No dia 7 de agosto, Lisboa acordou com uma nova obra do artista Bordalo II. Na Praça do Comércio, à entrada da cidade, um grande cartaz exibia a mensagem For Sale. A intervenção gerou milhares de respostas e reações. A imagem choca pela sua evidência. Qualquer dia poderíamos ler nos jornais que um fundo de investimento francês ou norte-americano decidiu deixar de comprar edifícios para adquirir definitivamente a cidade — e, infelizmente, isso já não nos surpreenderia tanto. Lisboa está à venda há muito tempo.
Semanas depois, vi no Instagram que a centenária pastelaria Centro Ideal da Graça fecharia no final de setembro, já que o edifício tinha sido comprado por (surpresa) uma empresa francesa que irá transformar o imóvel em apartamentos de luxo. Essa pastelaria fica na esquina da minha rua, e precisamente nessa rua está (ou melhor, estava) o edifício que, a 3 de setembro, teve de ser evacuado devido ao desabamento da fachada. Dias mais tarde, o diário Público confirmou que o prédio que provocou o colapso será mais um empreendimento de luxo.
Sou espanhola e há seis anos que vivo em Lisboa. Durante este tempo, fui testemunha das mudanças que a cidade tem sofrido: tudo cada vez mais caro, enquanto os salários permanecem baixos, nunca recebendo mais de 1200 euros líquidos em nenhum dos empregos que tive desde então. Não sou exceção; pelo contrário, sou do grupo dos que não se pode queixar. O que procurei em Lisboa? Ainda não sei responder. O que espera encontrar quem se muda para cá de outros países? Depende de quem perguntarmos. Entrada na Europa, residência, nacionalidade… dirão uns; praia e bom tempo, dirão outros. Cafés instagramáveis, responderão os mais ousados. As motivações são diversas.
A sensação é de que o processo de gentrificação e turistificação se acelerou nos últimos tempos. O que é Lisboa e para quem há espaço nas suas ruas? Recordo a despedida do bar Joanas, no Largo do Intendente, cujo prédio foi comprado para construir um hotel de luxo. Ainda guardo na memória o adeus ao Planeta Manas, após meses de assédio policial e a impossibilidade económica de manter o projeto no Prior Velho. E a luta que continua para evitar que o histórico Quartel da Graça se torne (adivinharam) mais um hotel de luxo.
Exemplos não faltam. Marvila, tradicionalmente um bairro operário e industrial, transformou-se nos últimos anos num cenário de gentrificação acelerada que está a expulsar a população trabalhadora que o habitava. Apartamentos de luxo, cafés de especialidade, clubes alternativos para sair à noite ou aquele hub criativo que ninguém (ou pelo menos eu) sabe bem para que serve ou se alguma vez funcionou, reconfiguram a vida do bairro segundo as novas necessidades de um público com maior poder económico. A promotora imobiliária VIC Properties é um dos principais agentes deste processo: investiu cerca de 400 milhões de euros no projeto Prata Riverside Village, onde já se vendem apartamentos a partir de 440.000 euros, e planeia colocar no mercado cerca de 3.000 novas habitações entre a Matinha e o Prata. Esta reabilitação, longe de responder a necessidades de habitação acessível, consolida Marvila como um novo polo de especulação imobiliária, transformando-o numa montra para investidores e turistas, enquanto desloca as comunidades que lhe deram identidade durante décadas.
Estive aqui e lembrei-me de nós
Sobre turismo, trabalho, glamourização dos bairros e cidades que se tornam parques de atrações, fala a jornalista catalã Anna Pacheco no ensaio Estive aqui e lembrei-me de nós, recentemente traduzido para português. O livro é um trabalho de campo focado em hotéis de Barcelona. Durante quase sete meses, a jornalista investigou as experiências de trabalhadores de hotéis de luxo e semi-luxo e procurou perceber os efeitos de “fazer parte de uma infraestrutura que oferece recreio aos visitantes e exige que os trabalhadores, mais do que isso, sejam anfitriões de algo que não lhes pertence”.
Lisboa e Barcelona são cidades muito diferentes, cada uma com as suas idiossincrasias, mas partilham, como muitas outras cidades europeias, o processo de turistificação das ruas e bairros. “Pelo que pude observar, há muitos paralelismos”, disse-me Anna Pacheco por email. “Lisboa começa a tornar-se inabitável para quem trabalha e vive na cidade; pouco a pouco, o centro torna-se inviável e, consequentemente, os bairros menos centrais também, com rendas inacessíveis. A cidade adapta-se, portanto, ao visitante ocasional, oferecendo serviços muito mais caros e neutralizando a identidade própria do lugar.”

A autora de Estive aqui e lembrei-me de nós não vive em Lisboa mas, quando veio apresentar o livro a Portugal, pôde falar com diferentes pessoas que lhe contaram o que se passa por cá: “Pelo que me explicaram, muita gente vive fora de Lisboa, e o centro também vive um processo de glamourização. Cada vez mais edifícios transformam-se em luxo, com boutiques e lojas de alta gama. No Porto observa-se algo semelhante. Percebe-se uma ‘cidade postal’, vendida como lugar ideal para expats, aluguer temporário, escapadelas de fim de semana ou despedidas de solteiro. Lembrou-me muito Barcelona”, acrescenta.
