19h15: Entro na sala de espera. Sou recebido com um caloroso “Please wait, the meeting host will let you in soon” estampado na janela do computador. A sessão estava marcada para as 19h20. Disseram-me para comparecer na sala cinco minutos antes do começo e assim o fiz. Ao longo do dia as minhas mãos e pés frios foram-se humedecendo numa uma fina camada de suor pegajoso que ameaçava gear a qualquer instante; a minha perna direita recusava ficar quieta, prendia-se num cima-baixo constante; o meu estômago implodia lentamente sobre o vácuo de si mesmo — estava borradinho de medo, metaforicamente falando.
O meu corpo implora-me que saia dali, que desligue o computador, vá dar uma volta, ouvir música, folhear um livro, fumar um cigarro na varanda (eu nem sequer fumo, que raio!). Em vez disso, ligo a câmara do computador. Tenho o cabelo algo frouxo, nada que uma sacudidela não resolva. De resto, estou tão bem como poderei estar numa situação destas. As quimeras químicas do organismo não se desnudam na minha cara, vantagens de usar óculos, parece-me.
Começo a questionar seriamente se foi inteligente ter aceite a proposta. Quando o João Ribeiro, meu editor, partilhou a ideia comigo, a mera menção da “História do Olho” bastou para que me atirasse de cabeça nisto, qualquer desculpa para escrever algo sobre o opus de George Bataille servia-me. Agora aqui estou eu, a corroer os nervos de incerteza. O que me espera? Que diabos vai ela fazer comigo? Tenho de lhe falar… Mas que raio é suposto eu dizer, se nem cinco minutos de conversa consigo manter no Tinder? Terei de ligar a câmara? Eu não quero ligar a câmara. “Então porque raio te foste pentear, ó bacoco?”, sussurra-me ao cérebro o chefe do meu departamento interno de lógica. Estou num estado bonito, estou. Olhei para o relógio, e…
19h20: Na janela, vejo uma figura feminina exposta para a câmara, exposta para mim. Lingerie arrojada, um semi-corpete e roupão de cetim, dedos finos deslizam e acariciam a palidez artificial do peito e pescoço. Este corpo não tem cara. Uma máscara branca de manequim, um par de óculos largos e uma peruca de longos cabelos negros — a feição humana é abafada, o corpo faz por se revelar.
Começa a sessão.
Janaina Leite encontra-se entre as figuras mais reconhecidas e consagradas do teatro autobiográfico brasileiro. Com um conjunto de obras e publicações lançadas ao longo da última meia década, Janaina formou uma estrutura dialética que choca a performance dramatúrgica com a vida real, em particular, usando como lentes o erótico, o trangressivo e o pornográfico.
A sua duologia Feminino Abjeto contrastou a noção do abjeto e violento no contexto coletivo feminino e masculino; Conversas com meu Pai é um documentário cénico que num reencontro entre pai e filha resulta uma larga analogia para o ato de criação vital e artístico; Stabat Mater — um título que alude à observação impotente e sofrida de Maria enquanto Jesus está na cruz — oferece uma tripla colisão frontal entre o terror, o materno e o explícito sexual. O seu mais recente projeto intitula-se Ensaios Escopofílicos para uma História do Olho, um largo comentário performativo e virtual que se elabora a partir de um diálogo direto com o conto homónimo de George Bataille, filósofo francês do século passado que muito discursou sobre as naturezas comuns da morte e do erótico. “Ensaios Escopofílicos para uma História do Olho é um guarda-chuva mais amplo, um projeto que flirta com a pornografia e com aquilo que ela pode contar sobre o teatro, porque a pornografia é também uma arte cénica, que lida com questões da performance e do real. Projeta esses ensaios num sentido laboratorial, experimental, que se questionam sobre o erotismo e o olhar”, disse-me Janaina numa entrevista feita por e-mail.
A primeira parte deste projeto executa-se na peça Camming, realizada em “território nacional” através do Teatro Viriato. Em Camming, o palco são as salas virtuais Zoom que se tornaram o escritório e espaço de convívio de muitos durante o período pandémico. “No isolamento, sejam casais ou pessoas que vivam sozinhas, essa possibilidade do que são essas interações na virtualidade, que passaram a ser o nosso único canal de relacionamento pessoal, profissional, sexual… A pandemia deu uma dimensão para a virtualidade que antes não existia. Tudo a gente passa a fazer virtualmente: trabalho, uma sessão de terapia, uma aula de sei-lá-o-quê, uma consulta.”
