Houve qualquer coisa na sua presença que inquietou Virginia Woolf naquele jantar, na noite de 14 de dezembro, em casa do crítico de arte Clive Bell. Woolf estava habituada a estes convívios, sobretudo com os membros do Bloomsbury Group — onde todos tinham qualquer coisa a acrescentar ao debate intelectual que se iniciasse — mas com ela era diferente. Achou-a talentosa, com uma capacidade impressionante de escrever 15 páginas por dia, e sem falsas modéstias ou timidez, como uma boa aristocrata. Quando Vita Sackville-West estava numa sala, a atmosfera era diferente. E naquela noite Virginia Woolf sentiu-o. Perante ela, sentiu-se outra vez uma adolescente.
No final desse ano de 1922 começava uma história que não resultaria apenas num affair circunstancial. Foi um encantamento mútuo que durou mais de 20 anos e que provou ser tão essencial à vida de Vita e de Virginia como ar para respirar. Resultou em cartas de amor com conselhos literários, discórdias e ciúmes, fins-de-semana no campo e sonhos de um futuro que ficou por cumprir. O que não ficou resolvido na vida, serviu à literatura.
Hoje, ir a uma livraria e perguntar por livros de Vita Sackville-West — que escreveu 13 romances, dezenas de coleções de poesia e foi best-seller em vida — é entrar num vazio. Em muitos lugares, só a conhecem por um nome: Orlando. O livro homónimo, de Virginia Woolf, hoje tido como uma referência à frente do seu tempo na literatura queer, é sobre e para Vita. Como uma das mais honestas e bonitas cartas de amor alguma vez escritas.
Mas Vita Sackville-West foi mais do que “a amante de Virginia Woolf”. Conhecê-la melhor é entender que a riqueza da personagem projetada por Virginia Woolf tem uma raiz.
Knole: uma casa, uma família, um livro
Quando Virginia conheceu Vita, percebeu que tinha diante de si uma história digna de literatura e que o cenário principal dessa narrativa era uma casa aristocrática em Kent, Inglaterra. Vita nasceu e cresceu em Knole, a casa da família Sackville-West, um lugar carregado de História. Concebida como uma “casa calendário” — o que significa nada mais nada menos do que uma construção com (pelo menos) uma divisão por cada dia do ano —, Knole foi em tempos um palácio medieval para bispos, só que o rei Henrique VIII gostava tanto de ir lá caçar (Knole tem um enorme parque de veados) que forçou o Arcebispo da Cantuária a ceder-lhe a casa em 1538.
A forma como Vita Sackville-West surge nesta história é que não é tão óbvia quanto possa parecer. No ano de 1604 Thomas Sackville (aka Lord Buckhurst) adquiriu a casa que permanece nas mãos da família há mais de 400 anos, e é na geração de Lionel Sackville-West, avô de Vita, que as dinâmicas em torno da propriedade da casa ganham outro significado.
Membro da aristocracia britânica e descendente de Thomas, Lionel apaixonou-se por Pepita, nome artístico de Josefa Duran, uma mulher cigana espanhola, bailarina de flamenco, que viu dançar num espetáculo em 1851, em Madrid. Pepita era casada com Juan Antonio de Oliva, bailarino e professor de dança com quem a sua mãe tinha feito um acordo para que a filha pudesse ter uma carreira. Mas a paixão proibida entre Lionel e Pepita tornou-se recíproca e, embora o aristocrata nunca a viesse a assumir publicamente, resultou em cinco filhos.
Quando Pepita morreu precocemente, Lionel mudou-se para a Argentina e os filhos mais velhos, Max e Vitoria, foram viver para um colégio interno. Anos depois, Lionel seguiu para Washington DC e foi buscar Vitoria para ser o seu braço direito. De volta a Inglaterra, Vitoria acabaria a casar-se com um primo, também chamado Lionel. O motivo principal do casamento foi a enigmática casa, já que segundo as regras da aristocracia o herdeiro teria de ser um homem, e quando Lionel (o pai) morresse, seguir-se-ia Lionel (o primo). Juntos, tiveram uma filha: Vita.
A infância de Vita foi passada nesta casa gigantesca, com tudo o que isso podia ter de entusiasmante e solitário. Teve conversas imaginárias com os protagonistas dos retratos pintados a óleo e sonhou por várias vezes que os leopardos inscritos nas paredes — o emblema da casa — ganhavam vida durante a noite. O privilégio da vida burguesa permitiu-lhe explorar a imaginação sem limites. A escrita sempre foi uma forma de organizar o caos: primeiro através de peças de teatro, depois com romances e poemas.
Esta casa da infância torna-se parte da identidade de Vita. É por isso que quando conhece Virginia Woolf começa por lhe falar de Knole — apresentar-se teria sempre de passar por mencionar “Knole and the Sackvilles”, o livro que escrevera sobre a relação da sua família com a casa. Woolf diz-lhe que gostava de o ler e Sackville-West envia-lhe uma cópia: é esse o tema da primeira carta que Virginia endereça a Vita, no ano de 1923. E é a partir desse momento que começa a germinar a ideia de Orlando.
