Em 2020, um artigo científico demonstrava algo que, até à data, tinha pouca tração: que diferentes tipos de cancro têm microbiomas específicos, e que isso podia ser utilizado para identificar estas doenças. Mas o que é um microbioma? E porque é que isso importa?
O microbioma, em termos latos, é o conjunto de espécies de microrganismos (bactérias, fungos) característico de um determinado ecossistema. Neste caso, o ecossistema em questão era o cancro. Assim, por outras palavras, o estudo demonstrava que determinados micróbios singravam com maior facilidade em tipos específicos de cancro. Gregory D. Poore, Evguenia Kopylova e outros autores liderados por Rob Knight foram os responsáveis por descobrir esta curiosa preferência, mostrando ainda que era possível detetar vestígios – ADN – destes pequenos seres na corrente sanguínea de pessoas com cancro.
Em termos de potencial, esta descoberta podia revolucionar o diagnóstico de cancro, pois, com uma simples amostra de sangue, seria possível diagnosticar cancros em várias partes do corpo. A partir desse potencial, Gregory D. Poore, um dos investigadores, lançou a empresa Micronoma, através da qual conseguiu atrair milhões de dólares em financiamento e que o colocou na lista dos 30 under 30 da Forbes. A sua carreira estava lançada. Isto até um outro artigo científico, publicado agora em Outubro de 2023, ter deitado tudo por terra.
Para percebermos o que realmente se passou, temos de voltar a 2020, e compreender como foi encontrado, pela primeira vez, o microbioma do cancro e como se processa este tipo de investigação.
Um pouco de bioinformática
A bioinformática é a área que lida com a análise computacional de dados biológicos – isto é, que com recurso a computadores descodifica a informação naturalmente presente nos organismos.
Ao longo dos anos esta capacidade de produção de dados foi aumentando a olhos vistos. Para termos uma ideia, o ADN, composto por pequenas partes chamadas bases, quando sequenciado pode chegar a ocupar algumas dezenas ou até centenas de gigabytes – ao passo que o livro Guerra e Paz de Tolstoi, com mais de meio milhão de palavras, ocupa uns meros 3,4 megabytes. Para lidar com esta quantidade considerável de dados e informação, recorre-se a métodos computacionais, capazes de o fazer a uma velocidade aceitável para investigação e aplicações biomédicas.
Por exemplo, quando um genoma é sequenciado, este é partido em pequenos bocados a partir dos quais vários ficheiros correspondentes a pequenos pedaços de ADN são produzidos. Estes ficheiros são depois alinhados e, com base numa referência, programas bioinformáticos podem ler esse pedaço de ADN e declarar a sua posição mais provável no genoma humano. Com isto, e com o conhecimento da localização do genoma que codifica proteínas – apenas 1% do nosso ADN o faz –, pode determinar-se onde há mutações (ou seja, onde há uma base diferente daquela que era esperada com base na referência), que terão um maior ou menor impacto ou que estão associadas a cancro ou outras doenças.
A génese do microbioma do cancro
Estes passos são essenciais para sabermos que mutações estão associados a cancros específicos, como algumas mutações específicas nos genes BRCA1 e BRCA2, notoriamente associadas a cancro da mama. Contudo durante as investigações, detectou-se que há alguns pedaços do ADN que não são identificados como pertencentes a nenhuma parte da referência do genoma humano. Estes ‘pedaços’ podem advir de contaminações ou devido ao facto de estes programas bioinformáticos estarem programados para sinalizar as correspondências apenas quando têm uma alta taxa de certeza.
Foi neste contexto que Gregory D. Poore e os restantes autores no estudo original postularam que os pedaços de ADN de células cancerígenas sem um lugar na referência podiam pertencer a outros organismos – e permitir identificá-los. Testaram essa hipótese com um conjunto elevado de referências de microrganismos provenientes de enormes bases de dados (era improvável encontrarmos ADN extraviado de organismos maiores) e, encontradas correspondências, aí estava ele – o microbioma do cancro.
A diferença entre uma contaminação e este microbioma era que este último era relativamente constante. Por outras palavras, a correspondência entre estes pedaços de ADN e as referências de micróbios não se tratava de um mero acaso, sendo passível de ser detectada em diferentes momentos. E se esta descoberta por si só seria admirável, ainda havia mais – este microbioma seria específico para cada cancro e detetável na corrente sanguínea. Para finalizar, os autores mostravam que esta associação era previsível, abrindo portas para novas ferramentas de diagnóstico ou até terapias.
Contudo, voltemos às contaminações mais uma vez – e se não existirem só num sentido? E se houver ADN humano nas referências de micróbios? É possível que o desfecho se comece a tornar claro.
O fim do microbioma do cancro
Uma equipa de cientistas liderada por Steven L. Salzberg começou a considerar esta hipótese, em continuação de uma análise prévia levada a cabo por uma equipa liderada por Daniel S. Brewer. A premissa é de que sim, há pedaços de ADN que encontram um organismo provável nestas bases de dados de microrganismos, mas a nova questão é se isso não poderá consistir apenas em contaminação humana?
