Nas eleições autárquicas de 2017 houve três assuntos em cima da mesa: turismo, habitação e transporte. Entre todos os debates e discussões surgiram alternativas mas pouco esforço se dedicou para perceber, na realidade, o que resulta do turismo. O que representa o turismo? Quais as suas implicações na habitação? Será um problema novo ou repercussões de decisões passadas? Sobretudo, será que Portugal e em específico Lisboa, têm saldo positivo nesta balança?
Fomos falar com Fernando Nunes da Silva para clarificar o panorama geral da habitação e o turismo em Lisboa. Fernando Nunes da Silva concluiu o doutoramento em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico (1992), onde também obteve a agregação na área de Urbanismo e Transportes (2000); esteve quatro anos na Câmara Municipal de Lisboa como vereador no pelouro de Mobilidade (2009-2013) e é actualmente professor catedrático de Estudos Urbanos e Planeamento Urbano no Instituto Superior Técnico.
Como em todos os fenómenos existe sempre um passado associado ao presente e o turismo não é excepção à regra. Para desenhar medidas para o futuro é necessário ter em conta os fenómenos e experiência do passado, tanto de Lisboa como de outras capitais europeias. Começando pelo início, para entender o que acontece hoje temos de recuar até ao século XX para perceber o estado de Portugal e a sua evolução (e talvez descobrir que este problema tem raízes bastantes mais profundas do que assemelha à primeira vista).
Portugal, a economia e o resto da Europa
Portugal, até meados do século XX, era essencialmente um país rural. Em 1950, 64,5% da população vivia fora de centros urbanos com mais de 10 mil habitantes. A contribuir para este cenário existia uma política económica protecionista do regime, que controlava com mão de ferro e limitava o investimento estrangeiro no país impedindo, dessa maneira, o desenvolvimento industrial de que o país carecia. “A política oficial era essa, aliás, Salazar dizia que não queria industrialização porque a industrialização significava operários e os operários eram comunistas”, diz-nos, entre risos, o Professor Fernando Nunes da Silva.
A história conhece um novo capítulo em 1960, quando Portugal, juntamente com o Reino Unido e os Países Nórdicos, funda a EFTA – European Free Trade Association. Num acordo altamente vantajoso para Portugal, Salazar consegue manter a sua política protecionista, ao mesmo tempo que os mercados ricos do Norte da Europa se abrem a Portugal. Com efeito, o impacto da criação desta união é tão significativo para a economia portuguesa, que o peso do comércio externo e das exportações que em 1938, era de, respectivamente, 18% e 6%, sobe para 41% e 15% (acima da média da OCDE) em 1973.
Em 1963, a produção industrial tinha ultrapassado, pela primeira vez na história, a produção agrícola. A juntar a este êxtase económico, dois fluxos populacionais atravessavam, nessa década, a Europa Ocidental: por um lado, trabalhadores do Sul que emigravam para Norte e, por outro, turistas do Norte que vinham passar férias ao Sul. Portugal não foi excepção. Efectivamente, em 1965, entraram em Portugal cerca de um milhão de turistas e, em 1966, saíram 120 000 emigrantes (sem contar com aqueles que abandonaram o país clandestinamente).
Estes movimentos populacionais influenciaram positivamente a economia de três modos: as receitas geradas pelo turismo, as remessas enviadas pelos emigrantes e o aumento dos salários, em consequência da diminuição em 25% da população activa. Posto isto, não é de surpreender que entre 1960 e 1974, Portugal tenha registado taxas de crescimento económico superiores às da média da Europa Ocidental e tenha chegado a ser qualificado pelo Banco Mundial como um dos grandes sucessos de crescimento do pós-guerra.
Pois bem, a acompanhar estes níveis de crescimento económico esteve também o crescimento da população urbana que, em 1950, nos distritos de Lisboa e Porto, significava 26,8% e, em 1970, era já 33,5% da população total. É por isso que Fernando Nunes da Silva nos diz que “a área metropolitana de Lisboa cresce sensivelmente 2% ao ano (…) no século XX não há conhecimento de países europeus em que as áreas metropolitanas tenham crescido tão rapidamente em 20 anos”.