Antes de a pandemia começar, o interesse pela sexo virtual já tinha tomado conta de Janaina, consequência do trabalho que antes tinha feito, mas foi já numa fase pandémica que esse interesse começou a tomar contornos artísticos. “A ideia surgiu a partir dum encontro com a camgirl Anita Saltiel (Pixie/Nittie), que aconteceu nos bastidores do Stabat Mater. Depois disso, fui a um workshop onde ela dava um minicurso precisamente sobre como ser uma camgirl, e depois durante a pandemia ela fez comigo um processo de coaching, e aí se deu a ideia de experimentar essas plataformas.” E foi o que Janaina fez. Durante um total de 101 noites, a artista aventurou-se por um site de camming e encarnou por completo o papel de camgirl, algo que fez de forma totalmente autónoma. “Depois dessa experiência [com Anita], eu me fechei completamente, segui essa jornada no site, incluindo não querer conversar com outras camgirls, justamente para não me influenciar demais, para encontrar uma maneira própria.” Como qualquer outro projeto de Janaina, este foi um de auto-descoberta.
Após este processo, Janaina recorreu à ajuda de nove trabalhadores sexuais, tanto cisgénero como transgénero, mulheres e não-binárias, para, juntamente com a ajuda de alguns dos seus colaboradores habituais, como a cineasta Lillah Halla e a dramaturga Lara Duarte, conceber o novo-algo que queria transmitir ao mundo.
O resultado da experiência: uma peça de duas partes separadas por dois dias, nas quais Janaina aborda por duas frentes o erotismo virtual. Na primeira fá-lo por contacto direto e simulado, na segunda recorre a técnicas mais clássicas e narrativas, sem descurar as nuances que o enquadramento online traz. 1×1 e 101 Noites, respectivamente.
O 1×1 oferece, como o título indica, um encontro virtual um-para-um entre o espectador e a performer, em sessões de 20 a 25 minutos nos quais o espectador interage, fala, flirta, e “comanda” uma camgirl do outro lado do ecrã – a própria Janaina.
No topo de uma pequena mesa ao lado da sua secretária abundam todo o tipo de brinquedos sexuais; algures entre chicotes de couro e os dildos de todos os tamanhos, parece existir, certamente, algo para todos os gostos. Atrás dela, um longo varão de strip. O resto, em volta, uma casa como qualquer outra, mobília acolchoada ou de madeira desproporcionalmente distribuída pelo espaço, largas janelas com vista topográfica para a cidade, uma gata que ora repousa aqui ora repousa ali, mirando de soslaio na nossa direção a prazos irregulares.
Começa um vídeo. Chega-me aos ouvidos a voz de um homem, distorcida por névoas de estática, enuncia uma série de desejos e fantasias sadomasoquistas. Na imagem, a mulher apresenta o varão de strip que se ergue atrás de si, e faz uma listagem dos brinquedos sexuais que tem a seu lado, chicotes de couro, dildos de todos os formatos e tamanhos, algo para todos os gostos.
Pára o vídeo.
Subitamente, na janela de chat:
“Oi. Tudo bem?”
Respiro fundo… E respondo.
A interação começa rígida e assim decorre por um tempo, um quebra-gelo que para mim não está a funcionar de todo (ainda tenho as mãos frias). Tento ao máximo não parecer desconfortável, o que só deve contribuir para o facto. A certo momento, pergunta-me se não vou ligar a câmara. Hesito em responder, não sei o que fazer, quero saltar pela janela. Ligo a câmara. Ela aponta-me algo quanto à minha aparência, eu respondo timidamente querendo despachar o assunto, mas esqueço-me imediatamente do que escrevo quando leio:
“Que queres que eu faça?”
O que quero que ela faça?! Lembro-me que isto é uma peça de teatro. Antes de vir para aqui, assumi que houvesse um guião, algo estruturado, algo que não me colocasse no papel de decisor. Se já tinha ficado embasbacado ao ligar a câmara, agora sinto o meu cérebro às rodas no meu crânio, sacudindo todos os neurónios em busca de uma resposta. Não a encontro, portanto retorno-lhe a pergunta:
“Que queres tu fazer?”
