Cristina Roldão: “Uma luta anti-fascista que não é anti-racista está incompleta”

Cristina Roldão: “Uma luta anti-fascista que não é anti-racista está incompleta”

17 Fevereiro, 2025 /
Fotografia de Miguel Manso

Índice do Artigo:

Cristina Roldão conversou com Margarida Valença sobre racismo, a presença negra na sociedade portuguesa e a ascensão da extrema-direita. Desde que se encontraram, já muito aconteceu. Esta entrevista permite-nos contextualizar os acontecimentos e compreendê-los melhor.


A discussão sobre o racismo tem ganho progressivamente uma maior visibilidade no espaço público. O movimento Black Lives Matter, desencadeado pela morte de George Floyd, um cidadão afro-americano assassinado por um polícia em junho de 2020, nos Estados Unidos da América, despoletou uma grande onda de protestos à volta do mundo, e uma maior discussão deste tema, também em Portugal.

Termos como “colonialismo”, “racismo estrutural”, ou ainda o debate sobre questões como a violência policial, ganharam cada vez mais lugar no debate da sociedade portuguesa. Ao mesmo tempo, a extrema-direita solidificou o seu espaço nas instituições políticas, com um discurso hostil a minorias étnicas. O país assistiu ainda ao homicídio por ódio racial do ator Bruno Candé e à mediatização do caso de Cláudia Simões.

Cristina Roldão tem sido uma das protagonistas no movimento por essa mudança de debate, bem como pelo resgate de nomes relevantes na história da luta anti-racista apagados ao longo do tempo. Doutorada em Sociologia, investigadora no ISCTE-IUL e docente na Escola Superior de Educação de Setúbal, é co-autora de livros, no qual se inclui a ‘Tribuna Negra’ conjuntamente com Pedro Varela e José Augusto Pereira, que conta a história do movimento negro em Portugal no início do século XX. Foi cronista no jornal Público e é uma voz ativa na academia e no espaço público nos temas do racismo e da presença negra na sociedade portuguesa.

Encontrámo-nos com Cristina Roldão para conversar sobre a evolução da relação da sociedade portuguesa com este tema. Desde esta entrevista, já muito aconteceu. A morte de Odair Moniz, na madrugada de 21 de Outubro de 2024, na sequência de disparos feitos por um agente da PSP, que gerou um debate aceso sobre a violência policial, e uma grande onda de protestos na área da Grande Lisboa. Meses depois, no dia 19 de dezembro, assistiu-se a uma rusga policial da PSP na Rua do Benformoso, em que dezenas de imigrantes foram encostados à parede, tendo-se gerado contestação, que resultou numa grande manifestação no passado dia 11 de janeiro, contestando a rusga. A 20 de janeiro Donald Trump tomou novamente posse como Presidente dos Estados Unidos da América, marcando um novo capítulo não só na política norte-americana, como na ascensão da extrema-direita a nível internacional.

Não só a discussão sobre o racismo ganhou mais visibilidade, como se tornou uma questão central no espaço público e na confrontação político-partidária. Mas nenhuma destas questões é nova. E esta entrevista, apesar de anterior a todos estes acontecimentos, permite-nos contextualizá-los e compreendê-los melhor.

Shifter (S.): Numa entrevista em 2018 no podcast Perguntar Não Ofende, do jornalista Daniel Oliveira, disse: “Temos pouco património de debate em Portugal para conseguir discutir este assunto (o racismo) sem resvalar rapidissimamente para uma dimensão emocional, afetiva, familiar”. Passados seis anos destas declarações, qual o balanço que faz sobre a evolução da discussão do racismo em Portugal?

Cristina Roldão (C.R.): Avançámos no debate público, mas falta perceber como é que isso vai ser consequente em termos de políticas públicas. Houve a aprovação do primeiro Plano Nacional de Combate ao Racismo em Portugal, que inclui entendimentos sobre o racismo que vão para lá de uma dimensão pessoal e das interações do quotidiano, e já considera dimensões como a produção de conhecimento. Há avanços nos termos da discussão: conceitos como racismo institucional, racismo estrutural, colonialismo, branquitude, lugar de fala, se antes eram pouco conhecidos e provocavam reações tempestuosas, hoje estão noutro patamar, mesmo continuando a existir quem não concorde. A grande questão é até que ponto esse avanço é consequente do ponto de vista da política pública e da consolidação de uma consciencialização geral da sociedade portuguesa. Tanto mais que de lá para cá tivemos um avanço evidente da extrema-direita no espaço das instituições políticas, e isso terá as suas consequências. 

Se por um lado vejo avanços no debate, observo também que há forças muito contrárias que se têm vindo a desenvolver.

S.: Que atores sociais foram responsáveis neste processo? Que papel tiveram, por exemplo, a cultura, a política, a academia, os movimentos sociais?