Do problema do clandestino ao poder do Governo de Cavaco Silva
“É nessa altura que os esquemas habituais do tempo de Salazar, as chamadas casas económicas, as casas da Fundação Salazar não têm capacidade de resposta para isto. Os próprios projectos que tinham sido desenvolvidos na altura como, por exemplo, o bairro de Alvalade ou os Olivais em que a política era de mistura de classes [começam a ser insuficientes].” Com efeito, nestes bairros procurava-se criar várias tipologias que pudessem acomodar as diferentes classes, desde moradias para as classes altas a apartamentos de reduzidas dimensões para as classes baixas que incluíam os insolventes e as pessoas com baixos rendimentos.
Nesses bairros, “a ideia era: os que viviam aí eram os empregados das outras classes, as empregadas domésticas, as pequenas mercearias, as pequenas oficinas de automóveis. (…) Só que o problema era exactamente o mesmo: se virmos a percentagem do que era para essa população insolvente era muito reduzida comparando com o que era o total dos fogos. Portanto, não era possível continuar com isto, a solução que a população encontrou foi: barracas para um lado, para aqueles que eram muito pobres, e para quem ainda tinha alguma coisa, o clandestino“.
E foram, na verdade, estes os principais problemas ao nível da habitação na cidade de Lisboa durante a segunda metade do século XX. O clandestino, que “é uma construção em terreno não urbanizado e de uma forma ilegal” é explicado, em parte, pelas circunstâncias bastante lucrativas para ambas as partes, nas quais o proprietário vendia “o terreno entre 2 a 4 vezes mais caro que o valor agrícola mas sensivelmente entre 10 a 20 vezes mais barato que o mesmo valor urbano naquela zona”.
Era este, portanto, o cenário fértil em que florescia o clandestino, e foi este fenómeno que “absorveu praticamente um quarto do fluxo migratório para a área metropolitana de Lisboa entre 1960 e 1980”. O Sul do Tejo, em 1966, depois da construção da ponte, e o Pote d’Água, a norte, a partir de 1974/75, com os retornados do Ultramar, são dois exemplos flagrantes de extensas zonas de loteamento ilegal e que ainda hoje estão a ser resolvidas.
Não obstante, os esforços encetados pelo Estado Novo no âmbito da habitação no tempo de Marcelo Caetano procuraram, se não resolver, remediar este problema. Este esforço é sobretudo mais notório quando o regime assume que “o papel do Estado era apenas para as classes insolventes”, criando mecanismos como o Fundo de Fomento à Habitação (FFH) que se propõe construir mais de 50 mil fogos para habitação social ou congelando as rendas, o que, malogradas as boas intenções, acabou por parar o investimento no mercado de arrendamento.
No entanto, até à revolução de 1974, este foi mais ou menos o cenário. A partir daí, o Estado decidiu que “havia que capitalizar a banca (…) a seguir às nacionalizações e havia também que relançar a economia; o sector da construção civil e obras públicas é dos sectores que tem multiplicadores económicos mais fortes em Portugal” e, portanto, é o sector que mais se adequa a este tipo de intervenção por parte do Estado, que por esta razão promoveu o acesso ao crédito à habitação e à aquisição de casa própria.
Em parte por isto, mas também por causa de um acordo com o FMI que impossibilitava o Estado de se endividar, o problema dos clandestinos adensou-se ao longo da década de 1980, sendo que só em 1993 com o Programa Especial de Realojamento (PER), programa lançado por Ferreira do Amaral, Ministro das Obras Públicas de Cavaco, que apostava na construção massiva para realojamento e na articulação entre as autarquias locais e o poder central; o problema dos clandestinos e das barracas, considerado uma chaga social, foi realmente solucionado.
Em Lisboa, a pressão urbanística nas zonas ocupadas pelos clandestinos e o impacto social deste problema gritavam por uma solução imediata, pelo que, não é de surpreender o forte esforço encetado pela Câmara no sentido de realojar as 22 mil famílias que viviam então em condições precárias.