Como água sugada pela terra seca, o tom suave e misterioso que imaginei perde-se na brevidade do texto.
Após alguma aparente deliberação, ela coloca uma música e dirige-se para o varão. Enquanto a vejo dançar, surge-me a questão: que faria ela se eu simplesmente me atrevesse a pedir?
“Às vezes iniciava assim que a pessoa entrava na sala, ou a própria pessoa propunha uma interação e eu correspondia. Ou então começava com um material mais estranho, com um documento qualquer da pesquisa, e depois construía a relação assim”, responde Janaina à flexibilidade da peça. Para ela, essa potencial tensão só contribuía para a imersão da experiência. “Foi muito bom para mim, porque… Logo de caras que surgiram no início — você foi uma delas — eu senti uma disponibilidade, um estranhamento positivo… Duas pessoas que não se conhecem estão abrindo a câmara, em lados opostos do oceano, e eu senti de forma muito potente essa possibilidade de conexão. Senti-me uma camgirl, foi uma experiência muito mais próxima daquilo que senti no site de camming do que numa cena teatral.”
A dança termina. A figura retorna para diante do ecrã, começa a teclar algo. Diz que me vai mostrar um vídeo, que serve bem para dar um exemplo das possibilidades do espetáculo e, principalmente, para aclimatizar o espectador ao leque de escolhas que dispõe.
Diante dos meus olhos desdobra-se uma montagem hipervisual de imagens que ameaça baralhar-me as peças da cabeça. Segmentos de dança e exibicionismo com quantidades variáveis de nudez, intercalados por momentos mais… digamos, privados. Erros de gravação, outtakes, momentos onde algo parece não correr bem, um atabalhoamento de roupas ou poses, tudo misturado por uma torrente ruidosa de glitches visuais, virtualizando todo o momento num espaço liminal entre o sonho e pesadelo.
Termina o vídeo, a mulher despede-se, acabou-se o tempo. Nem dei pela sua passagem. Despeço-me também, consigo-o sem hesitações ou tropeções de dedos.
Há uma diferença significativa entre uma sessão real de camming e uma do 1×1: a duração. Enquanto chamadas com clientes se estendem durante largos minutos e, por vezes, horas, neste projeto nunca ultrapassam o marco da meia-hora. Para a dramaturga, esta incongruência não foi impeditiva. “Sinto que seria necessário mais tempo para se estabelecer um contacto mais profundo com as pessoas e deixar o jogo se transformar, para deixar a pessoa propor os seus desejos e limites para que se possa construir ‘o que for’, ali naquele encontro. Mas senti que isso foi bem possível.”
Embora dela retire uma apreciação positiva, a fase inicial da experiência deixou Janaina trepidante. “Eu fiz uma primeira versão do 1×1 que no Brasil foi bem mais estranha para mim porque aqui as pessoas me conhecem mais, então talvez eu estivesse mais autovigilante por conta disso. Mas a experiência em Portugal foi muito boa para mim.” A revelação e conhecimento mútuos são essenciais à obra, tanto para o seu sucesso como para a satisfação pessoal de Janaina. “Se a pessoa for conhecida, a conversa é mais fingida, mais artificial. Mas com desconhecidos, a experiência foi muito divertida.”
Deixo-me parado a olhar para o ecrã. Se me perguntarem como me sinto, é como se me tivessem puxado o tapete dos pés de rompante e tivesse os meus órgãos virados do avesso. Houve uma transformação no interior da minha fronteira consciente e sinto-me abalado. Deixo-me sentado diante do ecrã, ainda não fechei a janela do Zoom, agora vazia de movimento.
Antes desta experiência, a questão que me tomava a consciência era perceptibilidade da linha que separa a camgirl da atriz, o quão imersiva seria a experiência ao ponto de deixar de reconhecer o todo como um teatro, pura encenação ou improvisação que decorreria tanto em resposta como independentemente da minha presença retangular, difusa e pixelada. O que nunca considerei, foi o nevoeiro que se brotaria em mim e no meu próprio papel, a minha própria função, a minha própria identidade. Transcendi as minhas fronteiras, houve um momento indefinido onde saí da audiência e subi ao palco do ecrã. Tornei-me um ator para aquela atriz, tornei-me um cliente para a camgirl.
