No separador “Natureza e Biodiversidade” do website da Comissão Europeia, a resposta à questão “Porque precisamos de proteger a Biodiversidade?” é introduzida com uma citação do Prof. E.O. Wilson: “Nós precisamos das formigas para sobreviver, elas não precisam de nós”. O texto continua, descrevendo como ecossistemas saudáveis permitem purificar a água que bebemos e o ar que respiramos, manter o clima e providenciar-nos alimento e matérias-primas para quase tudo o que construímos. “O nosso capital natural”.
A defesa de causas que parecem opor-se a um progresso cego e voraz da Humanidade é geralmente tida como um propósito nobre e altruísta. A preocupação com a diversidade e o bem-estar animal, com o impacto ambiental das ações humanas e com as consequências das mesmas para a manutenção do estado de frágil homeostasia da Biosfera é hoje vista como uma necessidade urgente e como uma responsabilidade individual e coletiva.
Descortinando, contudo, as razões que motivam a súbita emergência deste assunto no panorama político, corporativo e mesmo na generalidade da convivência social, surge a observação de que estas iniciativas não passam de novas formas de alimentar interesses próprios. Atualmente, o posicionamento de uma empresa ou partido político como possuidor de princípios que se alinham com perspetivas de sustentabilidade e mínimos impactos ambientais não deixa de ser, em última instância, um golpe de marketing ou propaganda. Mesmo descurando os múltiplos casos de greenwashing (promoção de uma empresa, governo ou organização através da falsa associação a causas ecológicas e ambientais, não sendo na verdade adotadas medidas reais com vista à minimização ou resolução destes problemas), o olhar público tenderá sempre a aprovar instituições que destaquem o seu papel como aliados na luta contra a devastação dos ecossistemas.
Um maior escrutínio do que origina o destaque que as causas mencionadas têm vindo a merecer revela um interessante traço humano que merecerá reflexão. Por mais altruístas que soem os princípios da defesa do equilíbrio ambiental e biodiversidade, dado que parecem contrariar a incessante cobiça da Humanidade pelo progresso, não deixam de possuir como motivação primária a sustentabilidade da nossa espécie. “Não podemos querer aumentar a todo o custo a nossa qualidade de vida porque a consequência é a cessação da nossa própria vida” – a capa de altruísmo cai sob a revelação de que no núcleo da nossa ação está o derradeiro interesse próprio, a sobrevivência. De volta ao primeiro parágrafo, note-se como o valor da biodiversidade é descrito pela forma como a nossa existência beneficia da mesma. Não será por acaso que apelidamos o que nos rodeia de recursos naturais, dado que avaliamos a periferia da Humanidade segundo uma hierarquia elaborada pelo valor que podemos retirar de cada elemento dela.
Dito isto, a defesa de causas ecológicas infeta-se frequentemente de princípios de absoluto antropocentrismo, constituindo ações guiadas pela crença na supremacia da espécie humana e na sua excepcionalidade e importância como entidade no Universo que conhecemos. Esta perspetiva motiva e justifica que não se olhem a meios quando o fim é o progresso da qualidade de vida da Humanidade, implicando o desprezo pelas consequências que possam advir a outras formas de vida cujo valor não se traduza, à partida, numa vantagem para nós. Assumindo tal ponto de vista, salvar a Amazónia e impedir a extinção das abelhas torna-se imprescindível, dado que não possuímos ainda tecnologia que substitua as suas funções; evitar a subida do nível de água dos oceanos é pertinente pois a mesma conduziria à submersão de cidades que constituem pontos-chave na economia de certos países. No reverso da adoção deste raciocínio está o desprezo por causas que não afetarão diretamente o nosso modo de vida: a preocupação com o tratamento ético dos animais, por exemplo, não encaixa nessa lista de prioridades, dado que podemos continuar a usá-los como recursos mesmo se este facto implica o seu sofrimento. Não interessaria a forma como a galinha é morta: o frango sabe ao mesmo. Aliás, condições menos dignas para estes animais implicam menos custos e maior eficiência a transformar matéria-prima (afinal, é “capital natural”) em produto final.
Esta valorização de tudo o que existe segundo a importância que representa para a nossa sustentabilidade e progresso é o lema mais consistente da Humanidade. É importante, porém, referir que a sua origem é instintiva e que guiar a nossa conduta segundo interesses próprios – nomeadamente a sobrevivência e manutenção da espécie – é algo comum a todos os seres-vivos. Qualquer animal matará para comer e é frio e cego o instinto que leva machos a lutarem até à morte, fêmeas a abandonarem as crias mais fracas, parasitas a ocupar hospedeiros e bactérias a infetar fatalmente outros seres. A Natureza é voraz e ávida na sua tentativa de sustentar uma linhagem; assim, cada espécie poderia ser descrita como interesseira e arrivista, agindo sob um instinto autocentrado e sem remorsos perante os danos causados a outrem.
