Tenho 28 anos, desloco-me numa cadeira de rodas desde os quatro e trabalhei na indústria musical nos últimos 10. Conto quatro paixões assolapadas mas duas criaram relações estáveis até aos dias de hoje: uma com Madonna e outra com Beyoncé. Porém, este texto é sobre muito mais do que isso. Espero que sirva para, a partir da minha experiência, dar uma percepção dos desafios impostos a um adolescente, um adulto, um espectador e um profissional da cultura com deficiência.
Rebobinemos até 1999. Tinha 6 anos quando os meus pais compraram o disco de Santamaria que marca o início desta história. Durante a escola primária, a minha família correu as festas num raio de 100 km para ver Santamaria. No final, ia cumprimentá-los e oferecia-lhes desenhos feitos por mim.
No 2º ciclo a paixão por Shakira fez-me esquecer Santamaria. Em 2005, Lisboa foi anfitriã de uma cerimónia de entrega de prémios de música internacionais onde Shakira marcou presença. Estava deslumbrado. Quando o meu pai foi comprar os nossos bilhetes, disseram-lhe que não tinham lugares para pessoas com mobilidade condicionada – por isso, decidiu que não me podia levar, não era seguro. E, assim, vivi o meu primeiro episódio de discriminação.
O Decreto-Lei n.º163/2006, que estabelece condições de acessibilidade a eventos e salas de espectáculos, é do ano seguinte ao evento retratado, tal como a Lei n.º 46/2006, que “proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência”. Duas questões tornam-se desde logo imperativas: como é possível que Portugal tenha legislado estas questões apenas em 2006? E como é possível que, em 2021, ainda se assista a tantos casos flagrantes de discriminação?
Crescer, e ganhar consciência da gestão destas áreas, levou-me a defender algo que pode ser feito já: criar sistemas de bilheteira que incluam, na compra do bilhete de pessoa com deficiência, o seu assistente pessoal/acompanhante. Não uso a expressão cuidador, não preciso que cuidem de mim. Preciso de assistência. E explico porquê.
Voltando à minha adolescência, em 2007 comecei a ir a mais concertos. Em Março tive uma cirurgia adiada por uma greve. O médico perguntou-me se podíamos reagendar para a última semana desse mês. Disse-lhe que não, ia ver Shakira a 4 de Abril. Se fosse operado na semana anterior faltava ao concerto. O médico riu-se, chegámos a mútuo acordo para a semana depois do espectáculo. Fiz-lhe a ressalva que precisava de recuperar até 24 de Maio, para a estreia de Beyoncé em Portugal. E assim foi, voltei a sentar-me na cadeira nesse dia para entrar no, então, Pavilhão Atlântico.
Foram concertos felizes. Tinha 14 anos, ia com o meu pai e amigos, mas foi também a partir daí que comecei a aperceber-me do tratamento diferenciado entre pessoas com e sem deficiência. Chamavam-nos à atenção para o facto das áreas só permitirem um acompanhante. O meu pai explicava que éramos menores e não podia separar-nos. Mais tarde, deixei de ser acompanhado por mais de uma pessoa. Hoje compreendo a necessidade de limitar entradas em zonas de mobilidade condicionada: não será uma mudança imediata (ainda que necessária), até porque temos um longo caminho a percorrer.
Crescer, e ganhar consciência da gestão destas áreas, levou-me a defender algo que pode ser feito já: criar sistemas de bilheteira que incluam, na compra do bilhete de pessoa com deficiência, o seu assistente pessoal/acompanhante. Não uso a expressão cuidador, não preciso que cuidem de mim. Preciso de assistência. E explico porquê.
Não tenho força para empurrar a minha cadeira em longas distâncias; várias salas/eventos falham em infra-estruturas; não tenho força para abrir as portas de várias casas de banho em salas de espectáculo (consigo ir à casa de banho sozinho, outras pessoas precisam desse apoio); e preciso de segurança: a minha doença acarreta riscos junto de multidões, quem me conhece tem reflexos apurados para me proteger.
A solução não passa pelos promotores ou salas assegurarem a assistência pessoal das pessoas com deficiência. Ninguém devia ser exposto a ter de pedir ajuda a um desconhecido para tomar medicação, ligar um ventilador ou ir à casa de banho. As organizações não dão esse apoio ao público sem deficiência, asseguram-lhe as condições básicas e de dignidade humana para o usufruto dos espectáculos mediante a compra de bilhetes individuais.
Garantir a entrada de assistente pessoal/acompanhante é tão importante como disponibilizar casas de banho, ter áreas reservadas e não cobrar entrada a um cão-guia. Se isto são dados adquiridos, falta-nos assegurar que pessoas com deficiência não são obrigadas a comprar 2 bilhetes em vez de 1. Se a outra pessoa vai assistir? Sim. Mas ninguém dará a mesma assistência à pessoa com deficiência que o seu acompanhante. Vão existir tentativas de fraude? Provavelmente. Mas acredito que o sector criará um sistema eficaz no serviço tanto do público como dos promotores.
