Reclaim Her Name: a fina linha entre a justiça e a (im)precisão histórica

Reclaim Her Name: a fina linha entre a justiça e a (im)precisão histórica

19 Agosto, 2020 /

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As lacunas na coleção Reclaim Her Name, que põe lado a lado autoras que escreveram, umas por opção e outras por obrigação, sob pseudónimos masculinos têm que ver, sobretudo, com a superficialidade na análise do contexto.

“Ao longo da História, muitas mulheres escritoras usaram pseudónimos masculinos para que o seu trabalho fosse publicado ou levado a sério”. Assim se introduz Reclaim Her Name, uma coleção organizada pela Women’s Prize for Fiction, patrocinada pela Bailey’s, que “pela primeira vez escreveu os nomes reais [das suas autoras] em frente do seu trabalho para honrar as suas conquistas e dar-lhes o crédito que merecem”.

A coleção, disponível gratuitamente para download no site da Bailey’s,  surge em jeito de celebração, para comemorar os 25 anos do prémio que todos os anos distingue mulheres escritoras na ficção, no Reino Unido, e num primeiro momento — ou à superfície — foi recebida com algum entusiasmo. Reclaim Her Name reúne 25 autoras, uma por cada ano do Women’s Prize for Fiction, e cada número se apresenta com uma capa ilustrada, com o nome da escritora mais acentuado do que o nome do romance.

George Eliot, Vernon Lee, Sui Sin Far e Shahein Farahani passam, nesta coleção, a Mary Ann Evans, Violet Paget, Edith Maude Eaton e Fatemeh Farahani. Os pseudónimos caem para reclamar “justiça”, e é aí que começam a surgir dúvidas quanto à bem intencionada tomada de posição. “Será que George Eliot, cujo Middlemarch é integrado aqui, precisa mesmo de ser “reclamado” enquanto Mary Ann Evans?”, questiona Catherine Taylor num artigo que assina no TLS, “The Story of a New Name”.

Uma questão de contexto

Incluir Eliot num grupo de “mulheres forçadas a usar um pseudónimo masculino” vai ao encontro da breve descrição da Wikipédia que encontramos ao pesquisar o seu nome no Google (“usava um pseudónimo masculino para que os seus trabalhos fossem levados a sério”) mas a questão não se fica por aqui. O aprofundamento dos motivos que a levaram a fazê-lo não começa agora — na verdade, foi vocalizado pela própria, inclusive numa carta enviada a John Blackwood, seu editor, a 4 de fevereiro de 1857.

“Qualquer que seja o sucesso das minhas histórias, estarei decidida a preservar as minhas incógnitas, tendo observado que um nom de plume [sic] assegura todas as vantagens sem os dissabores da reputação. Talvez, portanto, seja bom dar-lhe o meu futuro nome, como uma banheira para atirar à baleia em caso de perguntas curiosas; e, portanto, eu me subscrevo, melhor e mais simpatizante dos editores.

Sinceramente, 

GEORGE ELIOT”

via George Eliot’s Life: As Related in Her Letters and Journals, tradução livre

Como relembra Catherine Taylor, “na altura em que Middlemarch foi publicado, os leitores estavam completamente conscientes da identidade real da autora”, até porque “ ‘George Eliot era a persona pública de Evans”. “De acordo com o Oxford Dictionary of National Biography, ‘Mary Ann’ não foi usado por Eliot de 1851 até 1880, o último ano da sua vida, quando escolheu ‘Mary Ann Cross’ pelo seu casamento com John Walter Cross. As intenções contam, mas o legado também. Cabe realmente aos outros falarem por Eliot/Evans e designarem uma agência diferente?”, enquadra e questiona no mesmo artigo.

O caso de Eliot não é o único a revelar que nem todas as 25 autoras escolhidas entre 3000 pseudónimos pelo Women’s Prize for Fiction foram efetivamente forçadas a adoptar um pseudónimo masculino. Num artigo recentemente publicado pelo The Guardian, Sian Cain levantou o véu às fragilidades de uma coleção cuja precisão vai sendo, aos poucos, questionada: a silhueta de Frederick Douglass, jornalista, estava na capa de uma biografia de Martin R Delany escrita por Frances Rollin Whiper, originalmente publicada sob o pseudónimo de Frank A Rollin. Ao mesmo tempo, investigadores que se dedicam ao estudo da obra de Edith Maude Eaton referem que a história publicada em seu nome pode não ter sido escrita por si. Mary Chapman, professora de Inglês na University of British Columbia, explica, em entrevista ao jornal britânico, que Eaton “escreveu um diário de viagem com um pseudónimo masculino que teria cabido melhor” e que não se sabe se ela escreveu essa história [How White Men Assist in Smuggling Chinamen Across the Border in Puget Sound Country].”

A professora e responsável pela edição de Becoming Sui Sin Far: Early Fiction, Journalism, and Travel Writing by Edith Maude Eaton,  relembra que Eaton usava ambos os nomes  (Sui Sin Far e Edith Maude Eaton) e que “ao não escrever sobre a sua herança chinesa com nuance, como neste projeto, acaba por tirar o valor de ela ter afirmado a sua ancestralidade, que na altura era muito importante  porque os chineses eram muito mal tratados na América do Norte”. Ainda assim, a Baileys responde na mesma peça jornalística que, na pesquisa que fizeram sobre Eaton/ Far, descobriram que “usava muito pseudónimos para o seu trabalho” e que um membro da família da autora autorizou a sua publicação neste registo, na coleção Reclaim Her Name, por isso podem “alterar o [seu] nome”.