Mas será esta uma justificação suficiente para que foquemos a ação da Humanidade somente em objetivos que servem os propósitos de progresso exclusivo da nossa espécie?
Acrescente-se a esta reflexão mais uma perspetiva. Num dos primeiros websites que surgem quando as palavras-chave da pesquisa são Hierarchy of Species (hierarquia das espécies), a posição privilegiada dos Homens em relação a todas as outras espécies é justificada começando por enumerar o que apelidam de “crenças amplamente defendidas”:
- os humanos são, de uma perspetiva evolucional, mais avançados que outras criaturas;
- os humanos possuem capacidades superiores e classificam-se mais alto de acordo com inúmeras métricas de inteligência;
- os humanos possuem maior potencial para o sucesso e desenvolvimento que outras espécies;
- os humanos possuem um conceito de moral que é único e outros seres-vivos não se regem segundo códigos morais.
De um ponto de vista objetivo, e mesmo tendo em conta o viés a que somos sujeitos dado avaliarmos a nossa espécie segundo critérios que nós próprios desenvolvemos, o leitor concordará provavelmente com as afirmações referidas acima (o que não implica considerar as mesmas premissas válidas para a conclusão da supremacia humana, note-se). Então, e se reconhecemos que o Homem evoluiu para merecer um local de destaque no panorama natural, reitero a questão: porque não adotar como guia da conduta da Humanidade somente aquilo que nos traz vantagens, classificando como demeritórias todas as causas que não nos beneficiam, mas sim a outras espécies?
A resposta que formulei para mim mesma baseia-se na falácia lógica criada exatamente por concordar com os dois pontos que referi acima. Eis as duas premissas que se contradizem: dita o nosso instinto que uma espécie tentará prosperar desconsiderando todas as restantes formas de vida (focando-se apenas na sua sobrevivência); os humanos podem prosperar desconsiderando todas as restantes formas de vida por serem uma espécie superior, dado que conseguem agir não seguindo cegamente nenhum instinto. A ganância, cobiça, arrivismo: se somos superiores, estes tornam-se defeitos que adotámos de forma consciente e não uma reflexão de algo codificado no nosso código genético. Em terra de cegos, um ciclope deve assumir o papel de ditador megalómano e déspota? A nossa vantagem evolutiva pode valorizar-nos, mas isso não implica (e, de facto, deslegitima) a desvalorização das restantes formas de vida.
Note-se que o biocentrismo (que se opõe à filosofia antropocêntrica, atribuindo um valor inerente a todas as formas de vida) pode rapidamente escalar a um ponto que parece radical e contraproducente. Se cada decisão humana tiver de considerar de um ponto de vista absolutamente objetivo os danos potenciais que causa a cada ser-vivo existente, a lógica ditaria que se extinguisse a raça humana, dado que a nossa sobrevivência implica maior consumo de recursos naturais que, por exemplo, uma ovelha. Porém, a responsabilidade exigida pela nossa condição de “seres racionais” não deveria pedir que se adotem pontos de vista prejudiciais à nossa espécie, mas sim que os nossos esforços de progresso minimizem as consequências que provêm do mesmo para outras formas de vida.
Assim, esta perspetiva inclui o foco ecológico que o antropocentrismo gera (motivado por interesse próprio), mas alarga o leque de assuntos que merecem a nossa atenção, passando a justificar esforços de progresso tecnológico que reduzam a necessidade de causar mal-estar alheio. O recurso a animais para cumprir propósitos da espécie humana fará sentido apenas enquanto não possuirmos nenhuma outra opção e torna-se moralmente necessário fazer esforços no sentido de conjurar e desenvolver estas alternativas. A Ciência deve, segundo esta premissa, procurar soluções para um horizonte onde toda a Humanidade pode alimentar-se sem recurso a animais, por exemplo. Enquanto tal não for alcançável, esforços podem ser feitos no sentido de tornar a pecuária mais sustentável, envolvendo melhores condições de vida e mortes menos aflitivas e dolorosas. De igual modo, entretenimento com base em exploração animal deixa de ser justificado, dado que alternativas válidas já existem com o mesmo propósito e sem recurso a outras espécies.
Se parte do que nos torna excepcionais é a capacidade de formular um código de ética e valores, então devemos fazê-lo de uma forma responsável perante outras formas cientes de vida. O altruísmo esclarecido de uma espécie em relação a todas as restantes é algo que apenas nós, humanos, temos a capacidade de expressar. Talvez devêssemos, então, adotá-lo entre os pontos de foco da Humanidade, ostentando este facto como mais um dos aspetos que nos tornam “especiais”.
Texto de Maria Teresa Parreira