Com a crescente e necessária diversidade de vozes no paradigma cultural contemporâneo, cada vez mais se ouve falar dum assombramento cultural e hereditário. Um assombramento que persegue os descendentes daqueles que trocaram o seu país por um outro, cujos ideais e cultura são completamente diferentes daqueles que os viu dar os seus primeiros passos no mundo. Estas pessoas acabam por se sentir membros dum mundo à parte, presos entre duas frequências com as quais não se conseguem sintonizar, estrangeiros na face do que eram e são.
Lulu Wang, escritora e realizadora de 36 anos, é alguém que batalhou no seu próprio conflito de identidade, tendo nascido e vivido em Pequim durante seis anos, até que emigrou para o estado americano da Florida com a sua família. É com The Farewell, seu segundo filme com um alto teor de elementos autobiográficos, que esta cria um manifesto cinemático que pretende pegar na dissonância cultural que divide as ideologias da América e China, compondo uma crítica construtiva a ambos os ideais para, acima de tudo, celebrar o modo como estes se conjugam numa forma especial de beleza humana.
The Farewell segue Billi (Awkwafina), filha de imigrantes chineses em Nova Iorque, que vê a sua vida virada do avesso quando descobre que a sua Nai Nai (“avó paterna” em mandarim), com a qual manteve uma próxima relação à distância ao longo dos anos, padece de um cancro pulmonar de cariz terminal e tem poucos meses de vida pela frente. A sua família decide não revelar este diagnóstico a Nai Nai, de forma a que esta possa viver os seus últimos dias em paz e sem preocupações (coisa à qual Billi se opõe veementemente), usando o casamento de Hao Hao, o outro neto de Nai Nai e único primo direito de Billi, como pretexto para, em jeito de despedida secreta, poderem reunir a família em torno da idosa.
Billi é a mulher jovem americana, rebelde, independente, mas com aquela sensação comum à juventude ocidental de se sentir à deriva num mar de vida cujas correntes não se distinguem umas das outras, ao mesmo tempo que sente o transtorno de ver a sua avó incauta a caminhar para as portas da morte; o maior e mais importante símbolo do seu passado, prestes a ser tombado por algo sobre o qual não pode exercer o mínimo de controlo. É exactamente este o ponto primordial de onde toda a estrutura de The Farewell origina e, caso este fosse mal executado, tornar-se-ia impossível a construção cinemática e simbólica que a realizadora pretendia. Mas Lulu Wang e a sua equipa foram mais que capazes de gerar um filme que opera exemplarmente em todos os departamentos, do mais técnico ao emocional.
A cinematografia de Anna Franquesa Solano é um exemplo perfeito de como filmar cenas intimistas sem recorrer a planos fechados e claustrofóbicos, conseguindo capturar os sucessivos membros da larga família no centro do filme duma forma que os polariza constantemente uns com os outros, e com os cenários que os rodeiam, ajudando a realçar a dinâmica familiar e identitária no centro do filme. Dinâmicas estas soberbamente interpretadas por um elenco exemplar de actores (praticamente todos estes de descendência chinesa), que balança perfeitamente a melancolia inerente ao tema central da narrativa com um sentido de humor inteligente e bem pontuado, com Awkwafina e Zhao Shuzhen (a estreante actriz que interpreta Nai Nai) a tecerem uma das relações mais interessantes, mais essenciais, e mais humanas do cinema moderno.
Traz à memória algumas das ideias e técnicas que o já falecido realizador taiwanês Edward Yang usou em Yi Yi, não só nalguns dos seus aspectos narrativos paralelos, mas também pela forma como uma abordagem simples e descontraída – mas que nunca se toma por desleixada – consegue resultar num filme essencial sobre o que é uma família, que consegue universalizar as emoções de um evento extremamente particular de uma vida alheia à nossa. Lulu Wang fê-lo e de que maneira, encontrando-se a si mesma e a um tipo de cinema que vai fazendo falta nos dias de hoje.
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