Acredito piamente que não me reconheceria num espelho se lá me visse.
Tapo bruscamente a lente da câmara. Desligo o computador.
A segunda parte do projeto Camming é 101 Noites, uma peça dramatúrgica que aponta num registo oposto ao de 1×1. “É meio uma palestra-performance, ela é um registo, é um relato, uma organização de materiais que compõem uma pesquisa… É também um work-in-progress, não se propõe como uma obra final… É meio uma composição ali de pastas, tem um pouco a dinâmica dos chats, e eu dei muito esse ênfase às palavras.”
101 Noites não é de todo uma antítese de 1×1, mas sim um complemento dialético formalístico, mais classicamente teatral. São duas peças que poderiam existir por elas mesmas mas cuja junção reforça a mensagem; separá-las seria como tentar transformar uma moeda em duas de uma só face cada.
Abro a sala Zoom. Desta vez não há nenhum tipo de espera. Assim que entro, deparo-me com um mural de caras de todas as formas, feitios e idades. Uma rapariga de cabelo curto e de cara pequena apoiada na mão, um homem de t-shirt laranja larga a comer o que me parece um hambúrguer do McDonald’s (o seu microfone é o único que parece estar ligado, ouvi-o mastigar e falar com alguém fora de imagem), um senhor com idade para ser meu avô, rodeado por estantes transbordando livros. O convite da sessão incentivava a audiência a ligar a câmara. Certifico-me que tenho o microfone desligado (confere), e ligo a minha também.
A peça divide-se em três principais componentes.
A primeira é uma representação puramente visual e textual da experiência de um chatroom numa plataforma de camming, na qual vemos o malabarismo conversacional que uma camgirl precisa de dominar se quiser atrair e manter clientes por longos períodos de tempo.
Surge a figura do dia anterior, a mulher da máscara e da peruca. Dela não ouvimos nada, não vemos nada escrito. Inicia-se um vídeo. Uma gravação de uma conversa de chat, uma camgirl e um cliente. Uma troca subtil e óbvia de provocações e inquisições que dura uns bons minutos. A certo ponto entram outros clientes na sala, cada um com o seu traço de conversa, as suas perguntas, ideias, curiosidades. Desvio a atenção do vídeo. Os olhos do público estão focados nos ecrãs; se estão atentos ao vídeo ou, como eu, a pairar os olhos pelas variadíssimas caras e nomes que ali coabitam, não sei ao certo.
A segunda componente prende-se exatamente com os truques e saberes do meio. A certo ponto na peça, vemos uma gravação vídeo de Janaina durante a sua preparação pré-camming, feita com o auxílio da já referida camgirl profissional, Anita Saltiel. O seu auxílio provou ser imprescindível. “A Anita é muito jovem mas com uma experiência muito ampla neste mercado, isto porque as experiências por vezes são curtas. A pessoa fica três meses ou menos, a sustentação não é nada fácil. Têm de se alimentar constantemente um circuito de relações, de clientes e produtos que você disponibiliza, tem de haver uma constância, e tem de se lidar psicologicamente e socialmente com as consequências… Não são tantas que conseguem durar. É interessante, a Anita é muito jovem e tem uma consciência enorme desses espaços. Ela transita em vários meios da pornografia, ela foi uma figura muito querida, muito especial nesse processo.”
Termina o vídeo. No lugar da mulher de máscara e peruca, surge agora uma outra figura. Uma mulher de caracóis ruivos, tonalidades pálidas, postura firme mas descontraída, leviana, um sorriso que traduz numa calorosa distribuição coletiva de “boas vindas”. Esta é Janaina Leite, e vai contar-nos uma história.
A terceira e última componente é a que mais se relaciona com o título da peça, uma referência óbvia à clássica obra 1001 Noites. Todas as noites, uma mulher conta uma história ao seu marido, um rei violento e invejoso que mandara matar todas as suas mulheres na manhã a seguir ao casamento, tudo por um medo irracional duma possível traição amorosa, com o fim de evitar a sua própria execução. O análogo que Janaina estabelece com a sua peça faz-se óbvio: “A referência ao 1001 Noites tem mesmo essa dimensão narrativa literária: tentar captar o espetador não pelo jogo erótico, não pela relação, mas por essa narrativa que vai trazendo ele para esse universo.”
