(Este artigo é a primeira parte da cobertura sobre o recém iniciado processo de Impeachment de Donald Trump. Podes ler a segunda parte aqui.)
O anúncio da abertura de um inquérito formal de Impeachment contra o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, feito esta terça-feira (dia 24) pela presidente da Câmara dos Representantes marca o início de um longo processo, desencadeado por um instrumento raras vezes usado na história do país. O anúncio da democrata Nancy Pelosi ocorre depois de meses de pressão de algumas alas do Partido Democrata, e foi motivado pela acusação de que Trump terá tentado pressionar o recém eleito Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy, a investigar o ex-vice-Presidente Joe Biden. Importa sublinhar que Biden lidera as sondagens de intenção de voto do lado democrata para a eleição presidencial do próximo ano e que, caso seja escolhido como candidato do partido, irá enfrentar Trump nas urnas.
Mas do anúncio de um processo de Impeachment de um Presidente dos Estados Unidos da América à sua destituição vai uma grande distância e um caminho bastante sinuoso. O Impeachment é um julgamento político. Serve para o Congresso, ramo legislativo da democracia norte-americana, declarar que o chefe de Estado e de Governo não tem condições para se manter no cargo. Mas tal exige a aprovação das duas câmaras do Congresso, a Câmara dos Representantes e o Senado. E se na Câmara os democratas são maioria, o Senado é dominado pelo Partido Republicano, o que reduz as hipóteses de o Presidente (também ele republicano) ser mesmo condenado.
Como funciona afinal este processo de destituição presidencial nos Estados Unidos, qual a possibilidade de ele se concretizar mesmo e o que motivou a abertura do inquérito? Em baixo tentamos esclarecer tudo o que se sabe até agora sobre este caso que, ainda que com um desfecho totalmente incerto, deverá agitar bastante os mercados e cena política nos próximos meses e terá certamente impacto na popularidade de Trump e, por consequência, nas eleições do próximo ano.
O que motivou a abertura do processo de Impeachment?
Num telefonema no passado mês de julho, o Presidente norte-americano terá pedido ao líder ucraniano que o ajudasse numa investigação contra o democrata Joe Biden e o seu filho Hunter, que se tornou membro do conselho da empresa ucraniana de gás natural Burisma, na altura em que o pai era vice-presidente dos Estados Unidos. Além de fazer o pedido, Trump terá, alegadamente, bloqueado um pacote de ajuda financeira de 400 milhões de dólares (+/- 247 milhões de euros) para as Forças Armadas da Ucrânia dias antes, como forma de pressão sobre Zelenskiy em prol da investigação.
As acusações contra Trump foram feitas por um agente da inteligência americana, cuja identidade não foi revelada, mas que terá ouvido a conversa dos dois líderes e contado tudo numa reportagem do Wall Street Journal. A comissão de Informações afirma que a fonte que denunciou a manobra ucraniana está disposta a depor sobre o caso no Congresso, um desejo dos deputados democratas que apoiam o Impeachment, mas, por enquanto, a sua revelação foi suficiente para levar Nancy Pelosi a tomar a decisão de abertura de um inquérito.
Assim que saiu a notícia, Trump e a Casa Branca negaram as acusações de irregularidades na conversa com o Presidente ucraniano. O líder norte-americano considerou a abertura do processo de Impeachment uma “caça às bruxas” e prometeu que a transcrição da conversa telefónica com a Ucrânia seria divulgada o quanto antes. Os detalhes sobre o controverso telefonema chegaram ontem, quarta-feira, e mais do que ajudar o caso do Presidente norte-americano, confirmaram as acusações que lhe foram imputadas.
https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1176559970390806530
De acordo com a transcrição publicada pelo próprio site da Casa Branca, Trump pediu mesmo ao Presidente ucraniano para investigar Joe Biden, como “um favor”. O Presidente norte-americano insistiu com o seu homólogo ucraniano para que entrasse em contacto com o attorney general (ministro da Justiça norte-americano, com funções também de procurador geral) William Barr para tentar iniciar uma investigação sobre corrupção relacionada com a actividade de Joe Biden na Ucrânia, quando o ex-vice-Presidente era o principal interlocutor da Casa Branca na Ucrânia, após a violenta repressão ordenada pelo presidente Viktor Ianukovich, em 2014, e a invasão da península da Crimeia pela Rússia.