Olhemos para exemplos de sucesso: a The O2 Arena, a Roundhouse, os festivais de Glastonbury ou Reading – todos implementam o sistema. Reading teve um incremento de vendas de 111% com esta solução; Glastonbury soma mais de 1000 festivaleiros com deficiência/Surdos. Não é só o Reino Unido que se posiciona assim: na Austrália, a Sydney Opera House; na Suíça, o Montreux Jazz Festival; na Dinamarca, o Rosklide Festival; na Alemanha, o Hurricane Festival. Por que esperamos nós?
Os dados estatísticos sobre afluência em eventos musicais são escassos, em alguns vejo 3 pessoas com deficiência, noutros vejo 30: acredito que estas diferenças resultam das condições de acesso oferecidas e do cartaz.
Em Portugal já há indícios de mudança – o Boom Festival, o Bons Sons e o TBA fazem um trabalho notável; assim como o Sporting e o Benfica, no futebol. E sim, também temos números: o Teatro Nacional D. Maria II, no último trimestre de 2020, em sessões com Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição, acolheu em média 30 pessoas por sessão. O São Luiz, na temporada 2019-2020, promoveu 50 sessões acessíveis com 400 espectadores com deficiência e Surdos. Isto demonstra que o público existe e quer participar na cultura, desde que as condições básicas sejam asseguradas.
Os dados estatísticos sobre afluência em eventos musicais são escassos, em alguns vejo 3 pessoas com deficiência, noutros vejo 30: acredito que estas diferenças resultam das condições de acesso oferecidas e do cartaz.
Nunca me esquecerei da noite em que vi um rapaz ser transportado, por mais de 200 metros, suspenso no ar por 4 pessoas. O terreno era arenoso e a cadeira não deslizava. Tal como não esquecerei as pessoas revoltadas com o atendimento por parte do staff. Em 2019, um homem de baixa estatura, contava-me, num festival, que lhe tinha sido negado acesso ao estacionamento prioritário, o que fez com que estacionasse a 3 km da entrada. Depois, como não tinha cadeira de rodas, colocaram-lhe entraves para entrar na plataforma de mobilidade condicionada. O resultado de exemplos como este? Um público altamente frustrado que não regressa aos eventos.
Persisto na defesa desta causa e recuso-me a deixar de participar na cultura porque as condições físicas e sociais me impõem obstáculos. Tal como me recuso a deixar de participar na vida comunitária. Acredito que as minhas outras paixões assolapadas têm sido combustível nesta persistência.
Já escrevi que em 2007 assisti à estreia de Beyoncé em Portugal. Foi também o ano em que Madonna entrou na minha vida para transformá-la. Tinham-me oferecido um DVD do Super Homem que troquei pelo da Confessions Tour. A partir daí, vi-me desafiado a pensar sobre questões sociais, sexuais e religiosas. Na inquietação espoletada por Madonna, entendi a importância da cultura na sociedade. Tanto Madonna como Beyoncé, têm, desde então, moldado a minha experiência.
Em 2012, num concerto de Madonna, quis ir à loja de merchandising – acessível apenas via escadas. O meu pai ia descê-las comigo. A polícia parou-nos. Instalou-se uma discussão, com a polícia a argumentar que a organização não se responsabilizava pelos riscos de segurança e que a comunicação social estava no recinto, o que daria “muito má imagem”. Respondi que assumia os riscos sobre mim próprio. Disseram-me que, se insistisse, expulsar-nos-iam do estádio.
Em 2015 vi Madonna na O2 Arena, em Londres. Foi no rescaldo de anos em que era a minha irmã a acompanhar-me, que ia para dar-me assistência. Era eu que comprava os dois bilhetes. Na O2 Arena, o bilhete da pessoa com deficiência inclui o acompanhante, sem custos acrescidos. Em 2018, no Stade de France, em Paris, tive outro episódio feliz: ver o concerto de Beyoncé com mais de uma pessoa. A área estava preparada para acolher até 3 acompanhantes. Nessa noite, a sensação de equidade foi grande: pude dançar com o meu melhor amigo e irmã, sem sermos separados.
Foi nesta janela temporal que comecei a trabalhar a tempo inteiro, de 2015 a 2020, em comunicação estratégica e assessoria de imprensa no sector musical. Descobri uma nova indústria, oposta à conhecida até então como espectador. Esta oposição deve-se a um único fenómeno: as pessoas. A equipa que integrei sempre me incluiu e nunca me discriminou.
