A primeira grande lição do Profjam

A primeira grande lição do Profjam

8 Março, 2019 /

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Encontrámo-nos no seu estúdio, na periferia de Lisboa, para uma conversa descontraída e casual entre a audição faixa a faixa do seu novo disco, #FFFFFF.

Bernard Shaw, escritor e ensaísta irlandês, dizia que o maior pecado que se pode cometer para com os nossos semelhantes não é odiá-los mas sim tratá-los com indiferença. A mesma ideia viaja na sabedoria popular e, se quisermos, marginal, sobre a forma de dicas menos polidas mas que sublinham a ideia, de que o desprezo é a maior forma de desconsideração sobre alguém. Por esse prisma, o Mário, habitualmente conhecido como Profjam, tem muito poucas razões de queixa. Desde de que teve direito aos seus primeiros minutos de fama, na longínqua Liga Knockout, que se tornou um nome ao qual é impossível ficar indiferente. As opiniões dividem-se, e foi para as consubstanciar — sem a pretensão de as mudar — que fomos até ao seu estúdio conhecer o artista por de trás da obra, e a pessoa por trás do artista.

Se os factos biográficos se descobrem facilmente numa pesquisa do Google, e qualquer um pode saber que o Prof se chama Mário Cotrim e que nascido a 6 de Junho de 1991 tem, à data, 27 anos, e se a grande parte do que pensa podemos encontrar expresso nos centenas, se não milhares, de versos que escreveu ao longo da sua curta mas profícua carreira, foi sobre as entrelinhas que quisemos saber mais. Encontrámo-nos no seu estúdio, na periferia de Lisboa, onde não chega o frenesi das buzinas nem as partículas de monóxido de carbono largadas pelos milhares de carros que atravessam a capital lisboeta diariamente, para uma conversa descontraída e casual entre a audição faixa a faixa do seu novo disco.

Foi por aí que a conversa começou, ainda antes da música tocar, mas sempre com tendência para descambar. A título de exemplo, descobrimos que o nome do disco vem do tempo do Mário antes do artista, dos tempos em que andou pelo Instituto Superior Técnico a estudar Engenharia Informática. #FFFFFF não é uma hashtag, é um código hexadecimal e, por acaso, uma referência a essa altura que sem se ter tornado um marco biográfico, deixou marcas na personalidade do jovem, moldando inevitavelmente o seu percurso. Ao ponto de saber o que é um cálculo hexadecimal.

“Fui com o contrário de coragem mas quando cheguei lá pensei que aquilo não era o que eu queria fazer. Deu-me bué, conheci professores mesmo fixes, ensinaram-me a ter rigor no pensamento e a compreender a lógica. A treinar o que estou a dizer. Curti tudo menos a parte de não conseguir fazer.”

Depois da escuta do primeiro tema do disco foi mais ou menos inevitável que a sua mudança fosse o tema seguinte. A faixa “À Palavra”, com uma referência directa ao clássico Cleaning Out My Closet e uma toada claramente confessional, são o primeiro sinal de que estamos perante um disco mais profundo do que o pré-conceito generalizado podia fazer esperar. Na faixa, Profjam explora os paradoxos inerentes à sua carreira e, sem meias palavras, acaba por explicar a sua trajectória desde os tempos à capella na Son of a Gun até este disco carregado sem pudores de auto-tune; isto é, desde os tempos em que alimentava o vício com o guito dos pais até à hora de sustentar o seu sonho de ser músico e fazer carreira.

Sem se distanciar do que critica e sem apontar o dedo a terceiros, Profjam começa com uma espécie de auto-avaliação que revela aos ouvintes mais atentos um jovem adulto introspectivo e a lidar com os mesmíssimos dilemas de muitos outros. A luta pela independência, dos pais e dos vícios, e a procura incessante por um lugar próprio conduzem-no por uma reflexão mais ampla e densa sobre o sistema e a forma como cada um o compõe por muito que se afaste na sua retórica ou nas suas líricas.

“Não é tanto justificação, é mais para fazer entender que eu estou a ser genuíno com aquilo que eu estou a achar, se calhar não ia ser genuíno se tivesse que me ficar por certos pontos de vista. Aprendi que certo tipo de convivência e de estilo de vida, o ‘querer ser um filósofo’ implica que alguém esteja a pagar por isso.

É a Marlboro que está a fazer dinheiro ou somos nós que estamos a gastar dinheiro na Marlboro? Às vezes parece que fica a ideia de que ninguém está a fazer nada… mas estamos todos! O sistema é composto pelas pessoas.

