Swipe, borboletas, burnout — Notas para pensar o dating moderno

23 Outubro, 2025 /
Ecrã de computador mostrando código binário '010101010' e um coração desenhado a vermelho.
Numa altura de questionamento e reflexão sobre o futuro das relações e o papel das dating apps, Rebeca Verde, criadora do projecto Insegurança Social, partilha connosco algumas notas essenciais à compreensão das mudanças neste universo.

Lembro-me da primeira vez que senti que um ecrã podia ser sexy. A minha mãe sorria enquanto teclava, tocava devagar mas com força em cada tecla, como quem marca presença numa pista de dança. 

Quando saía do computador, parecia enfeitiçada, e fumava um cigarro como se tivesse voltado da festa em que toda a gente queria estar hoje. Eu perguntei o que é que fazia, ela disse-me que falava com pessoas num chat. Para o meu eu criança, aquilo parecia magia: uma rua inteira de pessoas que viviam dentro da máquina. 

Claro que isto foi muito antes de sair de casa sem telemóvel se tornar estranho, antes do tempo de ecrã ter virado preocupação comparativa e antes do ghosting ser uma dor tão dramaticamente relacionável. 

Nessa altura, enquanto eu descodificava a relação da minha mãe com a caixa mágica em cima da mesa, ainda cabiam muitos sonhos no digital.

Demasiado real

“O ciberespaço oferece a possibilidade de explorar a multiplicidade do self, desafiando categorias fixas de identidade e desejo.”

Escreveu Sherry Turkle em Life on the Screen, em 1995. Há trinta anos, no momento da democratização da internet, era essencial sublinhar, sobretudo para corpos dissidentes e marginalizados, esse espaço improvável onde cabia o que não cabia cá fora, um caminho digital onde novas formas de expressão identitária e de ação política se tornavam possíveis.

Estudos nesta área da cibercultura desenvolveram-se muito, aliás, com contributos que a tornaram mais social e crítica do que apenas tecnológica. Foi, aliás, a abordagem feminista que cedo mostrou que computadores e códigos nunca são neutros e carregam sempre marcas de poder, género e cultura.

O ciberfeminismo também abriu caminhos importantes para pensar a tecnologia como uma oportunidade, incluindo para práticas de erotismo, desejo e criatividade, novas formas de sociabilidade e expressão sexual que esperavam florescer.

Hoje, estudos confirmam: a tecnologia mudou radicalmente a forma como nos relacionamos e nos percebemos. Videochamadas, comunidades digitais e apps abriram espaço para dar voz ao que era invisível, nomear urgências e atravessar fronteiras de tempo e espaço. 

Mas mesmo com todas essas formas de nos reinventarmos online e de conhecer o outro, o ser humano aborrece-se. E é quase irónico que, na tentativa de voltar a estar mais cá fora, a realidade possa parecer ainda mais anónima e vertiginosa, quase como tivesse sido comprimida pelo ritmo digital. 

No dating não é diferente. Olhando para o estado do dating depois das apps,  pergunto: ainda sabemos segurar um olhar?

Dating app já não bate

Dizem que na internet nada se perde. Só as boas reputações parecem escapar a essa regra— tanto as nossas como as das próprias plataformas.

Se houve um tempo em que notificações davam borboletas na barriga, hoje a maioria dos utilizadores de smartphones fala de ansiedade, até mesmo quando [a notificação] vem de alguém que não nos importaríamos de beijar.

O dating digital não é novo. Também no ano de 1995, o primeiro site dedicado a conhecer pessoas à distância para fins românticos, o Match.com, foi um sussexo. Mas foi em 2012 que o Tinder transformou radicalmente a experiência do dating virtual : bastava deslizar para escolher e “conhecer” alguém, com a mesma rapidez com que hoje pedimos um Uber. Essa lógica de acesso imediato fez explodir um dos setores mais promissores da economia digital: as dating apps

Em 2009, a Apple registava a frase “There’s an app for that”. Hoje, dezasseis anos depois, o nome desse fenómeno é outro: app fatigue, o cansaço de viver rodeados de ícones e notificações que, na verdade, só são úteis se subscrevermos os sete dias grátis (entenda-se aqui “grátis”, já que fica sempre aquela sensação de dever uns cêntimos a alguém).

No dating, esse desgaste ganha uma dimensão própria: dating burnout, a exaustão de procurar ligação e acabar a colecionar mais vazios.

Não surpreende: pôr amor em garrafas nunca poderia ser tão fácil. Ao reduzir os encontros a lógicas de consumo e transformar a intimidade em algo quantificável, este romance à la carte aproximou-se, nestes últimos dois anos, do seu prazo de validade.

