‘Unorthodox’, ‘Kalifat’ e a importância do contexto

‘Unorthodox’, ‘Kalifat’ e a importância do contexto

6 Maio, 2020 /
DR / Anika Molnar via Netflix

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Até que ponto podem séries do Netflix, como Unorthodox e Kalifat, enviesar a forma como as suas audiências organizam o seu pensamento e fomentar relações desinformadas, intolerantes e com falta de empatia? 

Durante o período de isolamento social, ver séries passou a ser algo menos exclusivo de quem já tinha o ritual de todos os dias ver um episódio da série A ou B, ou de quem vê o binge watching quase como um desafio auto-imposto. Como seria de prever, a Netflix atingiu o pico de subscrições e visualizações e, naturalmente, continua a sua escalada ao poder na indústria cinematográfica. Eu, que raramente via séries, fui uma dessas pessoas. Numa vista de relance pelo feed do Facebook, encontrei uma crítica a Unorthodox, uma série que parte da história de Esther Shapiro (Esty), uma rapariga hassídica que prepara uma fuga da sua comunidade em pleno bairro de Williamsburg, em Brooklyn (Nova Iorque), para Berlim, o lugar para onde também a sua mãe decidiu ir quando fugiu e a deixou com o pai e os avós. 

A história é inspirada na auto-biografia de Deborah Feldman, “Unorthodox: the scandalous rejection of my hasidic roots”, lançada em 2012, e surge da vontade que a própria expressou em tornar o livro num produto audiovisual. Alexa Karolinski e Anna Winger, ambas amigas de Feldman, agarraram o desafio e, junto a Maria Schrader, construíram uma série de quatro episódios que nos deixa com vontade de ver e saber mais. 

Pontuada por pormenores cénicos carregados de simbologia que vão gerando empatia entre nós e Esther, Unorthodox dá a ver uma realidade até há bem pouco tempo fechada entre as quatro paredes morais da comunidade ultra-ortodoxa que se mudou para Brooklyn após o holocausto e se organiza de forma a recuperar “os seis milhões perdidos” — segundo vai sendo mencionado ao longo da série. 

Percebemos a dimensão de uma série como esta ao ver o Making Of, também disponível no Netflix. As criadoras partilham como chegaram até ao resultado final, os atores e atrizes partilham a construção das suas personagens, a figurinista explica como foi possível ter um guarda-roupa tão completo, o tradutor Yiddish que foi também consultor cultural contextualiza algumas decisões, e a própria Deborah Feldman comenta o que sente em relação à concretização desta vontade que já tinha há algum tempo. É um complemento indispensável à compreensão da série. 

Para aqueles que, como eu, vivem distantes da realidade dos judeus ultra-ortodoxos, é possível que se desenvolva um sentimento de pena em relação a Esty e que subitamente as suas dores pareçam nossas, e as suas conquistas também. É uma ficção, mas pela relação à história de Deborah Feldman sabemos que existe um elo de ligação à realidade. A procura de Esty pela liberdade da vida secular e a coragem de furar as regras pode levar-nos a esperar que tudo dê certo, e que consiga livrar-se de um sistema opressor e que não parece pertencer ao século XXI, especialmente em Nova Iorque (a cidade que os filmes nos vendem como sendo feita de sonhos e onde supostamente podemos ser quem quisermos). E é aí que entra a importância do contexto. 

Se, por um lado, ver uma série em Yiddish e com uma narrativa centrada num contexto não-normativo é uma forma de abrir portas ao conhecimento e estar mais consciente do que se passa fora da nossa bolha, por outro é fundamental lembrarmo-nos que por muito que a história ficcionada parta da realidade, as generalizações são sempre perigosas e que o nosso contexto influencia a nossa percepção – tal como a de quem participa na série.

Pouco depois do boom que a série despoletou, a Dazed entrevistou Izzy Posen, um jovem de 25 anos, ex-hassídico, que saiu de uma comunidade ultra-ortodoxa no norte de Londres aos 18. Num comentário a Unorthodox, entre outras coisas, Posen disse que “na comunidade real teria havido muito mais empatia para com a Esty” e que “a condição dela teria sido tratada com sensibilidade”. A seu ver, a série retrata uma comunidade “unidimensional, sem sentimentos, e eternamente amargurada” que, na realidade é composta por “muita alegria, empatia, bondade e humor” – ainda que, de facto, “exista muita supressão da liberdade pessoal”. Por muito que entenda que esta voz, provavelmente, foi escolhida por uma questão geográfica, Izzy Posen é um homem e pertencia a uma comunidade em Inglaterra, que não era a mesma de Deborah Feldman e muito menos de Esty. Foi o perfil de Posen que me levou a um artigo também mencionado no da revista britânica, escrito por Frieda Viezel, uma mulher que, tal como Feldman na vida real e Shapiro na ficção, abandonou a comunidade Satmar Hasidic de Williamsburg. A sua história é diferente, mas partilha de alguns dos mesmos dilemas, sobretudo a busca pela liberdade de escolha.