Turismo e desclassamento
“O turista (da classe trabalhadora ou média) viajou tradicionalmente para se tornar outra pessoa, para esquecer quem é, ou para tentar descobrir, de facto, quem é, muitas vezes com resultados precários”, escreve Anna Pacheco no livro. Num mundo em que passamos a vida a trabalhar, com apenas três semanas de férias por ano, é natural cair na ideia de “eu também mereço”, “trabalho para isto”. Viajar e fazer turismo é a recompensa ao trabalho, tornando o resto do ano mais suportável. Dá também prestígio. Viajar para outra cidade, outro país ou outro continente reflete não só o nível económico, mas também quem somos — uma pessoa curiosa, inquieta, interessante.
A ideia de merecer viajar, de merecer ser servido por outros nos poucos dias de férias, tem um profundo efeito de desclassamento [perda de consciência de classe], como assinala a autora. Quem trabalha quando estamos de férias? Esta é uma das questões principais que Pacheco coloca no livro agora editado em português. “O mal já estava feito: não nos tinham apenas dito que era possível que alguém mais pobre nos servisse um batido na piscina, ou comer até rebentar num buffet, parecia ser o melhor que um adulto poderia fazer com o seu dinheiro”, aponta Anna no ensaio.
Neste sentido, perguntei à escritora pelo paradoxo de como às vezes os próprios trabalhadores, que durante o ano sofrem os efeitos da exploração laboral, acabam por exigir ser servidos durante as férias. “O descanso é imprescindível, e todos os trabalhadores, de muitos setores, incluindo o turismo, sentem as férias como o único momento em que a vida parece valer a pena. Dizer isto é fácil, mas é uma afirmação cruel sobre a nossa forma de vida. A crítica à turistificação deve apontar primeiro para a estrutura que a torna possível (monopólios empresariais, lobbies hoteleiros, políticas públicas) e não para o turista, pois isso condena-nos a um beco sem saída. Este debate não pode ser feito a partir de uma moralidade de esquerda — não se trata de virtuosismo moral, nem de quem faz o quê nas férias, nem de acusações individuais. Não me interessa saber o que fizeste nas tuas férias!”, respondeu-me.
Ou seja, não se trata de proclamar tourist, go home, mas de apontar toda a estrutura empresarial e estatal que promove este turismo desenfreado. Vai muito além do incómodo de não conseguir voltar a casa no elétrico, cheio de turistas, ou do surreal de estar sentada num banco com o/a teu/tua companheiro/a e, de repente, aparecer um free tour à vossa frente para explicar um mural do artista Vhils.
Anna defende que esta questão está ligada à estrutura que permite que um fundo de investimento compre um edifício inteiro e o transforme em Airbnbs ou outro hotel, e que seria interessante abrir o debate para outras formas de luxo comunitário — “perguntar como reconquistar espaços públicos e outras formas de lazer autogerido; perguntar se sindicatos podem gerir hotéis para os seus afiliados (na Argentina, o turismo sindical é bastante forte)”. Em resumo, questionar “se existe outra forma de imaginar as nossas férias, de modo mais sustentável, respeitando trabalhadores e espaço público”.
“Pergunto-me também: se as férias não fossem tão excecionais, se não estivéssemos tão cansados, realmente sentiríamos tanta vontade de viajar dentro destas lógicas de evasão?”, questiona Anna na nossa troca de e-mails.
Há alternativa?
Nas notícias que lemos diariamente, ou num simples passeio pelas zonas centrais de Lisboa, não ganhamos muita esperança de mudança a curto prazo. Mas alternativas existem e devem ser pensadas e exigidas. Em Estive aqui e lembrei-me de nós, Anna Pacheco aponta algumas, e nos e-mails que trocámos acrescentou caminhos que podem ser interessantes.
“Além do turismo sindical, penso também nas cooperativas de habitação. Em Barcelona existem várias que promovem outra forma de viver, fora da propriedade privada. Em alguns países, estas cooperativas experimentam estruturas para lazer e descanso”, explica-me.
A resistência e a coletivização são fundamentais e Lisboa também tem exemplos de movimentos de moradores que diariamente lutam contra este processo gentrificador: o Movimento Referendo pela Habitação, a petição pública Parar o Hotel no Quartel da Graça, e até o movimento Vida Justa, são apenas alguns exemplos.
Outro tipo de cidade, outro tipo de turismo, é possível — e necessário. O modelo atual é insustentável e cruel. O ensaio de Anna Pacheco abre uma janela de reflexão e crítica para pensar além. “Acredito que devemos recuperar o ideal, absolutamente emancipador, de que o descanso é imprescindível para o ser humano e que descansar não deve ser um privilégio ou exceção. Talvez, se tivéssemos opções acessíveis e prazerosas de proximidade, deixaríamos de pensar tanto em lugares distantes e exóticos”, disse a escritora, por e-mail, em jeito de conclusão.
Não sei bem o que procurava quando vim viver para Lisboa, mas depois de seis anos aqui já posso dizer que gostava de poder continuar a viver nesta cidade sem ser empurrada para fora. Gostava de continuar a sentir que moro num bairro que ainda mantém o espírito de bairro — onde posso comer uma tosta mista sem ter de pagar 12 euros, cumprimentar os vizinhos e conseguir pagar o meu quarto. E gostava que, se conseguisse fazer todas essas coisas, não fosse por ser uma privilegiada ou uma exceção, mas porque Lisboa fosse uma cidade aberta e justa para todas as pessoas que a escolhem (ou não) para viver. Não me parece que seja pedir muito.
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