Carta aberta ao meu país

Carta aberta ao meu país

4 Novembro, 2019 /

Índice do Artigo:

"O resto fazemos nós, tal como os nossos antepassados. Não sei muito bem o que fizeram os nossos antepassados, mas sei que glorificá-los é sempre o bom final para um parágrafo. Como se vê."

Querido Portugal,

Não te escreverei uma carta. Não faz grande sentido, não é? És uma enorme unidade https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativa e geográfica, serves para representação política, mas não és, de facto, uma entidade passível de comunicação escrita. Não me responderás, e isso causa-me mágoa.

Se esta carta fosse escrita há 500 anos teria medo de te escrever. Ver os teus mecanismos de controlo imperialista espalhados pelo mundo, disseminando a apropriação cultural e a violência, com um lastro que haveria de se propagar durante séculos através de feridas profundas nos povos “colonizados”, causar-me-ia, realmente, um terror imenso.

Mas mudaste. O Quinto Império nunca existiu, não vai existir, e pouco mais é do que um recurso simbólico para alimentar um saudosismo bacoco. Achei que ficaria bonita essa referência neste texto (tal como achei que teria uma boa impressão estilística organizar o pensamento sob a forma de uma carta). Permite-me que, a esse propósito, refira ainda um outro nome sonante: D. Sebastião. Pronto, está feito, não deve ser preciso desenvolver.

Não tenho qualquer autoridade para te criticar ou emitir juízos de valor acerca de ti, mas já que toda a gente o faz, mesmo quem nada percebe (como eu), arrisquei fazê-lo.

Nós somos sonhadores. Também já tiveste a nossa idade, Portugal. Achamos que podemos fazer tudo e alcançar o céu. Mas há muita gente que não quer alcançar o céu. Pelo menos um T1 em Campanhã, Portugal. E a verdade é que não conseguimos mesmo.

Precisamos da tua ajuda para crescer. Só precisas de nos ajudar. A educação que nos dás, gratuita e de qualidade, já não chega para romper o muro da falta de emprego. Um curso superior já não serve para nos manter longe das caixas de supermercado. Só precisas de nos ajudar. O resto fazemos nós, tal como os nossos antepassados. Não sei muito bem o que fizeram os nossos antepassados, mas sei que glorificá-los é sempre o bom final para um parágrafo. Como se vê.

Mas como é que eu posso fazer algo grande do modo que tu estás?

Ensina-me a pensar, ensina-me Ciências ou História porque de sexo não percebes nada. Basta ver a tua taxa de natalidade, tão baixinha. De sexo não percebes nada, Portugal. Confundes tudo, meninas e meninos, como se não houvesse diferenças. Porque é que haveremos de dar aos géneros a mesma liberdade que eu defendo para os grandes grupos económicos, para a flexibilidade fiscal, para a contabilidade criativa? Porque é que as pessoas não poderão ser exatamente aquilo que quiserem ser, desde que de acordo com os princípios da normatividade religiosa convencional? Queria que fosses coerente como eu, Portugal. Que defendesses a liberdade de escolher o hospital privado que eu quiser, sem ter de me misturar com os pobres do SNS. Que me deixasses pagar menos impostos.

Dá-me a liberdade para escolher! Mas não dês a liberdade a um jovem com um sofrimento atroz por ter disforia de género de ser quem ele realmente é. Não dês a liberdade a um casal homossexual de se exprimir na beleza imensa da sua liberdade emocional, relacional e sexual. Dá-me a liberdade para escolher! Mas só a mim, Portugal.

Como é que me dizes que sou livre se me tiras mais rendimentos hoje do que alguma vez me tiraste? Por outras palavras: como é que me dizes que sou livre se grande parte do dinheiro que eu ganho vai para ti e nem sei bem o que fazes com ele? Andas a esbanjar o meu IRS em apoios a quem não quer trabalhar. E quando eu quero criar um negócio, porque não me deixas pagar o que quero aos meus colaboradores? É quase como se usasses os impostos que eu pago para compensar os trabalhadores a quem não pago, Portugal. Mas que brincadeira é esta?