Ainda na peça do The Guardian, Sian Cain cita Grace Lavery, professora de Inglês na UC Berkeley, que escreveu no Twitter que estava “céptica” quanto a Reclaim Her Name, uma vez que “as autores do século XIX não foram forçadas a usar pseudónimos masculinos”. “A escrita literária tem sido sempre uma prática de auto-formação imaginativa. Ainda que bem intencionado, este projeto minimiza a imponente obra literária de George Eliot, Vernon Lee e outras”, refere.

Vernon Lee, agora publicada como Violet Paget com o seu romance The Phantom Lover, era uma escritora lésbica e feminista que viveu na segunda metade do século XVIII e, como relembra Catherine Taylor, “escolheu, na sua vida como na sua escrita, e por as suas próprias razões, rejeitar” o nome com que tinha nascido. George Sand, pseudónimo de Amantine Aurore Dupin, baronesa de Dudevant e, por sinal, aclamada autora (tão reconhecida quanto Honoré du Balzac ou Victor Hugo) de Indiana, tinha na escrita um espaço performático. “Sand era romancista, não Dupin. ‘George Sand’ era tanto uma parte da sua imagem como as roupas masculinas que vestia e os cigarros que fumava abertamente”, refere Taylor.

“Temos de reconhecer os nomes das autoras escolhidos por elas mesmas, por uma questão de respeito”, disse Chapman ao The Guardian a propósito do tema. “Talvez em raros casos, a indústria de publicação patriarcal oprimiu-as tanto que não tiveram outra opção senão esconder a sua carreira completa atrás de outro nome. Mas para George Sand e Lee, elas escolheram estes nomes. Por respeito, devemos honrar isso.”

Para compreender a complexidade da criação de escritoras sob pseudónimos masculinos, olhemos, por exemplo, para Irene Lisboa, autora natural de Arruda dos Vinhos que chegou a assinar como João Falco, Manuel Soares e Maria Moira. Em “Ainda tenho uma hora minha? O sujeito e o tempo na poesia de Irene Lisboa”, dissertação de mestrado de Sara Barbosa pela Universidade de Lisboa, cita-se um ensaio de Paula Morão para a revista literária Seara Nova, que se referia aos mesmos dizendo que se tratavam “de um jogo com o nome suposto, mas não de um princípio de dissolução da marca feminina da identidade”.

No meio literário, quando se percebeu que João Falco era pseudónimo de Irene Lisboa, as reações foram de estranheza ou de choque, mas para a autora, mesmo que nem sempre de forma intencional, representavam um statement por parte de uma mulher poeta que, de acordo com Mourão, se considerava diferente de “outros profissionais de letras”. Quanto aos nomes, disse uma vez: “Que significa um nome de autor? Nada! À roda destas coisas ligeiras que eu aproveito para meus temas literários, porque não há-de flutuar um dos meus nomes de ocasião? Tanto faz que seja X o protagonista, como X o seu explorador…”, num ensaio para a Seara Nova citado por Paula Morão também para a Seara, e recordado por Barbosa. Para a autora da tese dedicada a Lisboa, que num outro ensaio se propôs a analisar “Irene Lisboa e as Ficções de Género no Estado Novo”, esta “ousa pôr em causa normas sociais e literárias”.

Dar espaço aos nomes que querem ser reclamados

As lacunas na coleção que põe lado a lado autoras que escreveram, umas por opção e outras por obrigação, sob pseudónimos masculinos têm que ver, sobretudo, com a superficialidade na análise do contexto ao escolher quem entra na coleção. Ao contrário de George Sand, Vernon Lee ou de George Eliot, há nomes que querem e precisam de ser reclamados, por terem sido escondidos pela pressão patriarcal.

É o caso de Ann Petry, que publicou Marie of the Cabin Club como Arnold Petri.  Liz Petry, a filha, surge citada em algumas das publicações oficiais da coleção , mostrando-se feliz com o recuperar da identidade da sua mãe, para que não seja esquecida: “quando me perguntaram se o trabalho da minha mãe podia ser incluído numa coleção de livros tão digna, juntamente com outras escritoras notáveis, fiquei honrada. Sou muito orgulhosa do trabalho da minha mãe e fico entusiasmada por a escrita dela ser apresentada a um novo público através desta coleção. Sei que ela ficaria entusiasmada por fazer parte disto, uma vez que é o começo de uma conversa incrível para uma causa tão importante – a minha mãe sempre acreditou num mundo em que a humanidade é partilhada e acho que este projeto resume isso”, partilha.

Desta forma, torna-se mandatório explorar o contexto em que cada autora queria ou podia ser publicada, para que não se corra o risco de as ver a todas na mesma perspetiva e não incluir as múltiplas camadas do seu corpo de trabalho literário — para, como refere Catherine Taylor, não se correr “o risco de ser a-histórico em vez de historicamente preciso”.

Não deixa de ser curioso que numa breve pesquisa por “autoras com pseudónimo masculino” os resultados sejam alguns dos nomes a integrar Reclaim Her Name, e referidos neste artigo. Com o tempo, a procura pela verdadeira identidade de autoras cujos nomes foram escondidos, por força de não caberem no sistema em que viviam, confunde-se com a vontade (e, por vezes, liberdade) que encontravam na escrita, que existia no universo do seu pseudónimo. Até que ponto a obra se torna maior do que a sua autora e é legítimo re-contextualizá-la à luz do contexto atual, declarando justiça?

Autor:
19 Agosto, 2020

Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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