Uma pequena mulher sentada numa igualmente pequena cadeira virada para o mar. Esta foi a primeira imagem acedida neste 72º Festival de Cannes, que após a feira das vaidades que foi, como é habitual, o tapete vermelho desenrolado até ao Grand Theatre Lumière, Agnès Varda faz a sua aparição. Curiosidade, a palavra “aparição” é aqui adequada, porque existe algo de veneração neste momento, não só a uma cineasta, como também a uma memória de Cinema, a experiência coletiva defendida por Alejandro G. Iñarritu … mas já lá vamos.
Quanto ao espírito, este é extraído do documentário Varda por Agnès, onde a realizadora que faleceu no passado mês de março, é vista de costas voltadas para o público para dar lugar a uma cadeira vazia posicionada a meio palco do Cinema do Palais. Foi só um truque de edição, sendo a imagem de um vulto vivo e animado a celebrar a sua própria criatividade a ser sobreposta pela vazio, isto, perante a alguns dos nomes mais sonantes da indústria do chamado world cinema.
Todo este gesto de recordação é quase como um espectro metafórico de uma das guerras prioritárias deste Festival nos últimos tempos. Sim, falamos da Netflix, como foi mencionado em jeito de stand up comedy pelo mestre de cerimónia, Edouard Baer (novamente a repetir o estatuto), dessa disputa entre exibidores franceses e o saudosismo de Thierry Frémaux que tentam fazer frente à febre do streaming e à produção exclusiva.
Porém, o que está em causa não é se o Cinema “Morreu” ou “Evoluiu”. O que está em causa é o facto de enquanto discutirmos formatos, vai se perdendo os “santos” das nossas jornadas cinéfilas que são agora convertidos em memórias, ou no pior dos casos, meras citações.
Seguindo o registo de homenagem, Agnès Varda sucede a Anna Karina no ano passado. Cannes não quer que os últimos redutos do legado cinematográfico morram no vasto eco do esquecimento. E é nisso que tenta induzir nestes espectáculos de abertura com apelo à emotividade, mesmo que o público deste tipo de cerimónias pouco queira saber de História do Cinema, ou de maravilhas escondidas na Sétima Arte. Como disse, é a feira das vaidades, ignorando o show off que se assume como tiros falhados, e – por sua vez – abraçando uma espécie de hipocrisia.
Varda fez cinéfilos chorar, o seu toque “acriançado” de quem possuía uma imensa energia de viver, e registando essas vivências com a sua câmara. É na sua sombra que o tributo exercido pela também belga Angèle, cantando «Sans Toi», música que integrou uma das célebres obras de Agnès – Cléo de 5 à 7 (1962) – parece-nos pouco.
Texto de Hugo Gomes, em Cannes
(Nota: este texto foi originalmente publicado no c7nema, um dos mais antigos sites de informação, opinião e crítica de cinema em Portugal, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)