Quatro anos depois, na entrada do seu diário do dia 5 outubro de 1927, Virginia descreve pela primeira vez o que viria a ser Orlando: “(…) a biography beginning the year 1500 and continuing to the present day, called Orlando: Vita; only with a change about one sex from another”. Quatro dias depois, partilha com Vita a ideia:
“(…) suppose Orlando turns out to be Vita; and it’s all about you and the lusts or your flesh and the lure of your mind (heart you have none, who go gallivanting down the lanes with Campbell) — suppose there’s the kind of shimmer of reality which sometimes attaches to my people, as the lustre of an oyster shell (…) Shall you mind? Say yes, or No: Your excellence as a subject arises largely from your noble birth. (But what’s 400 years of nobility, all the same?)”.
A resposta da homenageada é peremptória: “Tens a minha total permissão”.
Quanto de Vita existe em Orlando?
20 de março de 1928. Virginia escreve a Vita: “ORLANDO ESTÁ TERMINADO”. Nas cartas que trocam daí em diante, durante uns tempos, ambas se referem a Vita por esse nome. Embora para Virginia este exercício de escrita seja algo que deve permanecer numa janela temporal, Vita vai retomando o tema uma e outra vez. Chega a dizer a Woolf que inventou “uma nova forma de narcisismo”, tal é a adoração que tem pela obra em que se vê retratada. As descrições de Knole e da personagem Orlando, que ali ganham outro peso, são credíveis. E emocionam-na. Dúvidas houvesse sobre a inspiração para esta obra, Virginia decide incluir fotografias da própria ao longo do livro, referindo-se a elas como Orlando em determinados momentos da história.
O olhar externo de Virginia permite-a aceder à essência das relações interpessoais, e de poder, que pertencem à vida de Vita, mas que são maiores do que ela própria. Esta história da vida real lê-se como uma alegoria.
No livro, Orlando é um jovem rapaz inglês que tenta seguir à risca os deveres aristocráticos impostos pela sua família, e quando está sozinho escreve poesia. Vive algures entre o fascínio pela aristocracia e pelo poder, e a verdade que encontra nos lugares e nas pessoas comuns. Apaixona-se muito frequentemente, no entanto há uma paixão que o marca particularmente: Sasha, a princesa russa. Uma vez que ambos falam fluentemente francês, aproximam-se e acabam por planear fugir juntos. Só que quando chega o momento da concretização do plano, Sasha não cumpre com a sua parte e Orlando fica desolado. Acaba por se isolar na sua casa de família que tem 365 quartos e 52 escadarias.
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Sasha, a princesa russa, baseia-se em Violet Keppel, uma das amantes mais marcantes na história de Vita, e a quem chegou a escrever em francês. A paixão, que começou quando ainda eram muito jovens, ganhou outros contornos quando ambas já estavam casadas. Vita casou-se com o escritor e diplomata Harold Nicholson, Violet com o major Denys Trefusis. Se a primeira tinha uma relação aberta com o marido com quem teve dois filhos, que também mantinha vários casos extraconjugais com pessoas do mesmo género, a segunda tinha um casamento de fachada.
Durante uma viagem de Harold a Paris, foram juntas para Monte Carlo e planearam largar tudo e começar uma vida em conjunto. Durante o tempo em que lá estiveram, Vita vestiu-se com roupas masculinas e apresentou-se pelo nome Julian. Foi também quando escreveu o primeiro esboço de Challenge, um romance inspirado na história de ambas que acompanha uma história de amor arrebatador de um casal heterossexual, Julian e Eve. Na versão publicada muitos anos mais tarde, o prefácio escrito em romani diz algo como: “Este livro é teu, minha bruxa. Lê-o e encontrarás a tua alma atormentada, mudada e liberta.” A história de Vita e Violet acabou com ambas a fugirem juntas para Calais, em França, onde Harold e Denys as foram buscar juntos.
A trívia com Sasha não é a única alusão à vida de Vita Sackville-West. Por exemplo, viajar foi tanto ou mais parte da vida de Vita como de Orlando, já que enquanto o marido trabalhou como embaixador, fez várias incursões pelo desconhecido. Mas há muitas diferenças carregadas de um simbolismo que só o tempo permitiu ver. Vita vestia-se com roupas masculinas em algumas ocasiões, mas mantinha uma aparência pública, de mãe e esposa, socialmente aceite; Orlando “muda de sexo subitamente”, depois de ter ido para Istambul trabalhar como embaixador e se ter casado com uma bailarina espanhola chamada Rosina Pepita. Vita não herda Knole; Orlando, pelo contrário, fica com a casa da família.
Ao ler Orlando, ou até as cartas entre Vita e Virginia, encontramos marcas do tempo através da linguagem. Os termos que usam não são os mais atuais no presente, mas, para lá da barreira da linguagem, fazem-nos refletir sobre a transversalidade de questões que estão hoje na ordem do dia, ao longo da história.