C.R.: Os movimentos sociais foram fundamentais — tanto para o contexto da academia, no debate público, nalguns avanços no espaço político-partidário. Isto aconteceu em Portugal, mas também, obviamente, lá fora com o Black Lives Matter, em que de repente houve um período em que várias organizações tiveram que se posicionar, ou pelo menos fazer parecer que estavam a tomar medidas. E no caso português havia muito por fazer. Nem havia um Plano Nacional de Combate ao Racismo, o que tínhamos era a apresentação de queixas formais cujo resultado desses processos é residual. O que foi feito de política de integração de imigrantes, todo esse investimento na questão intercultural, de alguma maneira foi sempre contornando a questão do racismo. Aliás, em 2016 Portugal chega à reunião do CERD (Comité para a Eliminação da Discriminação Racial) da ONU, dizendo que esse problema não existe em Portugal, o que depois origina uma carta de vários coletivos que foi enviada para a ONU.

“Sinto que às vezes as forças da extrema-direita aproveitam, na sua caminhada, para deslegitimar o movimento anti-racista, e também apoderar-se dessas reivindicações e movimentos, para causar polémica e para ter espaço mediático.”

S.: Um dos fatores que marcou os últimos cinco anos foi o crescimento da extrema-direita a nível parlamentar. Estes movimentos têm crescido também numa lógica de reação contra esta afirmação do movimento anti-racista e o facto de estas questões estarem mais na agenda?

C.R.: Essa busca de causalidade entre o crescimento da a extrema-direita por, do outro lado, existir um movimento anti-racista, aparece muitas vezes. Não acho que haja uma relação. Muitas das ideias da extrema-direita não se devem só ao quadro nacional, é uma questão internacional; e muitas dessas ideias não são novas. Sinto que às vezes as forças da extrema-direita aproveitam, na sua caminhada, para deslegitimar o movimento anti-racista, e também apoderar-se dessas reivindicações e movimentos, para causar polémica e para ter espaço mediático.

S.: Um dos grandes caso mediáticos dos últimos tempos foi o de Cláudia Simões. É testemunha abonatória de Cláudia Simões no julgamento que a levou a ser condenada a um ano de pena suspensa, no qual o agente Carlos Canha foi também condenado a três anos de prisão por pena suspensa por agressão a duas pessoas que não a arguida. Porque decidiu testemunhar a favor de Cláudia Simões, e qual foi a sua perceção do comportamento das autoridades em relação à mesma durante o processo judicial?

C.R.: Decidi ser testemunha abonatória porque tive a oportunidade e a sorte de, ao longo destes anos, ficar mais próxima e conhecer melhor a Cláudia e o seu contexto familiar. Para além de apoiá-la na sua defesa no espaço público, e na luta contra a violência policial, sentia que era necessário que ela pudesse ter pessoas que testemunhassem a seu favor perante um desequilíbrio tão grande de forças: um julgamento de uma mulher negra face a um sistema de segurança. Não é só a questão isolada do Carlos Canha, mas o reconhecimento da existência de violência policial e de racismo institucional na polícia. Escrevi bastante sobre a forma como achei que decorreram os julgamentos, no Público. Foi um processo muito violento e desigual no tipo de tratamento, no tipo de julgamentos morais que foram saindo nos discursos do coletivo de juízes, dos advogados, como a questão toda em torno do cabelo, e fico contente que a Cláudia tenha energia e vontade de recorrer desta sentença em que ela se torna culpada, quando é um ato de auto-defesa.

S.: Na sua coluna no Público também foi comentando outros casos. A respeito da condenação do Mamadou Ba, na sequência da queixa por difamação, publicidade e calúnia de Mário Machado, que estaríamos a assistir a uma nova fase na impunidade do racismo em Portugal. Acredita que há uma normalização de ideais de extrema-direita a nível das instituições?

C.R.: No caso de Mamadou Ba estamos a falar de um militante anti-racista sobejamente conhecido, e cuja acusação recai exatamente sobre denúncias que ele está a fazer sobre a existência do racismo em Portugal. Neste caso, as ações do Mário Machado. Assistimos a um momento em que os tribunais são colocados ao serviço da punição do anti-racismo. Nós sabemos do racismo institucional nas instituições do Estado, na sociedade portuguesa em geral — nos tribunais, na polícia, nas escolas. É algo que atravessa a nossa sociedade, tal como as desigualdades de género, as desigualdades de classe, e tantas outras formas de violência e desigualdade, portanto isto não deveria ser nada de novo ou de polémico. Se os tribunais começarem a trabalhar no sentido de punir quem denuncia o racismo, estamos ainda pior do que estávamos. No caso da Cláudia Simões é interessante como nas próprias alegações finais e ao longo do julgamento, os advogados dos agentes, assim como a juíza que presidia ao coletivo de juízes, usaram a ideia de que, de algum modo, era um desserviço à sociedade portuguesa que este caso fosse considerado como parte da luta anti-racista — quase como se fosse um aproveitamento por parte do movimento anti-racista daquele caso e daquela pessoa. O movimento anti-racista, e a denúncia do racismo, voltam a estar num tribunal, embora não da mesma forma que estiveram quando foi com o caso do Mamadou Ba.

