Ainda sou do tempo em que tecnologia não eram só telemóveis

Ainda sou do tempo em que tecnologia não eram só telemóveis

25 Janeiro, 2019 /

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As novas gerações estão a ser seduzidas por telemóveis e tablets mas não aprendem como a tecnologia funciona.

Não queria começar este texto com um clichê, mas vai ter de ser: os jovens e as crianças de hoje em dia manuseiam tecnologia como provavelmente os seus pais não fizeram. É dar-lhes um smartphone para as mãos e ver como elas conseguem desenvencilhar-se com ele. Sabem que apps instalar e como instalá-las. Começam cedo a mandar mensagens no WhatsApp, a fazer stories no Instagram e a ver vídeos no YouTube. Mas será que a ‘nova geração’ percebe mesmo de tecnologia?

Recentemente estava no YouTube e cruzei-me com um vídeo de um youtuber português que considero da “1ª geração”, o Bruno Leitão. Ele partilhava que tinha estado a dar uma formação sobre YouTube a crianças com entre 9 e 14 anos, e que tinha ficado surpreendido com a pouca aptidão desses miúdos e miúdas perante um computador. Contava, a partir daquela sua experiência, que os mais pequenos sabem mexer em ecrãs tácteis mas têm dificuldade em trabalhar com um rato e teclado. Esse vídeo acabou por dar origem a esta reflexão.

Ao longo da última década, os smartphones tomaram de assalto os nossos bolsos e redefiniram a internet que conhecíamos. Recuando a 2011, altura em que deitei mãos no meu primeiro smartphone (um Sony Xperia com Android), estes eram alguns dos sites que mais usava: Hi5 e depois Facebook, MSN/Hotmail, Skype, YouTube…; tinha o Picasa Web Albuns para partilhar fotos com amigos; jogava no Miniclip e descarregava jogos por torrents; editava e fazia experiências no iMovie… por aí. Estas plataformas e aplicações – com as quais provavelmente muitos se vão identificar (se forem mais ou menos da minha idade, 25 anos) – eram sobretudo pensadas para serem usadas com rato e teclado. Muitas “tarefas tecnológicas” que desempenhava na altura e antes desta invasão dos ecrãs tácteis e das apps eram feitas à frente de computador. Mesmo tendo um smartphone.

Hoje faço muitas coisas num smartphone, até porque muitos dos serviços que usava evoluíram para essas plataformas, alguns inclusive começaram a ser desenvolvidos numa lógica de “mobile-first” em vez de “desktop-first”. Não foi só a web que se tornou móvel, mas muitas ferramentas informáticas no geral, incluindo jogos, ferramentas de edição, serviços vários (mobilidade, estafetas, reserva hoteleira…), por aí adiante… Essa mudança de paradigma teve implicações ao nível do design, ou seja, no modo como as interfaces são pensadas, construídas e desenhadas. Hoje a web e a tecnologia é pensada para ser “tocada” nos ecrãs pequenos dos telemóveis: isso implicou simplificar páginas, menus, botões, tipografias, conteúdo. Tudo foi tornado legível, user-friendly, optimizando o espaço disponível e contornando as limitações dos ‘novos’ dispositivos, escondendo os detalhes.

Apesar de a linguagem do mobile estar disseminada pela web de uma forma geral, é no smartphone que mais a sentimos, onde encontramos um ambiente mais fechado. Em vez de uma navegação por janelas e de um acesso imediato a ficheiros, somos confrontados com apps, que foram desenhadas para funcionarem como pequenos ecossistemas ou em conjugação com outras apps do mesmo proprietário. Tomando o Facebook como exemplo, se quisermos partilhar um conteúdo que encontramos no feed conseguimos fazê-lo dentro do Facebook e com outros ambientes do Facebook, como o Instagram ou WhatsApp, mas não de forma tão imediata e fácil com outros serviços. Também o YouTube tem vindo a desenvolver o seu próprio ecossistema; não podemos só receber no feed os vídeos dos youtubers que seguimos, mas também os seus posts e stories, e partilhar vídeos através do chat do YouTube com amigos.

O Android e o iOS têm, cada um, linguagens próprias ao nível do design, que. todavia, partilham uma série princípios. É por isso que a web mobile se tem tornado muito semelhante entre si: à partida se sabemos uma determinada app conseguimos entendermo-nos com outra, mesmo que seja de uma categoria completamente diferente; e podemos mudar de sistema operativo que a nossa adaptação visual vai ser mínima. Quer isto dizer que se entendemos como o feed e os comentários funcionam na app do Facebook, vamos perceber essas mesmas interacções na do Twitter; as stories são círculos no Instagram, mas também no YouTube; mandar uma mensagem no WhatsApp não é muito diferente de fazê-lo no iMessage.

