Entre o que somos e queremos ser, contam-se 10000 Gestos

Entre o que somos e queremos ser, contam-se 10000 Gestos

24 Fevereiro, 2020 /
10000 gestos Tristam Kenton via Culturgest

Índice do Artigo:

Assistimos a 10000 Gestos, espetáculo que Boris Charmatz criou em 2017, onde tudo parece uma constante novidade, uma narrativa sem fio condutor que se compõe por múltiplos clímaxes.

Num auditório a meia-luz, uma bailarina com um fato de saia e casaco em lantejoulas vermelhas corre da cochia para o palco sem que alguém avise que começou. Quase num sussurro, ao fundo, ouve-se algo que se assemelha ao Requiem de Mozart, que se vai fundindo na respiração que marca os tempos de cada gesto da bailarina. Numa avalanche de passos, juntam-se em palco mais dezoito bailarinos.

No auditório principal da Culturgest assistimos a 10000 Gestos, o espetáculo que Boris Charmatz criou em 2017 e sabemos, à partida, que naquele palco nenhum gesto se vai repetir. Deixamos lá fora um mundo onde reina a novidade da presença humana – ou pelo menos achamos que deixámos.

É quando a banda sonora aumenta ligeiramente de volume que conseguimos confirmar que estamos numa viagem musicada por Mozart e que, dali para a frente, o volume inconstante a que o Requiem em D menor sai das colunas vai contagiar até o ritmo nossa respiração. Em frente às três paredes que formam o palco, cada bailarino delimita individualmente o espaço que lhes pertenceaté, num conjunto de gestos frenéticos e irrepetíveis, começar a questionar os limites que criou. Em grupo, mas cada um por si, saltam para as colunas, correm entre cochias e sintonizam-se na mesma frequência a derrubar tantas vezes quanto possível a quarta parede; uma sensação que já tinha sido dada pela ausência de escuridão do lado de cá, do público.

10000 gestos Tristam Kenton via Culturgest

Numa espécie de efeito borboleta, contagiam-se sem terem de se tocar ou sequer de se olhar. Une-os o tempo, o espaço, o som. Distancia-os o esforço hercúleo de cumprir ou criar a sua própria coreografia, individualmente, a partir da memória do corpo de cada um. 

Se por um lado tentamos inventariar cada gesto, como se quiséssemos agarrar a sua efemeridade e transportá-la para uma base de dados ou um museu dos gestos, por outro desistimos de tentar perceber se algum gesto realmente se repetiu e entramos novamente na viagem conduzida por Charmatz, musicada por Mozart e destabilizada por dezanove bailarinos.

Ainda que possamos reconhecer o legado de Merce Cunningham — que já foi, na verdade, o ponto de partida para um dos espetáculos do coreógrafo francês — ou de Pina Bausch em algum momento, 10000 Gestos não se trata de criar uma compilação “em modo referencial”, como o próprio Charmatz indica na entrevista que deu ao escritor Gilles Amalvi em setembro de 2016 e que serve de contexto na folha de sala. Mas tal como os pontos divergentes entre estilos de Cunningham e Bausch, tudo em 10000 Gestos vive em tensão.

Do grito catártico de dezanove pessoas que se torna ensurdecedor ao silêncio repentino mas natural que serve de respiro a outros momentos de catarse, todos os momentos em 10000 Gestos são tão discretos na sua intenção como cheios dela. Depois da tempestade, o caos.

O Requiem continua, há uma contagem em voz alta, e uma mancha de gente quebra, de uma vez por todas a quarta parede. Por entre as cadeiras da plateia, continua a questionar-se os limites do espaço – o nosso e o do outro. Colados às cadeiras, espectadores dividem-se entre os que se deixam contagiar e os que continuam a segurar a máscara social que parece relembrar como é que é suposto comportarmo-nos numa sala de espetáculos – Podemos rir? Podemos dar a mão a quem nos convida para dançar? Podemos desatar a correr para o palco?

10000 gestos Tristam Kenton via Culturgest

Em 10000 Gestos tudo parece uma constante novidade, uma narrativa sem fio condutor que se compõe por múltiplos clímaxes e da qual, a certa altura, percebemos que sempre fizemos parte. Na verdade, não há lado de cá nem lado de lá. Somos todos humanos a carregar as nossas máscaras, sempre perto de poder falhar e ultrapassar o risco que delimita o nosso próprio espaço.  Mesmo em grupo – sobretudo em grupo -, demarcamos o espaço que dificilmente deixamos invadir e vamos vivendo um solo que se vai encontrando em pas-de-deux.

Em crescendum o Requiem chega ao fim, as luzes apagam-se e a composição de gestos vive, por fim, na efemeridade. Lá fora, a vida segue num compasso diferente do que seguia quando entrámos. Os gestos repetem-se.

Autor:
24 Fevereiro, 2020

Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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