Love Games

“Touch, Touch, Touch. Touching is good” — Nintendo, 2005

A experiência do íntimo através de aplicações, em que vamos escolhendo as personagens que achamos poder fazer parte da nossa história, leva-nos a uma forma de gamificação. É um jogo de escolhas, recompensas e microinterações — deslizar, receber notificações a dizer que “alguém está de olho em nós”, ouvir o som de um match ou aproveitar a “oportunidade de voltar atrás”. Possibilidades desenhadas para nos prender, como na waiting room dos Sims.

Neste ambiente gamificado para o encontro, o objetivo tende mais a explorar o desejo humano de ser escolhido do que a aprofundar a conexão humana.

Filtros e critérios de atração, como altura, localização ou aparência, reduzem a complexidade das relações a métricas quantificáveis. Já o ritual repetitivo de nos pormos à mostra cria versões curadas de nós mesmos e dos outros — tornando quase inevitável que, mais cedo ou mais tarde, nos sintamos esgotades e desconectades.

Esta desumanização do amor, ultimamente muito comentada pelos utilizadores, vai além da gamificação e da capitalização do desejo. Estudos do OkCupid e dos investigadores Ainhoa Arranz Aldana e Leire Salazar confirmaram, ainda no ano passado, que mulheres negras e homens asiáticos recebem menos respostas, veem menos perfis e são mais frequentemente alvo de violência nas plataformas de dating. Pessoas trans e não-binárias também enfrentam barreiras semelhantes, muitas vezes inscritas no próprio design destas apps, que durante anos só permitiam escolhas binárias de género ou filtros baseados em categorias normativas de atração.

A promessa de liberdade digital esbarra, aqui, em interfaces que moldam identidades complexas a caixas de seleção — lembrando que o digital não está um passo à frente da vida real. Mas isso não significa que não se esteja a mover.

Turning points coletivos

Os não-dating spaces, como Instagram, TikTok, Reddit, Letterboxd, jogos online e YouTube, têm ganho outro estatuto enquanto terreno fértil para conexões. Nestes contextos, as relações parecem nascer de forma mais orgânica a partir de interesses partilhados e afinidades que se acumulam com o tempo até atravessarem para a vida real.

Seguindo a lógica, usei o meu Instagram para um questionário rápido e perguntei: “Tens alguma dating app instalada?”. As respostas foram reveladoras: 20 pessoas disseram que nunca tiveram, 39 já tiveram mas apagaram, 19 mantêm instalada mas raramente usam, e apenas 10 disseram ter e usar. Poucos continuam a apostar nestas plataformas com regularidade.

Como explicou Rita Sepúlveda, especialista nacional nesta área, numa entrevista ao Público em 2024, “não conhecer ninguém interessante” é um dos principais motivos para desistir das apps de encontros. Mas talvez o problema não sejam tanto as pessoas que não são interessantes, mas o próprio modelo das plataformas que, aos poucos, parece esgotar-se.

É nesse contexto que os não-dating spaces ganham relevância, oferecendo não só conexões mais orgânicas, mas também espaços onde criatividade, partilha de interesses e diversidade de experiências podem florescer antes de qualquer encontro presencial.

No estudo “Motivações para o uso de aplicações de online dating no contexto português: a relevância dos turning points”, Sepúlveda identifica momentos de viragem individuais como separações, mudanças de trabalho ou de cidade que frequentemente impulsionam o recurso às apps.

Talvez, da mesma forma que migrámos do MSN para o Hi5, do Hi5 para o Facebook e do Facebook para o Instagram, este seja também um turning point, não individual mas coletivo, na dating scene: num tempo em que tantas dimensões da vida foram automatizadas, cresce o desejo de preservar a capacidade de acreditar que as coisas podem acontecer( e acontecem) fora do ecrã, sem negar o papel que este continua a ter na forma como nos relacionamos.

Este turning point coletivo, não é apenas uma recusa das apps, mas uma abertura para novas formas de conexão híbridas, conscientes e refrescantes, onde interesses e afinidades se tornam o ponto de partida para conhecer o outre.

Resta perceber que caminhos surgem quando interesses e afinidades guiam a nossa dating drive.

A nova dating scene

O que acontece depois de um dating burnout?

Em 2024, a reação mais visível ao dating burnout foi o movimento boy sober”, um celibato voluntário em nome da sanidade mental e do autoconhecimento. Vamos assumir que essa pausa trouxe algumas respostas: este ano, vemos o pêndulo oscilar no sentido inverso, com o intentional dating, que redefine a forma de procurar o outro.

O intentional dating não recusa relações afetivas ou sexo casual, desde que haja honestidade e respeito mútuo. Convida a escolhas conscientes, atenção aos valores e à compatibilidade emocional, e presença genuína no encontro com o outro.