“Fala-se muito do filho do Biden, que o Biden travou a investigação. Há muita gente que quer descobrir [o que aconteceu], por isso tudo o puder fazer para ajudar o attorney general seria óptimo. Biden andou a vangloriar-se que travou a investigação, por isso seria óptimo que pudesse investigar… parece-me horrível”, lê-se no resumo da conversa, que não é uma transcrição rigorosa — as conversas entre presidentes não são gravadas, apenas é feito um resumo do que foi falado.
Durante a conversa, Trump não fez qualquer referência ao pacote de ajuda financeira à Ucrânia que tinha sido suspenso uns dias antes. Já Zelenskiy terá garantido cooperação e dito que o próximo procurador-geral ucraniano, que começa a trabalhar desde Setembro, será “100% uma pessoa” da sua confiança e que “Ele ou ela vai analisar essa situação, especificamente a empresa e o assunto que mencionou.”
A chamada não mostra Trump a oferecer qualquer contrapartida explícita quando pede à Ucrânia que investigue os Biden, mas o Presidente norte-americano pede o tal “favor” a Zelenskiy imediatamente após o chefe de Estado ucraniano mencionar que a antiga república soviética precisa de mais ajuda financeira americana para combater a agressão russa. Trump é ainda ouvido a enfatizar a ajuda consistente dos EUA ao país e a sugerir que o apoio norte-americano não tem sido correspondido — os Estados Unidos têm apoiado a Ucrânia no combate aos separatistas pró-russos na zona leste do país.
Segundo o The New York Times, para muitos democratas bastaria a pressão sobre Zelenskiy para justificar o Impeachment. Mas fazer depender o pacote financeiro de apoio à Ucrânia da ajuda numa investigação com a finalidade de obter ganhos políticos internos seria ainda mais grave.
https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1176848267759509504
De acordo com a CNN, a denúncia do agente da Inteligência foi entretanto desclassificada como secreta e pode vir a ser divulgada esta quinta-feira. O documento com a denúncia, que terá cerca de 10 páginas, foi entregue na quarta-feira à tarde no Capitólio, dando aos legisladores um primeiro olhar sobre a acusação que levou os democratas a iniciar um inquérito formal de Impeachment. No mesmo artigo, a CNN cita vários democratas que tiveram acesso ao documento, que o consideraram “perturbador” e referem que a denúncia “reforça as preocupações”. “Depois de ler os documentos, estou ainda mais preocupado com o que aconteceu do que quando li a transcrição da conversa”, disse o líder do partido no Senado, Chuck Schumer.
Desde o anúncio de abertura do inquérito que vários democratas têm acusado a Casa Branca de não querer divulgar a denúncia da fonte. O deputado da Califórnia, Eric Swalwell, membro dos comitês Judiciário e de Segurança da Câmara, disse à CNN, que o director interino do Serviço de Inteligência Nacional Joseph Maguire está a impedir os legisladores de ver o relatório completo.
Durante uma entrevista conjunta em Nova Iorque – com nada mais nada menos que o próprio Zelenskiy que, numa coincidência (in)feliz, acabou por ter um encontro marcado com o homónimo norte-americano nos dias em que rebentou o escândalo que envolve ambos –, Trump subestimou o significado da denúncia, alegando que o denunciante é partidário e que as suas conversas com líderes estrangeiros são “apropriadas”. Num tweet, mais tarde, o Presidente dos Estados Unidos escreveu que já informou os republicanos da Câmara que quer total transparência na divulgação e tratamento das informações.
(Este artigo é a primeira parte da cobertura sobre o recém iniciado processo de Impeachment de Donald Trump. Podes ler a segunda parte aqui.)