Temos profissionais irrepreensíveis a vencer obstáculos. Faltam-nos instituições, políticas e empresas, capazes de responder estruturalmente. Isto cria uma realidade paradoxal. Nenhuma sala em que trabalhei reúne condições para desempenhar as minhas funções de forma autónoma. Chegámos, em algumas, a concessões. Por exemplo, na sala “X”, uma mesa fora da bilheteira para distribuir convites porque a porta não tem dimensões para eu entrar. Noutras salas não há concessão possível. Vejo-me vedado de poder exercer o meu trabalho na plenitude das minhas capacidades. A igualdade de oportunidades, neste aspecto, é inexistente.
Hoje dedico-me a projectos de inovação social e acredito estarmos num momento decisivo para a mudança. Nesta jornada, ganhei consciência da força do associativismo. A Acesso Cultura, a Terra Amarela e o Centro de Vida independente são reflexos disso. Institucionalmente foram criadas iniciativas, como a Valor T, e politicamente vimos, nos últimos anos, chegarem à Assembleia da República os primeiros deputados com deficiência, a par com o trabalho da Secretaria de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência. Portugal tem 1 792 719 de pessoas com algum tipo de incapacidade (Censos 2011). Urge reflectir sobre este número.
Em 2017, nas jornadas sobre participação cultural da Acesso Cultura perguntou-se “O que dificulta a implementação de soluções que promovam o acesso?”. Após os recursos financeiros, a resposta mais comum foi “a falta de conhecimento e formação na área e a ausência de recursos humanos capacitados”.
É fundamental reconhecer que Portugal tem um grave problema de literacia para a inclusão de pessoas com deficiência. Coloco-o à luz do sector cultural mas é transversal à sociedade. Olhemos para um exemplo.
A legislação e o licenciamento de espectáculos implicam a criação de lotações. Em sala, as zonas de mobilidade condicionada estão delimitadas (mesmo que muitas vezes o número de bilhetes disponíveis seja inferior ao requerido por lei). Em eventos ao ar livre, cria-se uma única tipologia de bilhete, gerindo-se o número de pessoas na área designada no dia dos eventos. É um erro não estabelecer lotações, resulta em zonas sobrelotadas e repete-se anualmente.
Fruto deste caos, em 2016, num festival, os voluntários estavam a pedir aos acompanhantes que saíssem. O que, ao abrigo do Decreto-Lei n.º163/2006, é ilegal. Parei um deles e alertei-o para o facto de o público, fora daquela zona, estar a assistir aos concertos em grupo mas estar-me a ser vedada a partilha daquele momento. Respondeu-me: “o senhor tem sorte por ter uma zona onde assistir aos concertos”.
É fundamental reconhecer que Portugal tem um grave problema de literacia para a inclusão de pessoas com deficiência. Coloco-o à luz do sector cultural mas é transversal à sociedade. Olhemos para um exemplo.
Acredito ser um exemplo gritante da falta de literacia. Paralelamente, a sociedade alimenta atitudes de paternalismo. Tinha 19 anos quando me perguntaram se daria uma entrevista sobre “o bom trabalho a ser feito pelas pessoas com deficiência em festivais”. Disse, inocentemente, que sim com uma condição: abordaria o que devia ser melhorado. A entrevista foi editada e nenhuma crítica chegou à emissão televisiva.
Estes são alguns episódios pessoais, outros concretizaram-se com outras pessoas. É tempo de combater a iliteracia e o paternalismo. Precisamos de responsabilizar-nos individualmente sem continuar à espera “do outro” para tomar uma posição.
Existe legislação mas fica, demasiadas vezes, por cumprir. Ainda mais vezes, fica por fiscalizar. Acredito que o Estado devia fiscalizar e legislar mais. De forma clara e abrangente. Devia fixar a necessidade da entrada sem custos de assistentes pessoais/acompanhantes e conferir, paralelamente, algum apoio aos promotores como, por exemplo, uma isenção de IVA nestes bilhetes. Não acontece.
O facto de o Estado não ter um papel mais activo não pode ser desculpa para a inacção. Todos os anos melhoramos a oferta ao público em geral: casas de banho, variedade na restauração, condições de campismo, pontos de carga para telemóveis e podia continuar a enumerar iniciativas. Tomamos estas posições para cativar e servir quem nos compra bilhetes, independentemente do que é requerido em lei. As pessoas com deficiência também compram bilhetes.
E se reforçarmos a nossa responsabilidade cívica? E se os promotores, salas e artistas tomarem uma posição? Forem precursores, para o sector e para a sociedade, na inclusão das pessoas com deficiência? Não será esse, em última instância, o objectivo da cultura? A arte tem essa missão: lembrar-nos do propósito da humanidade. De incluir em vez de excluir. Dar liberdade em vez de reprimir.
Deixo um desafio a todos os meus pares: seguirmos juntos. Mais conscientes da necessidade de mudança. Mais humildes no reconhecimento das desigualdades. Mais criativos e disponíveis para transformar a oferta e acolher a pluralidade do nosso público.
Tiago Fortuna e o Shifter agradecem ao Teatro Nacional D. Maria II pela cedência do espaço para fotografias.