Independentemente da forma como o dizem, mostram que as relações sáficas e diferentes expressões de género existiam sem pudor na intimidade, mesmo com uma pressão pública normativa. Olhar para a intimidade de Vita e Virginia, um exercício que só é possível graças à publicação dos seus diários e correspondência, permite ver para além da superfície — todas estas questões são fluídas e têm algumas turbulências —, e mostra-nos como Orlando é a face pública de uma tensão pessoal.
Muitas vidas, a mesma essência
A relação de Virginia e Vita foi resistindo à passagem da História e às discórdias entre ambas na forma de pensar e viver. Um desses episódios foi a reação de Vita Sackville-West a “Three Guineas”, um ensaio feminista de Virginia Woolf, que lhe disse que tinha um “mas” para 50% das afirmações que ali estavam escritas. Embora tivessem muito que as unia, o olhar de cada uma para o mundo sempre foi diferente. E elas sabiam-no. Enquanto Virginia era intencional e progressista, Vita era contraditória e ambígua; a forma como se movia assentava nessa ideia de progresso, mas a postura social podia demonstrar o contrário.
Isso também se refletia na escrita. Vita Sackville-West escreveu muito, sobre muitas coisas diferentes — desde romances e poemas que remetiam para as suas próprias paixões e origens, até biografias de figuras históricas como Joana D’Arc, Santa Teresa D’Ávila e Teresa de Lisieux, Aphra Behn e até a sua avó Pepita. As mulheres estiveram sempre no centro das suas narrativas, ora como amantes literárias, ora como biografadas. Sempre com um fascínio pelo feminino, mas não necessariamente com uma perspetiva feminista
Vita não foi propriamente uma autora política, com leituras desafiantes sobre o tempo em que vivia, mas foi uma autora profícua que deixou uma obra vasta. A sua vida e a intimidade eram uma coisa, a produção de pensamento era outra. Talvez por isso tenha sido uma autora best-seller, e apelado a um grande espectro dos leitores, desde a Heinemann até à Hogarth Press (editora do casal Woolf), com muito poucos problemas no que diz respeito à venda de livros. No entanto, nem sempre Vita foi a escritora que queria ser. E parte da admiração por Woolf também viria daí: reconhecia-lhe uma capacidade de fazer diferente e de se adaptar a diferentes géneros literários mantendo a coerência das suas ideias. E a verdade é que o tempo mostrou que embora a aristocrata fosse uma autora muito bem aceite na época, foi a obra de Woolf que representou um marco na literatura.
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Os acontecimentos da vida foram ditando o seu caminho. Vita, que sempre desejou ser relembrada como poeta, acabaria por ser mais reconhecida pelo trabalho de jardinagem. Depois de ter de se despedir oficialmente de Knole, foi à procura de um lugar que pudesse ser realmente seu e acabou por comprar Sissinghurst, um castelo que estava em ruínas e que decidiu restaurar ela mesma, juntamente com o marido Harold Nicholson. Sissinghurst, também na zona de Kent, foi o refúgio que encontrou para resolver emocionalmente a perda da grande casa de família; e foi lá que desenvolveu esta grande paixão pela arquitetura paisagista — que até então estava presente como tema na sua literatura.
Em Sissinghurst começou a contar histórias a partir das plantas, num grande jardim com divisões que aludem a um determinado ambiente, e preservou um espaço só para escrever: a torre do castelo. Dizem que só podiam lá entrar Vita e os cães da família, mas que era um quarto realmente seu, onde guardava até os maiores segredos. Foi lá que, depois da sua morte, um dos dois filhos encontrou uma mala em pele que guardava as cartas trocadas entre Vita e as mulheres que amou, entre elas Woolf. Nigel Nicholson, esse filho, acabaria por se tornar o grande responsável pela divulgação deste lado menos público da mãe, mas também pela preservação do legado de Virginia. E, atualmente, Sissinghurst é um monumento aberto ao público e tudo se mantém como Vita deixou: inclusive as duas fotografias que manteve sempre na secretária — uma de Harold, outra de Virginia.
Mas enquanto em Knole, a casa que a viu nascer, Victoria — nome de batismo de Vita — foi uma entre várias personagens de uma história com muitos séculos, em Sissinghurst, a casa que a viu morrer, foi a personagem principal. Foi lá que viu despontar a II Guerra Mundial, que se permitiu a encontrar novos talentos, que educou os filhos, e que recebeu a notícia da morte de Virginia Woolf.
A última vez que Vita e Virginia se encontraram foi no dia 17 de fevereiro de 1941. Um mês depois, Virginia deixaria uma carta de despedida endereçada a Leonard Woolf, o seu marido, na casa que partilhavam, e acabaria por tirar a sua vida. A notícia chegou a Vita poucos dias depois e deixou-a devastada e com um sentimento de culpa por não ter estado mais presente. Vita ainda viveu por mais de vinte anos e, nesse período, escreveria a coluna In Your Garden, para o Observer, que a tornou reconhecida no campo da arquitectura paisagista. Afinal, Virginia sempre esteve certa: Vita não viveu por quatro séculos, mas permitiu-se ser várias versões de si mesma ao longo de 70 anos de vida.
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