Foi aprovada na passada quinta-feira (22 de outubro), na Polónia, uma lei que criminaliza o aborto por malformação do feto. Depois de 119 deputados, na maioria do PiS (Law and Justice), partido do atual presidente Andzrej Duda, terem apresentado uma moção no Tribunal Constitucional em dezembro do ano passado, torna-se agora impossível optar por uma interrupção voluntária da gravidez, excepto em casos de violação ou incesto, ou risco para a mãe ou o feto. As ruas de Varsóvia têm sido ocupadas todos os dias por manifestantes, e os protestos têm-se multiplicado por todo o Mundo. Esta semana chegam a Portugal, primeiro em Lisboa (hoje às 18h00, na Praça da Figueira), depois no Porto (quinta-feira às 18h00, na Avenida dos Aliados) e em Coimbra (no dia 1 de novembro às 17h00, na Praça da República).
A decisão tomada no Tribunal Constitucional e a reação de Andrzej Duda foi imediata. Pelas palavras de Blazej Spychalski, o seu porta-voz, numa entrevista com a Agência de Notícias Polaca, ouviu-se que pretendia “manifestar a satisfação com a decisão do tribunal de ficar do lado da vida”. Enquanto as ruas das principais cidades polacas estão cobertas de faixas vermelhas e pretas, as cores da Strajk Kobiet, a associação feminista que tem estado na linha da frente pela legalização do aborto e por quem Marta Lempart tem dado a cara, e com milhares de pessoas em protesto, o governo continua com um discurso em que conceitos como “valores de família” ou “patriotismo” estão no centro.
Durante o dia de ontem, 27 de outubro, Jaroslaw Kaczynski, líder do PiS (Law and Justice), deu um discurso, partilhado na página de Facebook do partido, que deixou claro o modus operandi do governo neste momento. “Não podia haver outra regulamentação tendo em conta a Constituição… Temos de nos lembrar que estamos completamente no direito no que toca a questões legais (…) Não podemos mudar esta decisão segundo a Constituição atual”, disse no discurso. Apelou ainda para que os polacos defendessem “a Polónia e o patriotismo”, bem como a igreja.
De acordo com o New York Times, no ano passado 1.074 abortos, de um total de 1.100, feitos na Polónia deveram-se a razões relacionadas com má formação do feto — que, com esta lei, se torna ilegal. Ula Białas (23 anos), que nos escreve a partir de Varsóvia, mostra-se incrédula com as decisões que têm sido tomadas e partilha que é “assustador que no século XXI algumas pessoas ainda queiram que uma mulher seja a típica dona de casa que só dá à luz”. É nesta linha que refere o político Krzysztof Bosak, cuja posição pró-vida é pública, como alguém “extremamente tradicionalista, que acha que a maior ambição de uma mulher deve ser criar os seus filhos e tomar conta do seu marido”.
Jestem prolife: Każda matka powinna być otoczona troską i wsparciem lokalnej wspólnoty. Każde dziecko nienarodzone zasługuje na ochronę prawną. Każde niechciane dziecko może zostać oddane pod opiekę państwu. Śmierć dziecka jest usprawiedliwiona tylko po to aby ratować życie matki pic.twitter.com/5gSP2XQ3fE
— Krzysztof Bosak 🇵🇱 (@krzysztofbosak) April 15, 2020
Os protestos em torno da ilegalização do aborto têm mostrado que este assunto diz respeito a todxs, e que interessa a diferentes gerações — o que vai contra a ideia generalizada de que as gerações mais velhas são as mais conservadoras e seguem ideais semelhantes aos do partido governante. O contexto familiar de Ula também é uma prova: “este tópico é muito controverso, mas grande parte das mulheres concorda em querer ter opção de escolha. Por exemplo, a minha mãe é muito conservadora, e grande parte das vezes temos pontos de vista diferentes, mas neste caso concordamos. Queremos ter escolha”.