Metendo as mãos na massa, esta equipa descobriu algo crítico: enquanto que Poore e os seus co-autores encontraram mais de meio milhão de sequências “não-humanas” que pertenciam a Streptococcus (um grupo de bactérias), a análise mais cuidadosa do grupo de Salzberg revelou pouca mais de 30. E os 200 mil pedaços de Staphylococcus (outro grupo de bactérias) detectados no artigo original passaram para menos de 300.
O primeiro erro estava encontrado – ao assumirem que tudo o que era “não-humano” não pertencia a humanos mas sim a micro-organismos, e que as referências de microrganismos estariam livres de contaminação humana, o artigo original inflacionou grotescamente o número de espécies de microrganismos encontradas em amostras de cancro. Por outras palavras, criaram um microbioma onde ele nunca existiu.
Esta desfeita seria suficiente para deixarem de haver provas concretas a favor do microbioma do cancro. Contudo, o grupo de Salzberg observou algo mais, igualmente incomum: os microrganismos característicos de cada cancro existiam em números muito reduzidos, mesmo na publicação original; para alguns deles, existia tecnicamente entre 0 e 1 destes pequenos microrganismos. Além disso, alguns nunca foram reportados em humanos. Mas então, porque é que tudo isto aconteceu?
Para demonstrar que o microbioma do cancro podia prever o tipo de cancro, o grupo de Rob Knight usou algoritmos de aprendizagem automática (inteligência artificial). Neste caso, estes algoritmos determinam a melhor maneira de usar um conjunto de dados (o número de microrganismos de cada espécie) para prever um determinado aspeto relacionado com esses dados (o tipo de cancro).
Contudo, o método que usaram levava a que as amostras de cancro e amostras de doentes saudáveis tivessem valores diferentes mesmo que o número de microrganismos fosse idêntico; por outras palavras, criava uma espécie de batota ao etiquetar artificialmente amostras de cancro.
O grupo de Salzberg demonstrou isto com bastante clareza, mostrando ainda que, usando este método, era possível distinguir amostras saudáveis de cancerígenas, mesmo quando não havia nenhum microrganismo detetado. E apesar de não conseguirem determinar a razão para isto acontecer, conseguiram identificar o passo do algoritmo que o provocava – que quando removido, tornava impossível prever que tipo de cancro era a partir do microbioma.
O que resta do que foi?
Gregory D. Poore tentou refutar a publicação do grupo de Salzberg, mas sem sucesso – acabou por não provar que os problemas não estavam lá. Entretanto, o erro persiste, mas é importante enquadrá-lo naquilo que é a indústria de publicação científica. Os erros originais podem ter sido devido a uma sequência de erros, uma tempestade perfeita de desconsiderações, sendo difícil atribuir alguma malícia ao que se passou. Mas a verdade é que o artigo original foi publicado na prestigiada revista Nature – os alegados resultados assim o justificavam – e isto também pode ter constituído um incentivo adicional para que investigadores ignorem preocupações ou possíveis fontes de erro na análise. Afinal de contas, uma só publicação pode definir uma carreira.
Vários artigos posteriores foram, entretanto, escritos e desenvolvidos com base nos resultados originais, criando uma propagação destes erros e uma pequena comunidade pronta a defendê-los. Os autores negam que os resultados sejam inválidos, parte da equipa original publicou, em 2022, uma análise semelhante focando-se em fungos. E a empresa criada graças ao estudo original está agora a comercializar um teste baseado neste processo para detectar cancro pulmonar.
Na verdade, devemos considerar que pode continuar a existir um microbioma do cancro, mas ter em mente que deixou de haver provas sólidas que apontem nessa direção – e que, sem isso, análises consequentes e até mesmo produtos baseados neste misterioso microbioma deixam de ter um sustento concreto. O que nos leva até outra questão.
Apesar de só agora o trabalho da equipa de Salzberg ter mais atenção, o estudo foi originalmente disponibilizado em Agosto e gerou algum burburinho mediático; contudo, quase no mesmo dia em que foi finalmente publicado numa revista com revisão de pares, a equipa da Micronoma deu uma apresentação na World Conference of Lung Cancer sobre o novo produto, dividindo por completo as atenções.
Quando saímos fora da esfera académica e entramos no mundo empresarial, em que o segredo substitui a partilha de resultados enquanto condição necessária para a sua prática, é extremamente complicado compreender o futuro do microbioma do cancro: simplesmente não há provas. Há resistência em acreditar nas refutações porque o trabalho original serve de motor para financiamento e publicações académicas. Para além disso, há um interesse financeiro claro por detrás desta resistência (ou deliberada ignorância): se os resultados originais não forem verdadeiros deixa de haver substância para a existência da Micronoma, o que deita por terra os milhões até à data investidos.
Apesar de os contornos e circunstâncias serem diferentes, este é um caso que facilmente nos lembra o de Elizabeth Holmes, a empreendedora responsável por usar mentiras para garantir financiamento para o seu teste sanguíneo miraculoso e que, entretanto, foi condenada a 11 anos de prisão por fraude. O que a Micronoma vai fazer a seguir não é claro mas, na ausência de provas fortes quanto ao seu produto – que terão de edificar nas costas daquilo que é no mínimo um erro crasso – começam a percorrer um caminho sinuoso.