É como o George Carlin diz, nós não precisamos de melhores políticos, nós precisamos de melhor público porque é do público que vêm os políticos.

Parece que temos de estar sempre a dar aquela de ‘está tudo certo, os outros é que estão mal’ porque é isso que conquista a empatia das pessoas. Com isso parece que logo na base deixas de ter um discurso verdadeiro. Incluíres-te na crítica é uma coisa que é boa; tudo isto faz parte da minha vida, não tenho vergonha e… pá, é a verdade.

Prefiro uma verdade feia do que uma mentira bonita – se calhar podia sentir-me melhor se andasse aí um bocado à toa mas ainda bem que já consegui um rumo. Tenho a minha música, está a funcionar, está na estrada.

Ainda para mais parece-me que as pessoas não estão só atrás da música, estão atrás da ideologia. Muitas vezes oiço coisas e penso que as pessoas não estão a ouvir pela qualidade musical mas por um certa mensagem, por ser ‘anti’; eu fico tipo ‘fica aí na boa que eu estou a tentar ser o mais sincero possível comigo ao longo da vida’.”

Da auto-avaliação era previsível que passássemos para as comparações ou, melhor dizendo, as inspirações, quer em termos estilístico seja em termos pessoais. À cabeça surgia-me o nome de Kanye West pela vontade expressa de ser uma voz heterogénea no panorama mediático e pelo à vontade em explorar texturas sonoras como o 808 ou o já mencionado auto-tune. Se a parte musical foi rapidamente refutada pelo Prof, a sua forma de estar na vida deu que falar.

“O Kanye não é uma grande inspiração a nível sonoro, mas inspira-me a maneira dele ser imprevisível. Ele é o gajo que menos quer saber, sendo o gajo que mais quer saber. Ele é super emocional sobre aquilo que diz e faz. Se ele acha uma coisa sobe ao palco e diz. Até tenho pena que ele tenha desaparecido de cena, parece que há um complô permanente para silenciar quem quer dizer alguma coisa diferente. ‘Falas mas tens de falar desta maneira’ e eu não curto muito isso.

Parece que todos os cantores e actores partilham a mesma agenda e mesmo que seja só para desafiar as mentalidades, gosto disso.

Se pensarmos, mesmo o humor pode ser uma forma de mostrar o possível mesmo que seja por absurdo.”

A quarta faixa fez a conversa mudar radicalmente. O tema é explícito, bastante relatable e a sua abordagem é tudo menos o que seria de esperar pelo que o interesse era óbvio. “Na Zona” é uma reflexão sobre vícios que, sem cair no moralismo, contradiz mais uma vez o preconceito de que o rap (e especialmente o da Think Music) se foca na promoção desse estilo de vida. Na primeira pessoa, Profjam narra algumas situações comuns no quotidiano de muitos jovens mostrando de dentro para fora como as atitudes repetidas acabam por condenar à letargia quem as pratica — sejam consumos ou abstenções porque como diz numa das faixas anteriores “vícios todos temos até o de não ter vício”.

“A cena é ‘keep checking yourself’, a maior parte das pessoas não pensa nisso porque é uma coisa que faz naturalmente mas a soma de todos os dias é um vício. Eu não quero parecer preacher; isto não é a minha única visão sobre determinada coisa, é o meu diálogo interno.

É fixe que o pessoal meta os fones e incorpore a história mas isto é a minha verdade; Se as pessoas se identificarem, brutal, se ajudar um puto que está, por exemplo, a entrar para a faculdade. Tenho uma visão para esta faixa: sou eu em puto ir à bomba de gasolina buscar litrosas e imaginar-me a pôr este som de outro artista e a despertar-me uma mudança positiva.

Eu conheço o mundo da droga, de todo o tipo, das raves às ganzas na esquina e penso que se não for uma pessoa que tem efectivamente contacto com isso a falar sobre isso ninguém vai ouvir. Se for, sei lá, uma senhora de uma igreja a dizer que a droga é má, a mensagem não passa. Agora se for eu a dizer ‘mano, eu tive uma vida como a tua, ou parecida, e senti isto e acho que tu também sentes’.

Mas eu também defendo que consumir drogas tem benefícios, só não gosto daquela cena que às tantas já é ‘fumar ganzas cura tudo’. Há outro tipo de drogas e vícios que ajudam nisso, como o trabalho e o amor como está na barra. Fiz essa faixa para tentar desbloquear uma fase.

Por um lado apelar a essa mudança mas posso ser o gajo que a seguir faz uma faixa ‘bora fumar, vamo-nos drogar’ porque lá está não gosto de ser só uma cena, dar só um lado porque tudo tem um tempo.