Kasia Galak, polaca a viver há cerca de dois anos em Portugal, sente os protestos a acontecer no seu país Natal como se lá estivesse, também, nas ruas. “Aqui sentimo-nos, provavelmente como todas as mulheres em protesto na Polónia, chateadas e desapontadas – novamente. Estamos a tornar-nos novamente num cartão de troca no jogo político do partido governante na Polónia, que é incompetente para lidar com os problemas atuais relacionados com a Covid (falta de preparação, falta de ajuda com, como foi hoje o caso, 14.000 casos por dia) e dispara o tópico do aborto – o mais polarizado na Polónia – para cobrir os reais problemas a acontecer no nosso país”, partilha.
“Estão a introduzir possíveis mudanças a longo prazo com severas consequências para as mulheres, sem qualquer tipo de debate público ou consenso. Estamos cansadas de lutar por isto, de lutar pelos nossos direitos básicos. Estamos cansadas, chateadas, mas determinadas. Estamos a dizer ‘já chega’ ”, afirma Kasia.
Quatro anos de uma luta que não foi vencida pelo cansaço
No começo de outubro de 2016, milhares de mulheres polacas juntaram-se numa greve que acabou por ser apelidada de “Segunda-feira Negra”, marchando em cerca de 140 cidades polacas. Inspiradas pela greve que ocorreu na Islândia a 24 de outubro de 1975, mulheres de diferentes gerações caminharam vestidas de negro, de braços dados, num gesto de profunda sororidade. Na altura, o protesto pró-escolha contagiou outras cidades europeias como Berlim, Bruxelas, Dusseldorf, Belfast, Londres e Paris — como recordamos neste artigo da BBC. Na altura, propôs-se que as mulheres que abortassem e os médicos que compactuassem deviam ser punidos, e era contra isso que este grupo marchava.
Também hoje, 28 de outubro, algumas empresas incentivaram trabalhadores e trabalhadoras a juntar-se aos protestos na rua e a não trabalhar, como nos conta uma fonte em Varsóvia. As ruas estão cheias de pessoas de diferentes géneros e crenças, com diferentes motivações, mas que se opõem às decisões tomadas no Tribunal Constitucional. Há mulheres, homens e pessoas não-binárias, unidxs com o objetivo comum de exigir a demissão de um governo que lhes nega os direitos. Juntxs na rua estão também taxistas e agricultores, que marcham junto às mulheres que reivindicam o direito à escolha.
Kaja Kwaśniewska (28 anos), vive em Varsóvia e tem acompanhado os protestos, com o seu corpo presente a marchar enquanto fotografa. “Os protestos que têm acontecido por toda a Polónia desde quinta-feira são como um grito final de uma nação que não aguenta mais. Nos últimos 5 anos este governo violou todas as áreas do país – educação, saúde, judicial, media e ambiente. E as pessoas têm tornado vocal a sua preocupação, esta não é a primeira vez que se juntam nas ruas para gritar. Mas tinha de haver um assunto em que nos uníamos contra o PiS e os Direitos das Mulheres são algo tão óbvio no século XXI, que finalmente conseguiram unir a sociedade para começar a revolução”, conta ao Shifter.
Enquanto mulher “no fim dos seus 20”, Kaja olhou para a decisão do Tribunal Constitucional “como se alguém tomasse uma decisão por todo o seu futuro”. Conta que “neste caso” terá “demasiado medo de alguma vez planear uma gravidez na Polónia”. “A ideia de ser tratada como uma incubadora que tem de carregar uma gravidez até ao fim, que dará à luz um organismo que morrerá imediatamente devido à falta de um órgão é demais para o meu psicológico. Só consigo imaginar como os médicos serão ameaçados com prisão por qualquer tipo de ajuda à mulher, e como os exames pré-natais não serão mais relevantes”, desabafa a jovem polaca de 28 anos.