O elemento erótico desapareceu por completo desta peça, deparamo-nos somente com o seu plano narrativo e temporal. A subjetividade pessoal da noite anterior foi substituída pela subjetividade do outro. Aventuramo-nos pela cabeça de uma camgirl, pelas suas inseguranças, prazeres e dissabores, embalados suavemente pela voz de Janaina, sempre assertiva, sempre gentil, livre de preconceito, julgamento ou arrependimento.
Na obra de Janaina há um claro foco na liberação sexual. O prognóstico não era favorável, no entanto. “Eu não sabia o que ia encontrar lá. Eu tinha um primeiro medo que era esse de encontrar uma coisa muito estereotipada, muito violenta, muito objetificante, onde tivesse de reproduzir algo que me agredisse de alguma maneira. Tinha realmente medo do que poderia encontrar.” O processo acabou por surpreendê-la pela positiva. “Eu tive muita sorte desde o primeiro dia, acho que foi um somatório de coisas porque, sim, tem de tudo ali dentro: experiências desagradáveis, pessoas grosseiras, enfim… Mas posso dizer que a maior parte dos encontros caminharam para um ponto muito rico e fértil, tanto pessoalmente como eroticamente.”
Para Janaina, o espaço de camming acabou por se revelar como um de verdadeira honestidade, livre de inibições, tanto a nível do líbido como simplesmente inter-relacional. “Desde conhecer fantasias que nunca imaginei até coisas muito simples como uma pessoa que quer conversar com você, ouvir uma música com você, que quer compartilhar um segredo, construir uma relação amorosa com você, projetar a possibilidade dum encontro fora do site. Então é um lugar que me revelou muito desde o primeiro dia.” Há um episódio em particular que a marcou. “Uma vez fiquei quase quatro horas online com uma pessoa só, era já de madrugada e eu acordei de manhã ainda com a sensação daquela conversa que passou por tantos caminhos e por tantos lugares”, recorda, nostálgica. “Foi mesmo o mergulho nessa honestidade que ali o anonimato permite. O contrato implícito de estar buscando alguma coisa, a pessoa quer isso de verdade, até mesmo o jogo, a máscara, a performance, pode ser uma que ela não possa exercer noutro lugar mas só ali. Tem muitas máscaras que são ali colocadas e retiradas, é uma riqueza.”
A peça termina numa intercalação entre a simulação do chat e a narrativa de Janaina. Na última noite da camgirl no site, um cliente decide ouvir uma música com ela. Só isso, nada mais. Ouvimo-la todos, três minutos que transcendem a peça e unem cada cara da audiência num momento de intimidade à distância, uma verdadeira união. Pessoas que não se conhecem de lado algum, partilhando um momento que se sente, que tem todo o peso do mundo.
Termina a música.
Termina a chamada.
Termina a peça.
“Essa estrutura do Zoom que tem sido a nossa vida, com ela comecei a entender todas as dramaturgias que a gente tem no espaço doméstico, no telefone, a câmara aberta, a câmara fechada, ver as pessoas, não ver, há micro-dramaturgias que estes dispositivos vão revelando,” diz Janaina sobre o espaço virtual como um de convívio e compartilha moderna. Sabia ela que poderia haver uma maior atenção nas caras da audiência do que na própria peça? “Tinha ideia disso quando comecei a conceber o 101 Noites. Sabia que tinha uma estrutura narrativa e que, de algum jeito, essa mediação da tela estaria posta. É um trabalho feito para a virtualidade, não há tradução para a presença física. O final sinto que é bem simbólico disso, a gente encerra bruscamente a sessão Zoom como é encerrada uma sessão de chat numa dessas plataformas, terminando aquilo você não vai ter mais nenhum acesso à outra pessoa, não tem um acesso telefónico, não tem um rosto, não tem uma voz.”
No contexto virtual, a presença sexual do outro faz-se sobretudo pelo olhar, estando fora de questão o toque. A relação com a História do Olho de George Bataille começa a estabelecer-se.
