Alemanha, que não tem o Banco Central e se sujeita às flutuações do euro — assim é um pouco mais complicado. As pessoas ficam com essas as ideias de cadê o ouro e tal, e o ouro já foi embora há muito tempo.
S.— Como dizes numa entrevista, e na própria faixa, hoje em dia procura-se respostas muito rápidas e acaba por se culpar o pobre, o imigrante. Voltando ao teu trabalho, li numa outra entrevista sobre o teu sonho de fazer algo em cinema e de trabalhar com Geovani Martins, queres falar sobre isso?
D.L.— Eu não sei nem como você está sabendo disso, mas a gente tem essa ambição aí de fazer cinema. Infelizmente é muito difícil fazer cinema no Brasil. Se você tiver paciência para, depois que um filme acabar, ver aquelas letrinhas que aparecem ali e contar quantas pessoas estão trabalhando ali, você vai entender que fazer cinema é um negócio caro, complicado. É muita gente. É um trabalho coletivo. Então, às vezes, é um pouco difícil para nós, mas eu quero muito fazer e estou em busca de recursos para construir um trampo. E o sonho é que seja com o Geovani Martins, a gente tem trocado essa ideia.
Eu sou um grande fã desse grande escritor contemporâneo brasileiro. Um cara que, porra, vem da favela e vem quebrando os estereótipos do que seria um escritor favelado. Já tem a obra dele traduzida em diversos países. É um cara genial e que eu me identifico muito, e quero muito trabalhar com ele em algo de cinema.
S.— Por último, uma pergunta que saltei mas que não posso deixar de fazer, agora que falámos do Geovani. Tens algumas referências neste disco que queiras revelar, ou queres deixar para as pessoas descobrirem? Lembrei-me de te perguntar isto agora porque eu não conhecia a referência do “Vapor Barato” e acredito que, como esta, haja muito mais.
D.L.— Eu gosto dessa coisa da galera descobrir. Eu, como artista, acho massa e acho que dá uma longevidade para a obra também. Eu recebo muitas mensagens de gente que escuta os meus discos há muitos anos, e a galera fala assim: “Ah, eu escuto tua música há 10 anos, essa aqui, mas hoje eu descobri isso aqui”, e eu tenho isso com esses grandes antigos, com os Chico Buarques, com os Cartolas da Vida, que eu escuto e a música vai ganhando novos sentidos, né? Então, eu acho que é legal a música ter várias camadas, mas é importante que a primeira camada seja facilmente absorvível, sabe? Para que as pessoas, de todos os backgrounds possíveis — dos mais desfavoráveis, aos mais favorecidos — consigam absorver algo ali, que é essa primeira camada. E depois vão descobrindo outras camadas, depois vão buscando outros artistas.
Então, este é um disco que homenageia a música brasileira. Passeia por diversas vertentes que eu gosto muito da música brasileira, mas também na música africana, também na música latina, né? Da música sul-americana em si. Por exemplo, tem uma coisa com o bossa jazz ali, que eu queria muito ter nesse disco. É um tipo de música que é uma coisa maravilhosa. Tem discos de bossa jazz gravados nas décadas de 60 e 70, que são cultuados no Japão como ouro. São cultuados na Europa como ouro. E aqui, às vezes, a gente nem conhece porque eles não fizeram sucesso na época deles. Ficaram os discos de vinil, e os gringos aficionados por música brasileira vieram aqui, compraram, levaram e a gente, às vezes, não tem nem conta direito aqui. Quis também trazer muito disso nesse disco. Eu acho que é uma das coisas que a galera vai sacar, assim, vai procurar depois. É um tipo de música que tá meio enterrado ali, escondido, que é uma fusão da música brasileira com o jazz. E foi de uma altura em que a gente se comunicou, o que é muito parecido com o que eu estou fazendo agora: que é aquela coisa de pegar o rap — que é o rap — mas as batidas não são gringas. A batida é nossa, entendeu?
A gente usa o método apenas. Os caras usam o soul, a gente usa o samba, a bossa, o jazz, a MPB. E a gente pega, sampleia, ou refaz, ou retoca e tal, e cria isso que a gente ainda continua chamando de rap.



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