O abalo sísmico da pandemia COVID-19 veio para ficar, causando uma derrocada profunda na nossa maneira de viver e colocando em causa o que esperávamos do futuro, pelo menos, a curto e médio prazo. Tal como num terremoto, também para esta crise existiram subtis abalos premonitórios que, apesar de não permitirem localizar precisamente no tempo e no espaço o surgimento da epidemia, possibilitavam a certeza do seu acontecimento futuro e, por conseguinte, o delinear de estratégias preventivas e mitigadoras.
Nas páginas obscuras das revistas de saúde pública, nas bases de dados de investigadores e em iniciativas Organização Mundial da Saúde ou da União Europeia há muito que paira o espectro das zoonoses (doenças transmitidas para o ser humano por via animal), da importância de uma abordagem unificadora entre saúde humana, ambiental e animal (“One Health Initiative”), de vários artigos sobre o perigo potencial dos coronavírus ou da Disease X (projeto da OMS no qual se estudavam as possibilidades de surgimento de um patógeno hipotético com alto potencial de gerar uma pandemia).
Um dos elementos fundamentais da resposta às crises é o jornalismo, como componente de um sistema de comunicação que faz circular pelas sociedades, como uma brisa virtuosa, o ar fresco da informação. Numa altura em que o confinamento é necessário para resolver o problema sanitário imediato, limitando justificadamente a liberdade individual e alguns outros direitos, é justo que se faça ouvir com voz reforçada o escrutínio da investigação jornalística e o vigor das opiniões divergentes. É saudável que assim seja.
Foi a propósito da recente campanha de apoio ao Shifter e do Editorial do João Gabriel Ribeiro, que podem ler aqui, que pensei sobre isto. Não sou especialista na questão do “negócio jornalístico”, mas faço questão de usar os meus recursos limitados para apoiar grandes e pequenos projetos, desde o Público ao Fumaça. As vozes do Shifter e do Fumaça acrescentam à praça pública, com uma generosidade ímpar (porque aberta e acessível sem senãos), narrativas e pontos de vista que são o sangue vivo da democracia. Por isso merecem apoio. Que apoio? Falem disso os entendidos. Mas sei que sem sangue não vivemos.
Infelizmente, nem todo o jornalismo consegue elevar-se às exigências das circunstâncias. A crise social e económica principiou a trazer para a abertura dos telejornais o rosto envergonhado, tentando esconder-se, da fome que os mais fracos dos fracos, os mais marginalizados das margens, começam a sentir (alguns sempre sentiram). Vem-me à cabeça o verso cantado pelo Tiago Bettencourt: “Porque eu não me escolhi para a fila do pão”. Também uma proliferação de peças jornalísticas sobre o potencial potencial (a dupla reiteração é intencional) de alguns fármacos da moda, da hidroxicloroquina à BCG, como tratamentos para a COVID-19 é prova da falta de prudência, da caça ao like e à partilha.
A dissonância entre o fervor da comunicação de “última hora” e a produção científica agudiza-se em tempos de crise como os que vivemos. Aquilo que parece faltar é a consciência de que esta é, precisamente, a altura em que maior seria o benefício das análises macroscópicas, do slow journalism, da investigação inteligente, da discussão ampla. Muito mais produtivo do que o repetir nauseado dos números do dia (que também são importantes) seria a análise das tendências gerais, um olhar para as respostas que se aplicam pelo mundo fora, um convite aos especialistas para nos transmitirem o seu saber.
Esta distância acontece porque o conceito fundamental do nosso tempo é a incerteza. A incerteza quanto ao futuro, a incerteza dos modelos matemáticos, a incerteza económica, financeira. Em alguns pontos do globo, a incerteza política. Um dos pilares da comunicação de crise é a tranquilização da população, preparando-a para lidar com a incerteza. Por isso é que é fundamental que as lições mais simples sejam também as mais difundidas. Lavar as mãos, preservar uma distância física para com os outros, usar corretamente uma máscara: estas são verdades que sabemos, com um bom grau de certeza, que nos podem ajudar a ultrapassar esta situação ineditamente difícil e incerta. Agarremo-nos a isso.
Devemos quase tudo o que temos, enquanto sociedade, ao poder das boas perguntas. Numa crise sanitária como a atual, até poderia ser verdade (dificilmente, diria) que os países de matriz autoritária respondessem com maior rapidez à implementação de medidas de confinamento, mobilizando a população em massa sem as preocupações procedimentais a que a lei e o escrutínio democrático obrigam.
É, porém, certo que, no longo prazo, as cicatrizes desta crise serão tão melhor saradas quanto melhor for a qualidade da nossa democracia. Porque a pobreza mata. Porque a falta de informação mata. Porque a comunicação atropelada, confusa, contraditória, autoritária, agressiva, condescendente mata.
A ciência é, antes de mais, a arte de fazer perguntas e o método de lhes achar respostas. É algures no cruzamento entre a ciência e a comunicação que se encontram ferramentas preciosas para responder às dúvidas e anseios da sociedade, ou como é agora costume dizer-se, para aplanar a curva.
Bem haja o jornalismo inteligente.