Portugal, tu estás diferente. Tenho-te notado estranho. Ficas pior com a idade, e essas novas ideias absurdas de liberdade e democracia não combinam com a grandeza do antigamente. Onde é que estão os grandes governantes a que me habituaste? Antigamente os reis e ministros iam parar ao panteão. Hoje quem governa, ou suborna ou vai parar à prisão. As saudades que eu tenho daquela boa governança democrática do século XII. Aquilo é que era grandiosidade, Portugal. A democracia é que veio estragar tudo.

Depois admiras-te que quase metade de nós não vai votar. Como é que alguém com 17 anos não pode votar mas pode mudar de sexo? Achas que me estás a ajudar se me incentivas a ser outra pessoa que não aquela que veio ao mundo com o meu nome? Daqui a nada perco o controlo e acredita que me transformo numa menina. E depois como vai ser? Contas tu à minha família, Portugal?

Posso ainda nem ser maior de idade, mas sei que a vida é tudo menos fácil. Sei bem a dor de ter de adiar a compra do último iPhone porque a validade do cartão de crédito acabou. Sei bem o trabalho que é procurar expedientes legais para despedir um funcionário menos simpático. Ó, Portugal, como é dura a vida de um rico.

A vida não é fácil, mas é algo valioso, o mais valioso que temos. Infelizmente não o é para todos. Olha o exemplo dos doentes terminais. Achas que a melhor maneira de melhorar a sua vida é acabando com ela? Claro que não. Quem és tu, Portugal, senão aquele que me deve proteger? Por favor, respeita a minha liberdade. Mas não respeites a liberdade de quem, em consciência, deseja terminar com o seu sofrimento, por ver esgotado aquilo que entende como projeto de vida!

Porque é que uma mãe sem condições financeiras não tem uma creche gratuita para poder trabalhar enquanto cria o seu filho, maximizando os lucros da minha empresa ao mesmo tempo que fujo aos impostos utilizando uma sede fiscal num país estrangeiro?

Neste momento estou a estudar Medicina e desde que comecei já aprendi muitas coisas. Sabias que um utente com poucos recursos vê-se obrigado a aceitar um fármaco com efeitos adversos muito mais desagradáveis e incomodativos do que outro paciente mais rico que tem acesso a uma alternativa igualmente eficaz mas mais segura?

Será que estás a dar o exemplo do que é uma Democracia quando quem governou durante 4 anos nem sequer ganhou as eleições, apesar de cumprir rigorosamente os critérios constitucionais necessários, atendendo a que a formação do governo depende da distribuição de deputados eleitos? Pois, pensando melhor estás, Portugal.

Temos um sistema político ultrapassado e as pessoas estão fartas. Como é que não percebes isso, Portugal? Como é que não percebes que precisamos de caras novas e lufadas de ar fresco para todos aqueles que já desistiram de ti? Caras, por exemplo, como a minha, Portugal? Fica a sugestão.

Daqui a cinco anos devo entrar no mercado de trabalho e tenho de me fazer à vida. Se ao menos tivesse na família alguém com cargos de liderança numa clínica ou hospital privado. Se ao menos me ajudasses, Portugal.

Posso ter 23 anos, mas sei perfeitamente que não estás bem. Vou escrever-te esta carta para o comprovar. Espero que a recebas em tempo útil. A privatização dos CTT, realmente, não aumentou a eficiência.

(P.S. – este texto é uma resposta em tom irónico ao original, publicado aqui no dia 03 de novembro de 2019.)

Autor:
4 Novembro, 2019

Pedro Ramos estuda medicina. Tem interesse nos temas da saúde, política e sociedade, e na forma como essas vertentes se relacionam. Nas horas vagas vê filmes, tira fotografias e escreve poemas.

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