Tremor e Bons Sons: como encaram os mais pequenos um ano sem festivais

Tremor e Bons Sons: como encaram os mais pequenos um ano sem festivais

11 Junho, 2020 /
Foto cortesia de Vera Marmelo e Bons Sons

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Porque tal como o vírus não escolhe pessoas, a crise também não escolhe quem afecta, mas os mais pequenos são geralmente os mais desprotegidos.

Ao longo da última década, os festivais de música e de Verão cresceram e firmaram-se definitivamente em Portugal. Estão na agenda de milhares de portugueses e trazem ao nosso país milhares de estrangeiros, resultando num impacto na economia dos lugares onde se realizam que pode chegar aos milhões de euros. Grandes, médios, pequeno. A norte, a sul, no interior, no litoral e nas ilhas. Com grandes nomes da música internacional ou só com música portuguesa. Há festivais para todos os gostos e idades.

Imaginar um Portugal sem festivais tornou-se complicado, mas aquilo a que 2020 mais nos tem obrigado é a esse género de exercício de imaginação. Este ano não há festivais de Verão. À luz das recomendações sanitárias, todos os festivais e espectáculos de natureza análoga até 30 de Setembro estão proibidos ou são obrigados a ter lugares marcados e lotação muito reduzida, seguindo as regras definidas pela Direcção-Geral da Saúde e acatando às ordens da Inspecção-Geral das Actividades Culturais.

Ora, não vendo as promotoras rentabilidade nessas restrições, optaram pelo reagendamento. NOS Alive, Super Bock Super Rock, Rock In Rio NOS Primavera Sound, MEO Sudoeste, Vodafone Paredes de Coura já anunciaram datas em 2021, à luz das medidas anunciadas para o sector; quem tinha comprado bilhete ou passe para a edição deste ano de qualquer um desses festivais não será reembolsado, por se partir do entendimento que se trata de um reagendamento do festival — mesmo que este possa vir a decorrer com artistas diferentes.

(…) o espetáculo reagendado deve ocorrer no prazo de um ano a contar da data inicialmente prevista. Caso seja necessário substituir o bilhete de ingresso do espetáculo reagendado, por mudança de local, data ou hora, o mesmo não terá custos acrescidos para o consumidor final.

(…) caso o espetáculo não possa ser reagendado, o seu cancelamento deve igualmente ser anunciado, devendo ser indicado o local, físico e eletrónico, o modo e o prazo de restituição do preço dos bilhetes de ingresso já adquiridos, garantindo-se os direitos dos consumidores. — Decreto-Lei n.º 10-I/2020

Para além disso, na nova lei, proposta pelo Governo, aprimorada na especialidade pela Comissão de Cultura e Comunicação do Parlamento, e resultante de um conjunto de reuniões com associações representantes do sector empresarial, decidiu criar um sistema de voucher. Quem tem bilhete para um festival reagendado vai poder usá-lo nas suas novas datas – sem pagar mais por isso, mesmo que o festival aumente o preço dos ingressos – ou para outro espectáculo da promotora desse festival; por outras palavras, um portador de um passe do NOS Alive vai poder ir à edição de 2021 do festival ou qualquer outro evento da Everything Is New, mas não a um concerto promovido Música No Coração, por exemplo. Caso não queira nem as novas datas nem outro espectáculo até 31 de Dezembro de 2021, tem direito ao reembolso do dinheiro após essa data e no prazo de 14 dias. Significa isto, por exemplo, que alguém que tenha comprado um bilhete para o Alive e não queira ir à edição de 2021 do festival nem a nenhum outro concerto da promotora promotora, terá de esperar até 2022 para ter o seu dinheiro de volta.

Como aponta Ana Sofia Ferreira, jurista e coordenadora do Gabinete de Apoio ao Consumido da DECO, em entrevista ao SAPO24, a lei que concerne os festivais é especialmente dúbia, por serem eventos com vários artistas. Nesta entrevista, a jurista reitera que “a associação de defesa do consumidor defende, no entanto, que “se o nome cancelado é cabeça de cartaz ou se lhe foi dado grande destaque, e é perceptível que grande parte dos consumidores adquiriram bilhete para o ver, o valor deve se reembolsado”.

Esta lei excepcional procurou assim proteger os agentes culturais, nomeadamente as promotoras – das quais dependem muitas pessoas, incluindo equipas técnicas – mas acabou por não abranger todos de igual forma, deixando de fora os mais pequenos.

Quando já sabíamos que não seria possível realizá-lo, a legislação tardou a sair de uma forma que os promotores pudessem apelar a causa de força maior para o cancelamento. — Márcio Laranjeira

Um Tremor, 11 histórias

Márcio Laranjeira, da Lovers&Lollypops, uma editora musical do Porto que organiza dois festivais: o Milhões de Festival, que já não se tinha realizado em 2019, e o Tremor, que tinha mais uma edição programada em Março nos Açores, falou com o Shifter sobre as consequências deste momento numa estrutura como a sua. “O impacto [dos cancelamentos] é gigante, pois são períodos muito grandes de trabalho e investimento, com contratações de equipas maiores, que com o cancelamento vão por água a baixo, pois o retorno é recolhido durante o evento”, explica. “Acredito que seja igualmente duro para pequenas e grandes estruturas, pois uma maior estrutura terá também maiores encargos fixos que tem de manter.”