Viezel cresceu na comunidade de Kiryas Joel, mergulhada em leituras proibidas que a faziam sonhar com uma vida em que se pudesse sentir livre, e mais tarde acabou por encontrar essa liberdade com o seu filho fora da comunidade. Actualmente gere um projecto de visitas guiadas pelo Williamsburg Hasidic e consegue ter um equilíbrio entre aquilo em que acredita e o que considera essencial, mas a que não podia ter acesso num contexto como aquele em que cresceu. 

Na peça que assina para o Forward, uma plataforma de notícias sobre a cultura judaica destinada a judeus americanos, aponta que “não há problema em mostrar o lado negro do Hasidism, mas o retrato continua a precisar de ser humano” – factor que não encontra em Unorthodox. Para Frieda Viezel, “o público quer e consegue lidar com representações de Judeus Ortodoxos que sejam complexas e realistas”, e que não pareçam “bruxas da Disney vestidas com roupas estranhas”. A sua crítica destina-se, sobretudo, a conteúdos com uma visão do mundo dividida entre “preto e branco, bom e mau” e que desumanize aquilo que pretende retratar.

Também no Forward, Lani Santo, diretora executiva da Footsteps, uma organização que dá apoio a pessoas que queiram sair de comunidades judaicas ultra-ortodoxas, escreveu sobre Unorthodox e o documentário One of Us (também no Netflix), e a importância de abrir os braços a quem precisa de um abrigo. Santo, que é também uma das personagens do documentário de Heidi Ewing e Rachel Grady — que segue a história de três judeus hassídicos que tentam sair da sua comunidade em Brooklyn — traz um outro ponto para a discussão: a urgência de sermos empáticos.  

Numa aparente aposta na diferença por parte do Netflix, todos ficamos a ganhar se soubermos distanciar-nos, a contextualizar e a respeitar a diferença que muita das vezes desconhecemos. Seja a ver Unorthodox e a entender que é uma ficção, ou a ver One of Us tendo em mente que um filme é sempre um enquadramento da realidade.

DR / Anika Molnar via Netflixx

Nesta maré de partilhas, começou a surgir uma recomendação “obrigatória para todos os fãs de Unorthodox”: Kalifat. Numa breve pesquisa no Google com o nome das duas séries juntas, encontra-se uma série de artigos que de certa forma relacionam os seus conteúdos. Talvez por representarem histórias onde a procura pela liberdade é o ponto central, e por ambas nos deixarem com o coração nas mãos à espera de que a personagem com que mais nos identificamos chegue ao fim sã e salva (?). Mas, mais uma vez, uma série com ligações à realidade não deve viver sem o seu contexto. E o perigo da generalização também está em associarmos dois contextos religiosos que, na verdade, nada têm a ver um com o outro. 

Kalifat é uma produção realizada por Gregor Kapetanovic, a partir de uma ideia de Wilhelm Behrman, que se divide entre a Suécia e a Síria, e que conta a história do processo de radicalização de jovens suecos para integrar o Estado Islâmico. Na Síria, Pervin, uma jovem que se mudou para Raqqa, procura ajuda às escondidas para escapar ao horror que não sabia que lá ia encontrar, e fala todas as noites com Fatima, uma agente da polícia que se encontra na Suécia a tentar desvendar um ataque bombista a acontecer em breve. Pelo meio, outras jovens como Pervin são aliciadas a juntar-se ao paraíso que (nunca) encontrarão na cidade síria.

Numa entrevista à Variety, Behrman explica que “tudo começou com uma fotografia na imprensa internacional de três adolescentes britânicas a fugir das suas famílias para se juntar à ISIS.” Como ficou “tão chateado com isso”, “talvez por ter uma filha exatamente da mesma idade”, decidiu escrever algo sobre o assunto. 

Foi, na verdade, depois de acabar de ver a série e pensar como a mesma podia convidar à propagação discursos de ódio que decidi escrever este artigo. A partir daí, e até me sentar na mesa em que estou a escrever, foram-me surgindo algumas questões: estarão estas séries de ficção baseadas em factos verídicos a abrir-nos portas na compreensão do mundo ou a condicionar a forma como o devemos ver? Quantas pessoas que viram e recomendaram Kalifat aos amigos ou aos seus leitores conhecem, de facto, o contexto político passado e actual da Síria? Até que ponto podem séries do Netflix enviesar a forma como as suas audiências organizam o seu pensamento e fomentar relações desinformadas, intolerantes e com falta de empatia? 

Sem querer, de todo, envolver-me num tom fatalista, recupero a ideia de Frieda Viezel que diz que o mundo não é preto e branco e não se divide entre bom e mau. Por isso mesmo, séries como Unorthodox e Kalifat podem servir como porta de entrada a realidades que desconhecemos, mas é importante que não fiquemos apenas por lá. Todos sabemos que uma ficção é uma ficção, mas a proximidade à realidade, muitas vezes assumida como argumento de marketing, e ao arco temporal que atravessou, é que nos pode deixar no limbo entre a experiência de ver e assimilar o conteúdo como um produto ficcional ou assimilá-lo para a construção da nossa imagem de realidade. É no cruzamento de enquadramentos diferentes que encontramos o balanço entre o objeto e o seu contexto — e é aí que nos emancipamos e percebemos que, por muito que tenhamos empatia com uma personagem e a sua história, há tantas outras que podemos acrescentar a uma reflexão sempre em aberto.

Autor:
6 Maio, 2020

Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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