A web mobile tende a acompanhar determinadas tendências no que toca à sua linguagem visual, como é exemplo a tendência vigente de “redução de complexidade”: títulos maiores e mais sobressalentes, ícones mais simples e universais; menos cor, mais branco. O resultado disto: o Instagram não é muito diferente do Airbnb, nem do Apple Music, nem do Medium, apesar de se tratarem de serviços distintos.

Num computador não estamos tão limitados como num smartphone. Podemos pegar num link copiá-lo e imediatamente colá-lo noutra janela, criar atalhos e automatismos, instalar ferramentas que personalizam a experiência e o sistema operativo como queremos. O Windows e o macOS, os dois sistemas operativos desktop mais utilizados, não têm tantas restrições como aquelas que Google e Apple colocaram no Android e iOS, respectivamente. Nestes dois, por exemplo, as apps que podemos instalar são aquelas que as empresas proprietárias previamente aprovaram e permitiram a distribuição através da Play Store e App Store. Se isso trás benefícios em termos de segurança, por exemplo, não deixa de ser um poder que as tecnológicas têm e os utilizadores não.

É certo que existem formas de contornar as lojas oficiais, principalmente no Android, mas não são tão fáceis e imediatas. Já o iOS apresenta um conjunto de restrições que a Apple impõe – limitações que a mesma empresa nunca colocou no macOS. Num computador temos mais liberdade. Num computador conseguimos facilmente aceder à biblioteca de música que está associada a uma determinada aplicação ou inserir um cartão de memória e arrastar as fotos para uma pasta; não estamos à espera de tirar uma foto e que ela apareça magicamente na app/nuvem. Num computador temos também mais poder, não aquela sensação de estarmos a ser seguidos por uma empresa para todo o lado, pois não é uma ferramenta tão inútil como o é um smartphone em offline.

O Leitão, que pertence à mesma geração que eu – tenho 25 anos –, partilhava no mesmo vídeo que teve um computador com os seus 8 anos e que, com os amigos, foi aprendendo a usá-lo, desde resolver vírus a formatações de discos ou crackar jogos. É uma história parecida com a minha, que, apesar de só ter tido um computador só meu algures em 2009, comecei cedo a mexer num rato e teclado e a explorar as entranhas do sistema operativo do Mac dos meus pais. Lembro-me de a certo ponto andar a modificar o código de apps no Xcode para as embelezar ou traduzir, de me aventurar em torrents e sites manhosos para instalar aplicações e jogos pagos (o software tornou-se freemium), etc.

Se tivesse nascido hoje, era bem provável que o meu primeiro contacto com a tecnologia tivesse sido através de um smartphone e não de um computador; talvez o meu primeiro equipamento tivesse sido um ecrã táctil e não um computador com rato e teclado. As crianças hoje em dia têm acesso a mais tecnologia, mas é a mais tecnologia fechada, não só porque a web tornou-se controlada apenas por meia dúzia de empresas, mas também porque os smartphones são ambientes mais controlados que os computadores dadas as limitações que as empresas que detém os dois sistemas operativos mobile impõem.

Saber como funcionar com apps não é igual a saber como funcionam as apps. Não é saber evitar vírus, formatar um disco ou crackar um jogo. Isto não é o equivalente a saber programar uma aplicação, mas são conhecimentos importantes na hora de resolver pequenos problemas ou de desenrascar soluções. São conhecimentos importantes do ponto de vista da literacia digital, que não tem a ver apenas com saber como procurar, usar e partilhar informação online.

As implicações sociais da tecnologia têm vindo a ser descobertas e questionadas, à medida que notícias, crónicas, reportagens, estudos… são construídas e publicadas, esmiuçando as práticas de empresas estabelecidas. Nem há muito tempo Snowden alertou o mundo para a vigilância massiva por parte de entidades governamentais; e no ano passado, ficámos a saber que uma empresa britânica teve acesso a uma base de dados gigante sem o consentimento dos utilizadores. A tecnologia e a internet trouxeram-nos muitos benefícios, mas também desafios: serviços gratuitos em troca de tracking/venda de dados/publicidade segmentada, privacidade e segurança, desinformação…

Se pessoalmente para os pais essas questões já são delicadas, tornam-se ainda mais importantes na hora de dar um smartphone ou outra peça tecnológica para as mãos dos filhos. Serão os ecrãs bons ou maus? Se calhar os pais devem preparar os filhos para o mundo digital, explicando-lhes como a tecnologia funciona e como a internet funciona. Ter uma conversa com eles, não “A conversa”, mas “A Outra conversa”.

Autor:
25 Janeiro, 2019

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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