“Nas nossas contas é um impacto gigante pois cerca de 80% da facturação da empresa é baseada nos concertos ao vivo. Em 2020 não temos Milhões de Festa, nem Tremor, nem concertos de sala, nem agenciamento. A única área da empresa que se encontra ativa é a edição de discos e o Clube Lovers & Lollypops”, contextualiza Márcio.

Na mesma situação encontra-se a Sport Club Operário de Cem Soldos, associação cultural que anualmente monta o maior festival de música portuguesa numa pequena aldeia ao lado de Tomar. Se quando o festival era bianual, haver um Verão sem Bons Sons era normal, há vários anos para cá que tal cenário só se justifica numa situação excepcional. O Bons Sons representa um autêntico balão de oxigénio para os negócios locais e tem um impacto mediático e socio-económico na região assinalável, estimado em 3,5 milhões de euros em 2019”, explica Miguel Atalaia, director artístico do Bons Sons.

“Um Verão sem Bons Sons será certamente muito difícil para nós, bem como para os serviços de restauração, hotelaria, fornecedores e parceiros na região. Na aldeia, o contexto de pandemia veio expor e impor alguns casos de fragilidade sócio-económica, para além do impacto significativo na associação cultural que lidera a dinâmica comunitária que cria o BONS SONS – o Sport Club Operário de Cem Soldos (SCOCS)”, refere o responsável. “Levantar a cabeça traz a certeza de um BONS SONS 2021 o mais normal possível, que retome a energia, o legado e o sucesso das edições anteriores”, diz, acrescentando, sem levantar o véu, que em breve serão anunciadas algumas novidades que têm vindo a ser preparadas.

Ao contrário dos grandes festivais, cujos promotoras foram ouvidas através dos seus responsáveis pelo Governo, nem a SCOCS, nem a Lovers&Lollypops são dois exemplos de promotoas que não foram considerada – um cenário que, aliás, tem acontecido noutros sectores. “Os eventos de pequena e média dimensão não foram consultados nem tidos nem achados. Aqui acredito que seja uma lacuna de organização do setor, pois quem foi ouvido foi quem se organizou para ter peso junto das instituições de governação”, desabafa o responsável da Lovers&Lollypops, acrescentando que festivais mais pequenos como é o caso do Tremor ou o Milhões de Festa trabalham sobretudo com o poder autárquico e que têm “a nível central” uma importância política que é “perto de nenhuma”.

O Bons Sons para lá dos palcos… e das câmaras

“Todas as supostas linhas de apoio e auxílios foram mãos cheias de nada, que apenas mostram que quem lidera as instituições que deveriam auxiliar este sector tem uma visão muito desfasada da forma como ele funciona e do que ele implica.”. “São necessárias estruturas que representem promotores, agentes, artistas, salas de espectáculos, bares, técnicos, de modo a conseguir reivindicar em situações de crise. Enquanto estas estruturas não existirem e se fortalecerem, esta área nunca terá peso para ser tratada pelos poderes centrais com a seriedade que todos esperamos”. — sublinha.

Quando a pandemia espreitou, a o cancelamento do festival que tinha lotação esgotado foi imediato, até porque o festival estava previsto para final de Março. “Quando já sabíamos que não seria possível realizá-lo, a legislação tardou a sair de uma forma que os promotores pudessem apelar a causa de força maior para o cancelamento. Tivemos o bom senso de manter uma relação estreita e clara com o nosso público, artistas e staff”, explica. “Os portadores de bilhetes que quiseram reembolso receberam-no, quem quis manter o bilhete para 2021 manteve. Como não foi uma medida imposta, foi muito bem aceite.”

Cerca de 60% das pessoas que tinham comprado bilhete vão mantê-lo para 2021 “sem que isso lhes tenha sido imposto”, nota. “Em relação a 2021 vamos querer re-agendar grande parte dos espectáculos, contudo ainda há bastante receio em confirmar datas, principalmente com artistas que residem fora da Europa.” Também Miguel Atalaia fala num “voto de confiança” que já existe em relação à “proposta que apresentamos”; mesmo sem qualquer cartaz anunciado, cerca de 6 mil entradas para o Bons Sons (que recebe anualmente um máximo de 35 mil festivaleiros) já tinham sido vendidas, estando válidas para a edição de 2021, marcada para de 12 a 15 de Agosto. ”No próximo ano queremos regressar, ‘habitar a rua’ e fazer da aldeia a nossa casa comum, o mais ambicionado desejo coletivo.”

Autor:
11 Junho, 2020

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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