O endividamento da Câmara Municipal
A execução do PER revelou-se morosa – exemplo disso é a notícia de Abril de 2017 do jornal Público, dando conta de que na Área Metropolitana de Lisboa há cinco municípios que ainda não concluíram este programa – e exigente, absorvendo muitos recursos da CML particularmente no que respeita a encargos financeiro. De facto, “a Câmara, para poder aproveitar aquele financiamento [o PER] endividou-se de uma maneira brutal. Quando entra a crise económica [de 2008], e depois de uma má gestão de câmaras anteriores, a situação era de que a Câmara estava num aperto financeiro enorme a a capacidade de investimento era reduzidíssima“, o que condicionou a estratégia de reabilitação urbana. Sendo assim, esta estratégia passava por aplicar os recursos da Câmara em “habitação social e para habitação da população de menores recursos […] e apelar ao capital privado para reabilitar […] outros locais”.
Para tornar o investimento de capital privado mais atractivo, a Câmara “recuperava espaço público, dava isenções fiscais muito importantes ao nível do IMI, criava uma espécie de via verde para a reabilitação urbana do ponto de vista burocrático e https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativo“ e investia em “equipamentos de proximidade”, isto é. recuperava escolas, fazia creches, pequenos jardins, etc. Para além disso, ainda lançou o Programa Reabilita Primeiro Paga Depois, isto é, o património imobiliário da câmara era colocado no mercado e as “pessoas só pagavam a aquisição depois do património estar reabilitado e de começarem a receber rendas”.
“Essa era a estratégia da Câmara de 2007 até 2013 e que depois se prolongou.” Esta estratégia “justificou-se na altura”, só que a partir do momento em que o contexto económico da cidade começa a melhorar “e sobretudo já depois de começarmos a sair da crise económica e financeira […] a a partir de 2014 já há sinais nesse sentido a há dois erros nesta estratégia: o primeiro é que o património da Câmara era colocado no mercado sem qualquer tipo de restrição” e o segundo tem que ver com a necessária resposta à “grande procura orientada para o mercado turístico”, resposta essa que deveria ter feito “a Câmara automaticamente […] [mudar] a sua posição”.
Além disto, a EPUL, que tinha capacidade de intervenção no mercado e constituía uma solução relativamente ao alojamento da classe média, foi encerrada no final de 2014. “E, portanto, no fundo [a Câmara] ficou completamente na mão do mercado especulativo e, em vez de ter reorientado a sua política […], fez o contrário, quis beneficiar deste boom imobiliário para também ganhar com isso.”
Boom turístico – quando e porquê?
“O boom turístico tem a ver fundamentalmente com duas ou três coisas.” “Os grandes investidores estrangeiros aqui [em Portugal] eram espanhóis, ingleses ou nórdicos”, mas actualmente verifica-se um aumento de investidores franceses e alemães. Estes novos investidores, que no passado faziam as suas férias no norte de África, abandonam esses mercados turísticos após o período de instabilidade política vivido nessa zona, a chamada Primavera Árabe, entre Dezembro de 2010 e Dezembro de 2012.
“A Itália e a Grécia já tinham turismo muito forte e portanto os preços muito mais altos, nós, [Portugal], tínhamos fundamentalmente o Algarve e portanto esta zona de Lisboa é uma descoberta.” Com os preços comparativamente mais baixos que outras zonas turísticas, Lisboa, dadas as condições do mercado turístico nessa altura, torna-se magnética para investidores que até então nunca haviam olhado para a cidade como potencial destino turístico.
Aliado a isto tudo verificou-se que, desde 2009 em diante, os indicadores do turismo mundial subiram, e Portugal não ficou de fora dessa tendência. De acordo com dados do Banco Mundial, o número de pessoas a fazer turismo fora do país onde residem subiu aproximadamente 50 milhões por ano entre 2009 2 2015. Associado a este aumento, começou a tornar-se mais popular um novo tipo de alojamento, a chamada hospedagem domiciliar, cuja face mais conhecida é a plataforma Airbnb, fundada em 2008.
Um dado interessante é-nos dado pelo número de pesquisas feitas em Portugal do termo “airbnb” na plataforma de pesquisa Google. Desde 1 de Janeiro de 2013 até 31 de Dezembro de 2016, desconsiderando as variações sazonais, houve um aumento consistente da popularidade do termo o que, de um modo mais ou menos seguro, podemos correlacionar com o aumento da utilização da plataforma no país.