Não podes estar sempre a dar o mesmo ângulo, todos temos contradições e a minha luta com este disco também é essa: mostrar que com os dois lados és mais equilibrado. Fumar ganzas não é a melhor cena, nem a pior, na verdade é uma malha dos dois.”

“À Vontade” é uma dos faixas mais marcantes do disco, seja pela temática e pela dedicatória óbvia à sua mãe, quer pela presença única no disco de um outro convidado nas rimas. A voz rouca de Fínix MG transporta a sonoridade do disco para uma zona do espectro onde este pouco se situara até então e, por oposição, leva-nos à eterna discussão sobre a aceitação do público a novas sonoridades, ou a novos estilos, e sobretudo à conotação que se faz da música mais contemporânea a uma certa superficialidade. Para responder, Profjam foi até um dos nomes que se tornaram clássicos na tuga na última década e deu o exemplo de NGA, que durante muitos anos viveu sobre o preconceito de só dizer porcaria quando um mergulho no seu trabalho nos mostra uma obra mais profunda.

“É o que eu não percebo na música, parece que todas as músicas têm de ser a mesma coisa — não se aceita que haja uma música que é para te foderes todo, uma que é dedicada a uma pessoa, como eu acho que é suposto a música ser.

Parece que agora se tu não dizes ‘sou real e verdadeiro’ e criticas o sistema em todos os sons, já não és real e verdadeiro e já não críticas o sistema. Eu critico o sistema tal como critico as pessoas, não tenho é de o fazer sempre, não tenho de estar sempre agarrado a essa bandeira. E se calhar se fores ver de fora, eu estou-te a oferecer uma visão completa das coisas para tu conheceres. Se não estão dispostos a conhecer porque estou a usar um 808 ou auto-tune é porque estão a julgar um episódio em vez de ver toda a série.

Eu neste momento, por abraçar pessoas de todos os feitios, tenho uma posição que me permite falar destas coisas e saber que as pessoas me vão ouvir mais rapidamente, porque sabem que eu não estou contra elas. Agora se eu lhes estivesse a chamar estúpidos… A capacidade argumentativa também passa por saber ouvir. Se calhar o pessoal não está realmente interessado em mudar e não pensa no que traz a mudança. Eu acredito que seja através do amor, claro que é preciso ir dando umas chapadas tipo ‘acorda para a life’ mas não por sistema estar sempre a dizer “o mundo é uma merda, o mundo é uma merda”, se o mundo é uma merda então sai.

Eu chego a pensar que estas pessoas estão órfãs de alguma coisa, porque se eu for a uma pizzaria perguntar porque não fazem hambúrgueres, vão-me chamar maluco, quando há bué hamburguerias à volta.

Porque estão a pedir ao Lon3r Johny para ter uma mensagem e cantar sem auto-tune e não vão pedir a outro que já o faça? E isto também é válido no mundo político e social, parece que há exércitos que se formam para simplesmente transformar-te, desvirtuar-te e depois cagam para ti. Parece que o interesse é despir-te daquilo que tu és e que te caracteriza e depois quando mudas perdes o interesse.

Há pessoas que parece que só querem saber daquilo que não gostam. Nós em 24h tivemos tipo 500 comentários de malta a dizer coisas más, essas mesmas pessoas não vão fazer 500 comentários em sons que curtam a dizer ‘obrigado, manda vir mais’; por isso é que não acredito nessa missão interna quando alguém diz ‘isto é o que está mal no hip hop’.”

A sensibilidade do assunto traduz-se na extensão da resposta e a discussão rapidamente resvalou da sonoridade trappy, do uso de auto-tune, dos beats com 808 e o uso de melodias mais diversificadas para uma reflexão sobre a forma como o público português lida com as emoções no geral. Mais uma vez com a ressalva de que também esta crítica se pretende construtiva e não meramente ofensiva.

“Em Portugal acho que há uma certa diferença de legitimidade entre as emoções. As emoções negativas parece que são mais legitimas que as positivas. Uma música é mais real se for depressiva ou agressiva. Eu já tive nessa frequência um bocado mas a nível de verdade ou realidade, as emoções positivas são tão verdadeiras quanto as negativas. Quando tás contente, tás contente e nada te manda abaixo.

A música adaptou-se de uma forma estranha e o rap, como é mais falado, ainda sofreu mais com isso. Dá vontade de dizer ‘ouve a voz como se fosse um instrumento’ porque noutro estilo qualquer é o que tu fazes. Do nada por ser rapper parece que tem de ter tudo mas uma faixa não é sobre tudo.

