Num mundo cada vez mais globalizado, as empresas e os serviços multinacionais disfarçam ou fazem-nos esquecer as particularidades de cada país e de cada regime político. A tendência dos internautas para subverter o meio e, por exemplo, fintar proibições através de VPN’s ou proxies é real e raramente concebemos a internet como espaço de fazer cumprir a lei local. Pelo contrário, o espaço público em linha é uma espécie de paraíso legal onde procuramos navegar na jurisdição que mais nos convém e onde dificilmente imaginamos um governo a exercer poder.
Contudo, com o evoluir desse mesmo ecossistema e o seu ganho de relevância do ponto de vista mediático começam a surgir as interferências ou, por outro lado, as exigências. No ano passado foi a Rússia que exigiu as chaves de encriptação da aplicação de mensagens Telegram mas os casos são mais comuns do que aquilo que nos apercebemos. Esta semana deu-se mais um, com a Netflix a retirar da plataforma um episódio de Patriotic Act em que Hasan Minhaj criticava o regime saudita, referindo-se especificamente à morte do jornalista Jamaal Kashoggi.
A empresa de base norte-americana, em comunicado, reiterou que defende a liberdade artística e de expressão e que só tornou o episódio inacessível na Arábia Saudita — convenhamos, provavelmente onde este seria mais relevante. Este tipo de argumentação revela a fragilidade da própria noção de globalização que se cria com multinacionais a dominar grandes sectores pela força da tecnologia. Nesse sentido a contestação à acção do Netflix foi rápida a fazer-se sentir com internautas, mais e menos famosos, a mostrarem-se desiludidos pela subserviência da empresa. É que para muita gente, o carácter transversal e quase universal destas plataformas é visto como um vector de disseminação dos valores do seu país de origem, algo que não coaduna com este tipo de reverência aos poderes locais em zonas o respeito pelos direitos humanos ainda é um mito.
Para além das referências ao homicídio de Jamal Kashoggi, o episódio tem ainda uma outra parte paradigmática em que Minhaj expõe os investimentos sauditas nas grandes empresas de Sillicon Valley. Numa sequência muito lúcida e, de certo modo, corajosa, Minhaj fala sobre as relações entre a coroa saudita e o banco japonês Softbank, que apresenta como veículo de investimento dos sauditas em empresas como o Slack, WeWork, ou a Uber. Segundo Minhaj, Mohammad bin Salman (MBS como é conhecido) terá investido perto de 10 mil milhões de dólares em empresas provenientes deste hub tecnológico em apenas 2 anos.
Apesar do desaparecimento do episódio da plataforma Netflix, o segmento continua disponível no Youtube e tem sido amplamente partilhado para que se torne viral e os sauditas possam ter conhecimento quer da sua existência, quer da sua proibição.
Netflix’s claim to support artistic freedom means nothing if it bows to demands of government officials who believe in no freedom for their citizens – not artistic, not political, not comedic. https://t.co/N24CY18kIK
— Sarah Leah Whitson (@sarahleah1) January 1, 2019