E, sim, as dating apps também têm lugar no intentional dating. Convém, no entanto, não alimentar o ego através de likes e perceber quando alguém está apenas lá por isso, sem nos auto-sabotarmos no nosso próprio tempo. É que o “só offline” também traz desafios: o encontro presencial pode gerar ansiedade, desconforto e desconfiança.

Ainda assim, Carolina Pataky, PhD, fundadora do South Florida’s Love Discovery Institute, citada pela Cosmopolitan, explica:

“Quando as pessoas se conhecem offline, encontram-se de forma mais holística e orgânica. O tom de voz, a linguagem corporal, a energia e a forma como alguém se move no espaço fazem parte da primeira impressão, algo difícil de replicar num perfil online.”

No questionário que levantei no meu Instagram, perguntei como gostariam que um romance começasse. Trinta e seis pessoas responderam preferir encontros exclusivamente offline. Ainda assim, a maioria revelou uma lógica híbrida: 25 começam presencialmente e depois recorrem ao digital, 19 iniciam online e levam a relação para fora do ecrã, e apenas uma pessoa preferia viver um romance totalmente virtual. Em 2025, parece claro que a fusão entre digital e presencial é o equilíbrio ideal, embora a sede pelo offline seja notória.

Entre a situationship culture e o intentional dating, entre o offline e o online, surgem novos termos que mapeiam cantos inesperados do universo íntimo atual.

Uns mais Out:

Monkey barring — saltar de relação em relação para nunca ficar sozinhe.

Dogfishing — usar cães e gatos de outras pessoas para ganhar matches.

Shrekking — namorar alguém que consideramos menos atraente na esperança de evitar desgostos.

E outros bem mais In:

Nanoships — relações breves, intensas e conscientes do seu fim, desenhadas para experimentar conexão real sem desperdiçar tempo com indefinição prolongada. Ao contrário das situationships, oferecem clareza, intensidade e consciência emocional.

Sit at the Bar September — uma trend criada por Laurie Cooper, das Real Housewives of New York, que viralizou no TikTok, e consiste basicamente em sentar-se sozinhe num bar, cruzar as pernas e abrir-se a olhares e conversas. Não promete casamentos, mas trabalha a presença e traz uma vibe bem Sex and the City à vida.

Estas práticas mais in, que vêm muito na onda do intentional dating e do boy sober, trazem uma nova mensagem de esperança para um dilema antigo: nem toda a gente se deixa ficar na indecisão no mar de possibilidades que o online trouxe. Alguns de nós estão dispostos a trabalhar o amor, amar melhor e ser amado melhor, e finalmente escolher, em vez de apenas desejar ser escolhide.

Notas para reiventar a forma de nos encontrarmos

Em suma, não se trata de apagar as apps nem de vestir um vestido Bridgerton na Praça Paiva Couceiro— embora também possas fazer isso. É sobre te dares a oportunidade de te reinventares romanticamente, reconhecendo o presente como ele é: um turning point.

E talvez seja aqui que a magia do primeiro chat no MSN, ou do friozinho na barriga do Habbo Hotel, se reencontre: naquele bar com roda de samba na Praia da Galé, num specialty coffee em Viana do Castelo, num running club no Parque da Cidade do Porto, na exposição grátis de fim de tarde em Lisboa, num fim de semana com amigas em Barcelona, e na notificação que nos chega horas depois, lembrando-nos que o inesperado continua a acontecer.

Inspirade? Aqui vai uma check list mais prática:

Adiciona um novo espaço ou hobby à tua rotina — ginásio, cerâmica, café, ler no parque. Em que rotina ideal te imaginas a conhecer um novo alguém?

Faz contacto visual, aguenta-o por 3 segundos.

Descobre o nome de alguém que vês frequentemente, mesmo que não haja intenções românticas, exercita o teu lado social offline.

Regista e revisita a tua intenção íntima, no telemóvel ou caderno, atualiza conforme precisares. Ex.: sexo ótimo, pequeno-almoço inspirador, conhecer alguém que se interesse pelo teu trabalho. Shots de claridade sobre o que realmente procuramos são importantes.

Termina a situationship que já não te faz sentido, liberta espaço para o que realmente queres.

Explora a curiosidade digital não-romântica, segue comunidades, criadores ou projetos que te interessam fora do universo de dating. Aumenta as chances de encontrar pessoas com interesses genuínos ou de pelo menos imaginá-las.

Sai das DMs e marca encontros diurnos com alguém que partilhe interesses num não-dating space.

Autor:
23 Outubro, 2025
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Rebeca Verde

Rebeca Verde escreve sobre amor, cultura e sexualidade. É licenciada em Ciências da Comunicação e especializada em Sexologia Educacional e SexTech. Criadora do projeto digital Insegurança Social (@inseguranca.social), onde transforma inquietações íntimas atuais em pensamento crítico.

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