De 2016 até agora, pouco mudou, e a permanência do PiS no governo, após Andrzej Duda ter vencido as eleições em julho deste ano, reforçou o contexto já existente, como de resto nas questões LGBT+. Ula Białas recorda que por a lei do aborto ser “tão restrita”, “as mulheres Polacas procuravam ajuda em países vizinhos como a República Checa”. “Isto só vai causar um aumento de tratamentos ilegais que normalmente encaminham para problemas de saúde ou mesmo a morte”, relembra. No dia em que a lei foi aprovada, também a Amnistia Internacional relembrava: “restringir o aborto não acaba com o aborto, só o torna menos seguro”.
De acordo com uma sondagem publicada esta semana, apenas 13% dos polacos apoia a decisão do Tribunal Constitucional de banir quase por completo o aborto, enquanto 73% se opõem; e por muito que o canal público (TVP) passe mensagens em horário nobre que dizem que a “extrema-esquerda está a arruinar a Polónia” e que condenam os protestos, 54% das pessoas inquiridas concorda com os mesmos. Ainda na mesma sondagem, 62% das pessoas responderam que o aborto devia ser legal em alguns casos, 22% acreditam que devia ser possível até à 12ª semana de gravidez e apenas 11% acredita que deve ser completamente banido.
A proibição total do aborto tem sido defendida por vozes como Kaja Godek, responsável pela Fundação Vida e Família, que reagiu à decisão da semana passada dizendo que “hoje a Polónia é um exemplo para a Europa, é um exemplo para o Mundo”. Já em abril deste ano, quando a pandemia chegava em força à Europa, Godek integrava um debate em torno da lei do aborto, no Parlamento Polaco — já que foi a mesma que apresentou a proposta de banir os abortos eugénicos, depois de ter conseguido recolher 830.000 assinaturas.
Para Kasia, a teia que envolve o contexto político polaco não é fácil de desfazer, mas rapidamente se explica: “estamos a falar de introduzir isto [a lei anti-aborto] num país onde existe um grande problema com pedofilia nas instituições religiosas (mais um tópico ignorado pela classe dominante), com praticamente zero educação sexual, com um patriarcado e misoginia extrema (onde, por exemplo, violar a mulher é visto como algo ‘impossível) e com muito pouco acesso a contraceptivos, que não são subsidiados pelo sistema nacional de saúde”. É importante recordar também que em 2015 o governo do PiS decretou que a pílula do dia seguinte só pode ser comprada após prescrição médica, estando agora disponível nas farmácias disponível para pessoas a partir dos 15 anos.
É por isto que, para si, o cenário atual era mais ou menos expectável. “Nós só esperávamos que nunca acontecesse, porque era demasiado inimaginável”. No mesmo sentido, Ula diz que não consegue “imaginar como é que alguém pensa que é apropriado e bom para a sociedade [proibir o aborto]”.
“Conta a alguém” : a esperança de que os gritos não sejam mais mudos
As comparações com Handmaid’s Tale, obra de Margaret Atwood, que resultou numa série televisiva e que se centra no conservadorismo católico e na ausência de liberdade por parte das mulheres, são inevitáveis — tal como aconteceu já noutros contextos em que o discurso “pró-vida” e conservador está no centro. Foi com essa referência que Terry Reintke, deputada dos Verdes no Parlamento Europeu, se manifestou junto a outras deputadas, a exigir que a União Europeia reaja a esta “violação de direitos fundamentais”.
Entre outras coisas, referiu o Estado de Direito e a importância que este podia (ou devia) ter na garantia de direitos humanos em Estados Membros — tal como Rémy Bonny tinha mencionado aquando da reportagem “Um grito mudo: a luta LGBTQI+ na Polónia por igualdade e direitos humanos”. Num apelo a que a União Europeia e os seus Estados Membros tomem uma posição, Kasia diz: “nós precisamos de apoio, precisamos de vozes de todo o lado para contar a nossa história. O que está a acontecer connosco, está a acontecer em 2020 no centro da Europa. Com um governo como este, é possível que venha a acontecer em qualquer lado. Este governo também foi eleito democraticamente, por parte da nação. E vejam onde estamos – outras partes da sociedade são completamente ignoradas.”