Para quem não conhece o conto, aqui fica uma breve descrição: um rapaz e uma rapariga adolescentes de famílias burguesas, o narrador anónimo e Simone, desenvolvem uma relação amorosa expressa somente através de atos sexuais de crescente efervescência. A relação inicia-se sem contacto físico, manifestando-se à distância, de forma puramente masturbatória. Com o decorrer da narrativa, os atos sexuais do casal vão se aprimorando num refinamento grotesco que não só desencadeia a destruição física e psíquica de ambos, mas sobretudo dos que os rodeiam. Para exemplificar bem isto, há uma passagem no início do livro que descreve na perfeição o tipo de amor que sentem um pelo outro, um que assombra o resto do conto que a sucede:
“Lembro-me de um dia em que passeávamos de carro, a alta velocidade. Atropelei uma ciclista jovem e bela, cujo pescoço quase foi arrancado pelas rodas. Contemplámos a morta por um bom tempo. O horror e o desespero que exalavam daquelas carnes, em parte repugnantes, em parte delicadas, recordam o sentimento dos nossos primeiros encontros.”
Janaina é uma admiradora confessa da obra, brotando nela uma inspiração reverencial para fazer algo a partir dos seus alicerces. “A primeira vez que li esse livro foi em 2016, senti que ia fazer alguma coisa com isso mas não sabia o quê. Isso foi vindo quando essa relação com a pornografia foi ficando evidente, onde essa História do Olho virou a ‘História do Olhar’, e tinha ideia dessa partida, dessa fábula obscena, desse conto de fadas pornogótico do Bataille para ter uma cama fabular e ficcional, e atritá-la com a questão do sexo explícito com trabalhadores sexuais.” Porém, uma obra como a de Bataille é tudo menos simples de adaptar, algo que Janaina considera um positivo. “Nunca foi um trabalho de atores, mas sim sempre algo relacionado com a pornografia, porque Bataille vive na dimensão inorgânica da literatura e esta pode tudo porque está ali com as palavras. Mas como é isso no teatro, como envolve o corpo, a performance, quais são as possibilidades que ele planta ali entre o cósmico e o absolutamente vulgar, como é isso no teatro? Tinha vontade de experimentar esse risco, esse espanto que o Bataille promove.”
Além de Camming, existe também o Núcleo do Olho, algo que não foi tentado com um público português. “O Núcleo do Olho, que estou dirigindo desde outubro do ano passado, são 30 pessoas com origens muito diferentes mas estão todos muito interessados sobre questões da sexualidade e pornografia. Vários são trabalhadores sexuais, e estão se jogando assim numa experiência híbrida do audiovisual pornográfico. Tem sido muito legal, a gente fez as experiências dos porno shows que têm sido incríveis porque a plateia é convidada, está numa festa pornográfica com a gente, dividida também com a dramaturgia do Zoom, a gente separa a plateia em salas, e cada uma dessas salas tem um armário pornográfico baseado no capítulo do Armário”, episódio da História do Olho onde um grupo de adolescentes, que inclui os dois protagonistas, realiza uma orgia que se divide entre um quarto fechado e um armário nele contido. “A gente pode ir pelos vários armários e ter várias experiências pornográficas por lá, e a plateia é muito impressionante. Cada vez mais se tem lançado num jogo de exibicionismo, voyeurismo, para além do que a gente imaginava, por vezes muito explícito. Tem sido interessante.”
E o que se segue para Janaina? “O espetáculo que pretendo é uma livre adaptação/diálogo com a História do Olho e com trabalhadores sexuais.” Esta é uma produção ainda sem nome, inicialmente uma curta que transitou numa produção teatral, na qual Janaina procura juntar um número razoável de performers (“para aí sete pessoas em cena”), que se reunirão num casarão isolado, de forma a replicar os ambientes boémios do conto, para preparar o espetáculo com tempo. Mas a dramaturga tem noção dos vários impedimentos que a situação pandémica lhe impõe, em particular em território brasileiro. “No Brasil está muito complicado, o ritmo de vacinação é muito lento, a gente não tem a menor ideia de como vai ser à volta do teatro e, sobretudo, a volta de que teatro, dadas as questões de pornografia, de corpo, as cenas e temas que Bataille traz, como vai ser isso na presença… Mas o meu objetivo continua sendo esse,” diz num tom esperançoso. “Se tudo correr bem, irá ser isso, mas não sei…”
Esperemos que sim.
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