Última Hora é uma produção Dona Maria II, em parceria artística com o Teatro Experimental do Porto, estrutura dirigida por Gonçalo Amorim que encena este espetáculo escrito por Rui Cardoso Martins. A peça retrata os últimos momentos de um jornal em declínio, e as tentativas infrutíferas de boa e má-fé, para o tentar salvar.
Rui Cardoso Martins, escritor de romances, crónicas, guiões para cinema, televisão e teatro, verteu para esta peça o conhecimento dos meandros do mundo do jornalismo que obteve desde que esteve ligado à fundação do Público como repórter. A sua experiência como jornalista forneceu-lhe inspiração para pontuar a sua história com experiências vividas na primeira pessoa com nomes incontornáveis da indústria, que vão sendo retratados com de forma velada, preservando assim a sua anonimidade.
O elenco é encabeçado por Maria Rueff, que Rui Cardoso Martins recorda ter conhecido com 19 como “menina dos Telexes” do Público, e por Miguel Guilherme, que antes do começo da pandemia realizou um profundo trabalho de pesquisa acompanhando um mês de trabalho da redação do mesmo jornal, acrescentando outra camada de realismo ao espetáculo.
Este retrato tão real acaba ainda exacerbado pelos pontos de contacto que a situação dos jornais tem com a situação cultural, nomeadamente do Teatro. A precariedade dos seus trabalhadores-actores que, desencantados com a possibilidade de mudança, deixam de acreditar no seu papel (nota para a fina ironia de colocar os estagiários da casa a fazer de estagiários do jornal), a concorrência com meios mais disponíveis para o consumidor como a televisão e a Internet, a noção cada vez mais presente de que estes bens deveriam ser gratuitos com a proliferação da pirataria de conteúdos e as notícias grátis na Internet. Tudo isto leva a duas áreas estruturais da sociedade que dependem de um público alheado que diz compreender a elevada importância das mesmas, mas não lhes atribui uma utilidade que mereça o seu rendimento. Este comportamento com a organização actual leva a uma insuficiência de fundos que geram um desespero na procura de capital, tirando o foco do propósito maior que servem para a saúde da democracia e exercício da liberdade, virando todas as atenções para uma luta da atenção momentânea que cria valor monetário, que destrói também as pontes intergeracionais dentro das instituições e as faz definhar a longo prazo.
Apesar dos nomes conterem acenos a protagonistas reais do mundo jornalístico português, e até o cenário indiciar que estamos a assistir a uma recriação da queda do Diário de Notícias, não é para o contexto específico que os criadores querem chamar a atenção da audiência. O espaço familiar do Última Hora é apenas um veículo para despertar a consciência do público para os mecanismos de degeneração deste pilar da democracia. Uma fábula moderna sobre a importância e instabilidade do jornalismo no mundo contemporâneo.
No meio deste realismo trágico de um espetáculo que recria uma realidade de crise já de si rocambolesca, todos os exageros soam demasiado familiares para se soltarem ruidosas gargalhadas. Mas não há dúvida de que se está perante uma comédia, uma comédia negra que causará algum desconforto necessário para se passar ao passo seguinte, e fazer dum riso nervoso um sorriso de desafio na esperança de um futuro melhor.
O espetáculo Última Hora estará em cena de 8 de Outubro a 15 de Novembro na Sala Garrett do Teatro Dona Maria II em Lisboa. No passado dia 10, foi também apresentado o livro homónimo que deu origem à peça, editado pela Tinta-da-China,
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