Tu podes fazer uma música boa, pesada, cool a dizer “eu estou feliz” e ter profundidade ao explicares porque estás feliz.”

As dúvidas e a busca mais pelo significado do que pela verdade que agora se expressa neste disco não é propriamente uma novidade para quem conhece o trabalho de Profjam de uma forma mais próxima. O Mixtakes – que como o próprio nome indica se apresenta quase como um erro propositado – tinha sido a primeira grande tentativa de libertação de Profjam dos canones mais tradicionais do rap

“Quem percebeu a Mixtakes ou pelo menos percebeu a minha cena de estar na vida à procura do equilíbrio e sem julgar os outros vai perceber melhor este disco. É uma boa introdução ao meu estado de espírito, àquilo que eu sou. O Mixtakes foi um projecto que me libertou bué e o TBBT foi uma mudança para mim, sempre a partir a explorar bué beats e acredito que se o lançasse hoje mas actualizado tinha muito mais hype. Acredito que foi um projecto que fez ali um shift para pessoal da nova escola.

O Mixtakes e todo o processo soltou-me bué — deixei aquele flow mais comum para uma cena diferente. Ajudou-me bué do ponto de vista artístico, fora toda a cena de estar a viver sozinho em praticamente só falava sozinho. Tinha lá pessoal mas não os via muito. Estive um ano em Londres a viver sozinho e deu para pensar em tudo, de trás para a frente. Eu sempre fui introvertido mas ali ainda consegui mais silêncio exterior e espaço para reflectir, mais foco, sem tantas distracções.

Quando não consegues mudar o interior, muda o exterior e vais sentir resultados disso.”

À chegada ao final do disco, a conversa começou a ganhar um tom mais reflexivo e, a certo ponto, nostálgico. A imagem completa da viagem que acabávamos de viver ia-se compondo aos poucos no nosso imaginário e perante isso o Prof não conseguia esconder o orgulho que o Mário ia sentindo. Se a fruição de cada uma das suas faixas estava expressa na sua postura à medida que as íamos ouvindo, a conversa final em jeito de preâmbulo para a última faixa do disco deixava de se relacionar tão especificamente com cada faixa e cada tópico para ganhar contornos de balanço. Embalado na conversa sobre os discos anteriores, o Prof revelou o seu orgulho neste trabalho, um tema que também mereceu reflexão.

“Este disco é um orgulho para mim. Quero mesmo que o meu primeiro álbum seja marcante, nesse aspecto discordo da barra do Sam em que ele diz “porque fazer um álbum se ele dura meses”. No fundo se estás a dizer que a música é para ser eterna não tens de dar importância ao tempo que ele dura. Deve valer pelo que vale. Quando és artista, tu queres fazer álbuns, tu queres fazer algo mais composto e mais profundo do que um single.

Acaba por ser um contra-senso se disseres que não estás pelos singles e para bater e depois só lanças singles. Até porque as pessoas estão dispostas a ouvir, no caso do Sam as pessoas iam mesmo ouvir, eu quero ouvir. Acho que às vezes é preciso assumir um bocadinho mais as emoções e as ambições.

Tu seres vocal do teu orgulho é difícil, seja onde for, nas tuas conquistas ou mesmo nas tuas relações, as pessoas vão logo pensar “este gajo acha que é quem?”… e eu acho que sou eu.

As cenas mais difíceis as vezes saem-me com maior facilidade. Costumo comparar com jogos tipo Tony Hawk, fico bué tempo a loadar o special mas depois sai tudo. Depois fico com orgulho no meu trabalho, fico mesmo contente quando oiço estas cenas e penso que só eu é que podia ter escrito, não me soa a ninguém, mesmo que alguém me diga que não curte muito, eu já curti do processo. Em termos de artista, isso é uma sensação do caralho.”

A conversa foi longa e continuou em off com a troca de recomendações cinematográficas, Lars Von Trier para um lado e Yorgos Lanthimos para o outro; os preconceitos à chegada saíam derrotados assim como o plano para que a conversa fosse relativamente breve; os 30 a 45 minutos previstos foram 2h que passaram sem que déssemos conta. As perguntas sobre as faixas transformaram-se em introduções para reflexões e divagações sobre os tópicos do disco que hoje sai para as lojas físicas depois do lançamento exclusivo online. As músicas podem estranhar-se à primeira audição ou não agradar de todo mas com mais este registo escrito torna-se inegável a genuinidade do seu trabalho e a sua tentativa de o aprofundar partilhando experiências, dúvidas e emoções extremamente pessoais.

Autor:
8 Março, 2019

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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