“Uma das hashtags do movimento é #powiedzkomuś, que significa #contaaalguém. Precisamos que os outros estejam cientes do que estamos a passar, precisamos de vozes que nos defendam, precisamos que se encaminhe os políticos do PiS para a Justiça pelas suas práticas de propaganda, pelas suas incompetências. Eles são culpados das pessoas deixarem a Polónia por não se sentirem seguras lá. Eles são culpados por todos nós não querermos voltar e viver felizes – inclusive eu”, partilha Kasia.
Kaja, responsável pelos registos visuais que acompanham este artigo, tem usado a sua câmera fotográfica para registar o que se passa na Polónia desde o PiS ascendeu ao poder, em 2015. Começou a fotografar “todos os tipos de protesto” quando ainda era estudante, por “sentir a necessidade de documentar a atmosfera estranha do país”. “Ao longo dos anos a realidade envolvente tornou-se ainda mais estranha e havia inúmeras ocasiões para sair e fotografar – de Marchas do Orgulho à Earth Strike, até à National Banana Eating, que foi um happening em frente ao Museu Nacional em defesa da liberdade de expressão. É a minha forma de reagir – sou melhor a fotografar do que a gritar slogans. Ao mesmo tempo, quero olhar para trás daqui a 20 anos e ver como observei os momentos mais decisivos no meu país. Se tudo correr bem, nessa altura a vida na Polónia será mais pacífica, e nem um único direito humano será violado”, diz ao Shifter.
Polacas pelo Mundo unem-se para que a sua voz se ouça mais alto — já hoje, em Lisboa
O grupo Strajk Kobiet, que tem sido responsável pela mobilização nos últimos dias e garante não desistir, partilhou ontem uma lista de medidas pretende ver implementadas — que vão do acesso a métodos contraceptivos à educação sexual — e propôs-se a criar uma Comissão de Transição, à semelhança do que aconteceu na Bielorrússia.
Traduzido: “Nós queremos todos os direitos para as mulheres”
Kaja Kwaśniewska, que conversou com o Shifter antes de ir, mais uma vez, juntar-se aos protestos que não tem sido pacíficos, não quis deixar de mencionar que “as líderes da Strajk Kobiet são mulheres incrivelmente fortes e sem medos, que se estão a tornar uma inspiração para raparigas por todo o país”. “Ainda que a situação atual possa ser a maior crise que enfrentamos desde o fim do comunismo, olhar para a solidariedade de diferentes grupos sociais – de estudantes, séniores, agricultores, artistas, até adeptos de futebol, tenho muita esperança de que possamos ganhar esta luta por direitos fundamentais”, reforça. Já Ula partilha que está “maravilhada e muito tocada por ver que estão a ser ouvidas e apoiadas noutros países” e, como Kaja, acredita que vão “ganhar esta luta”.
É para expandir esse espírito de união que Kasia Galak está a organizar, juntamente com outras mulheres polacas, a manifestação de hoje na Praça da Figueira, em Lisboa. Ao longo dos últimos dias têm partilhado mensagens e cartazes no evento do Facebook, apelando sempre a que quem se juntar vá numa base de amor — para lutar, mesmo que à distância, com ferramentas que em tudo se distanciam das do governo. Kasia deixa um apelo também aos portugueses e cidadãos de toda a Europa: “nós precisamos de vocês; os direitos das mulheres são direitos humanos e se estes foram violados em algum lado, podem ser violados em qualquer lado. Por favor ajudem-nos”.
Na Polónia, os protestos continuam mais um dia, por todo o país, com a esperança certeza de que as coisas vão mudar. Pelos Direitos das Mulheres, pelos Direitos Humanos.
Um grito mudo: a luta LGBTQI+ na Polónia por igualdade e direitos humanos
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