Paralelamente ao agravamento progressivo da situação epidemiológica da COVID-19 em Portugal, na Europa e no Mundo, observamos novamente declarações em conflito com os factos e evidência científica, com retórica de “fim de pandemia” veiculada em alguns meios.
A incredulidade é inevitável. Existiu coincidência temporal com mais um ponto de situação de Maria Kerkhoven, Technical Lead para a Covid-19 por parte da Organização Mundial de Saúde, em que relatava um agravamento da pandemia (sim, isso) na Região Europeia da OMS, com destaque para a zona mais oriental e em países com menor proporção de vacinação. Adicionalmente, a atual situação está perfeitamente enquadrada no Rapid Risk Assessment do European Centre for Disease Prevention and Control de 30-09-2021, que chamava a atenção para a diferenciação expectável entre países com maior e menor cobertura vacinal no impacto mas que sublinhava a necessidade de medidas não farmacológicas de forma transversal para diminuir probabilidades de sobrecarga dos sistemas de saúde.
Diga-se que há culpa da sociedade científica em ter deixado solto o termo “pandemia”. Existem artigos dedicados a essa imprecisão. Contudo, segundo os critérios de um dos artigos mais conhecidos no esforço de definição, a atual pandemia continua a cumprir a maioria dos critérios e é precoce estar com afirmações de finais. Seja por aquilo que está a ser atualmente observado, seja pela incerteza do aparecimento de variantes. A pandemia já devia ter vingado como lição de humildade permanente.
Adicionalmente, ouvimos termos como “vaga endémica”, o que é um potencial oxímoro dado que existem especialistas que negam perentoriamente a classificação de “endemia” perante o cenário atual, assim como não o fazem com o vírus influenza: são vírus que circulam de forma mais ou menos agressiva episodicamente, a nível mundial. Não são propriamente o melhor exemplo de doenças estáveis no seu comportamento e restritas no espaço e tempo, características mais típicas das endemias.
Segundo os critérios de um dos artigos mais conhecidos no esforço de definição, a atual pandemia continua a cumprir a maioria dos critérios e é precoce estar com afirmações de finais.
Se olharmos para a definição de endemia, podemos consultar um dos dicionários de Epidemiologia mais usados e encontrar, em tradução livre: “ocorrência constante (leia-se incidência) de doença, desordem, agente infecioso nocivo em área geográfica ou grupo populacional; pode-se também referir à prevalência crónica elevada de uma doença em área ou grupo populacional”. Ainda se pode caracterizar adicionalmente endemia como “holoendemia” (incidência associada aos grupos etários mais novos, com decréscimo ao longo das idades) ou “hiperendemia” (incidência elevada em todos os grupos etários).
Mesmo considerando a hipotética e duvidosa classificação de “endémica”, damos o exemplo da malária como doença endémica em muitas áreas e países, não deixando de ser uma doença mortífera e que não deve ser subestimada.
Vamos a outros factos. Optámos na Europa por estratégias de resposta à pandemia de COVID-19 com ênfase no controlo e não na eliminação da doença, o que poderá favorecer a médio-longo prazo a transição da pandemia para uma situação similar à circulação sazonal do vírus influenza. Para além de nos parecer tecnicamente inadequada a classificação de endemia, tendo em conta os fatos e a evidência atual, este termo não deve ser usado como algo desmobilizador de ação, sobretudo quando esta ação é proporcional e atempada para evitar disrupção social e dos cuidados de saúde. Seja como for, é expectável que o termo “endemia” continue a aparecer como descritivo de um ponto de equilíbrio e de menor impacto.
Adicionalmente, temos sinais preocupantes ao nível da resposta do Serviço Nacional de Saúde nas últimas semanas, e não devemos esgotar a análise na crescente ocupação de camas nos cuidados de internamento e nos cuidados intensivos, mas também lembrar a taxa de esforço dos profissionais de saúde ao longo dos últimos meses para cobrir a quebra de acesso verificado em 2020. Isto é mais evidente ao nível dos cuidados de saúde primários e da resposta da Saúde Pública face à desmobilização progressiva das equipas e à reafectação de profissionais. Alguns destes problemas são condicionados pelo desdobramento de profissionais em múltiplas tarefas e normas que devem ser ajustadas para que sejamos menos agressivos em isolamentos, parcialmente corrigidos em outubro. Esse ajuste já podia ter sido considerado em abordagem às escolas, mais em linha com uma estratégia test to stay.
Uma palavra tem que ser dada especificamente aos médicos de família. Estão sob pressão para recuperar atividade habitual e, se a estratégia é de controlo, se a ideia é de progressivamente passarmos para uma situação de interpretação do Sars-CoV-2 como apenas mais um vírus para ser vigiado dentro do leque das doenças respiratórias, todo o trabalho burocrático associado a doença tem de ser rapidamente reduzido ou realocado. Estes profissionais, juntamente com enfermeiros, assistentes técnicos e operacionais vão estar sob pressão adicional nos dois próximos meses à custa da tríade de trabalho “Trace Covid-19 – centros de vacinação – atendimento dedicado a doenças respiratórias”.
Em jeito de conclusão, a realidade não está alinhada com a narrativa precoce de “fim de pandemia” nem toda a máquina montada de resposta do terreno está dimensionada para uma interpretação menos controladora da dinâmica de doença. Podendo sempre melhorarmos processos e recursos, julgamos que a narrativa de fim de ciclo é extremamente prejudicial para a mobilização dos nossos cidadãos, a quem temos de agradecer o esforço e a quem ainda temos que pedir ajuda na vacinação, no autocuidado e na precaução sobretudo em espaços fechados. Uma vez mais, neste contexto, solicitamos a devida valorização da ventilação dos espaços com ferramentas à disposição como filtros ou mesmo caixas de Corsi-Rosenthal, que podem ser construídas.
Vale a pena olhar para o que foi dito e escrito no passado sobre testagem e lições adquiridas em 2020. Cometeram-se naturalmente erros mas, existindo muito por onde escolher, devemos tentar evitar ser repetitivos.
Devemos ser otimistas com cautela, mas baseados na realidade: isto (ainda) é uma pandemia.
*texto enviado ainda antes do conhecimento da nova variante Omicron