Esta inferência inocente é reforçada pelo estudo de mercado realizado pela plataforma BnbLord, que indica que houve um forte crescimento do número de anúncios criados em Lisboa. Em 2012 existiam apenas 794, já em Março de 2017, 12 mil anúncios criados. E este tipo de arrendamentos “é de tal modo rentável que acabam por ser edifícios inteiros a ser reabilitados para serem colocados no mercado como apartamentos” de arrendamento de curto prazo ao invés do arrendamento de longo prazo.
A resposta ao boom
“Se a Câmara tivesse antecipado as consequências do [aumento da pressão turística em Lisboa] – e havia condições para isso porque isto já tinha acontecido em outros países” – não teríamos chegado à situação actual. Particularmente, se se tivesse aproveitado os dividendos resultantes da “venda dos terrenos do aeroporto ao Estado”, em 2012, e da introdução da taxa turística em 2015, que deram origem a “uma folga de investimento” teria sido possível “que a Câmara até recuperasse uma parte do seu património para entrar no mercado a criar uma alternativa”. Contudo, “a Câmara de Lisboa não fez nada, pelo contrário, incentivou e foi um bocado de um liberalismo total […] e portanto aí as consequências foram graves”.
Mas “eu acho que as últimas eleições foram muito importantes porque todos os partidos […] perceberam que estamos numa situação crítica e, neste momento, a Câmara já está a pôr em cima da mesa programas que vão contrariando esta tendência”. “Por outro lado, eu também penso que há uma maior percepção por parte também do Governo que é preciso alterar o sistema fiscal relativamente ao alojamento local e favorecer a isso é uma das coisas que tem vindo a ser dita pelo primeiro ministro a favorecer os arrendamentos de longa duração. E portanto a partir daí eu acho que vamos começar a criar condições para o próprio mercado ser mais diversificado.” Contudo, “vai demorar bastante tempo. Isto é uma questão para uma década”.
“Portanto, eu acho que aqui os benefícios são inegáveis, não se tinha tido a reabilitação que houve, não se tinha tido o emprego que houve, não se tinha tido o crescimento económico que houve se não fosse isso, isso é indiscutível, a questão é de diversificar e sobretudo não deixar que, em particular nas cidades, isso se transforme no uso dominante da própria cidade. E há maneira de o fazer, quer dizer, com medidas restritivas de um lado, com medidas alternativas por outro, é possível. Agora, são opções.”
Neste momento, há dados que indicam uma clara intenção por parte da Câmara Municipal de Lisboa no sentido de resolver o problema da sustentabilidade do turismo na cidade. Prova disso é a declaração de intenções da autarquia no acordo firmado entre PS e BE, onde se menciona, entre outras coisas, que se irá “propor alterações ao enquadramento legal do Alojamento Local para que o actual processo de registo dê lugar a um processo de autorização com critérios a definir pelos municípios”, que se irá “iniciar de imediato o estudo técnico para definição de capacidades máximas de alojamento local por zona da cidade para assegurar a multi-funcionalidade dos bairros, em particular, nas zonas históricas” e que se irá “criar um gabinete municipal de fiscalização do Alojamento Local e Turismo Habitacional, que actue de forma rápida perante queixas de moradores e retire licenças em casos de comprovada infração com reincidência”.
Embora o cenário neste momento não seja tão animador como poderia, a verdade é que a história de Lisboa mostra que esta já enfrentou várias crises de flutuações populacionais; e, embora tenham havido muitas mais boas intenções do que acções concretas para as mitigar, a acusação que amiúde se ouve de que a cidade não soube reagir a essas crises é, embora próxima da realidade, falsa. Quando muito, na maioria dos casos, a reação foi retardada e, nos piores, pecou por ser fora do prazo.
Texto de: Afonso Anjos, Francisco Azevedo e Miguel Ferreira
(Nota: este texto foi originalmente publicado no Diferencial, jornal dos estudantes do Instituto Superior Técnico, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)
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