S.: A imigração é um tema que ganhou bastante relevo no debate político-partidário, muito cavalgado também pela extrema-direita. Como é que vê a forma como este assunto tem sido discutido, nomeadamente em Portugal e na Europa? No dia 29 de setembro aconteceu uma manifestação do Chega contra uma pretensa imigração descontrolada, e foi um assunto que ganhou mais espaço mediático.

C.R.: É uma das questões que, às vezes, é um problema nas nossas discussões, uma vez que o debate sobre o racismo rapidamente se dilui no debate sobre a imigração. Claro que há pontes entre um e o outro, mas os atores que convocamos, e as questões que estão em cima da mesa, nem sempre são os mesmos. Quando estou a pensar em imigração, não estou a pensar na imigração dos países europeus, da classe média alta, dos reformados ingleses e alemães que vêm para o sul de Portugal, embora também sejam imigrantes. Estou, muitas vezes, a pensar em comunidades que também já foram historicamente colonizadas, do sul global. 

E é interessante reparar na distinção de discurso quando estamos a falar dos imigrantes, por exemplo sul-asiáticos, sobre quem o Chega e vários grupos de extrema-direita têm criado a narrativa do medo da islamização da Europa e as teorias da substituição.Para esses imigrantes há todo um discurso negativo, embora seja necessário para o sistema produtivo português ter estas pessoas, e seja por isso que elas continuam a vir. Estamos a falar sobre alguns territórios agrícolas onde seria impossível ter produção se não houvesse mão de obra imigrante, mas também alguns setores nos contextos urbanos: dos serviços, desde a restauração, às entregas de estafetas (Uber, Glovo), ao turismo… É muito difícil pensar toda essa infraestrutura de produção económica se não houver mão de obra, e muita dela é imigrante. E depois é curioso ver o contraste dos discursos desses mesmos atores, por exemplo sobre o turismo em Portugal, de uma forma benévola e instrumental,ignorando o impacto que está a terno arrendamento e na compra de casa em Portugal. 

S.: No Tribuna Negra, livro do qual é co-autora, é feita uma descrição dos movimentos negros na Lisboa no início do século XX, que eram protagonizadas essencialmente por uma pequena-burguesia da metrópole que, embora combatesse o racismo, era ambivalente, por exemplo nas suas posições relativamente ao colonialismo. Qual é a importância do conhecimento destas histórias para as lutas que se travam hoje, e o que podemos aprender com toda essa história que foi também apagada?

C.R.: Essa é a conclusão do livro, há pontes e paralelismos entre passado e presente. Foi um movimento que deu muito gosto de retratar, procurar, problematizar, muito a partir do trabalho do Mário Pinto de Andrade. Eu, o Pedro Varela e o José Augusto Pereira, procurámos trazer ainda mais informação e torná-la acessível a uma sociedade portuguesa que desconhece esta história. Interessava-nos muito mais dialogar com um espaço público abrangente do que apenas com historiadores. Esse movimento tem muitas coisas que nos fazem pensar sobre, por exemplo, os limites da representatividade política institucional. Com isto não digo que ela não seja importante; é um meio, e em determinado tipo de condições. Porque se for uma representatividade só quantitativa, de “blackfaces in high places“, não resolve o problema. Contribui, aliás, para mistificar e ocultar mais. 

Outra dos grandes temas é a interseccionalidade, e como as questões de classe foram fundamentais no bloqueio do avanço da crítica daquele movimento. Um  tema que também fica evidente é a existência de, por um lado, propostas de rutura com a forma de organização social e política no geral e, por outro, uma crítica contundente a isso. A história que contamos interpela-nos sobre isso, mas sobre as questões de género também. Porque é que a Georgina Ribas, Maria Nazareth de Ascenso, e outras, estão tão apagadas dessa história? Porque é que quando encontramos em alguns jornais reivindicações sobre os direitos das mulheres, os tipos de reivindicações dirigidas a mulheres brancas têm que ver com a questão sufragista, mas quando eles falam de mulheres negras, pensam noutras reivindicações? 

O livro também nos convoca a pensar a questão do internacionalismo, e a ver que mesmo no internacionalismo existem diferentes fações político-ideológicas. Quando falamos sobre o Du Bois, Marcus Garvey ou Blaise Diagne, eles simbolizam três propostas distintas de internacionalismo que levam a resultados diferentes em termos das suas propostas. É algo que é importante para os nossos debates: internacionalismo sim, acompanhar os movimentos negros e anti-racistas noutros espaços, sim. Mas também ser crítico disso.

“Nos manuais de História, ainda hoje não se avança nenhuma estimativa sobre o número de pessoas mortas do lado africano, nem de perdas ou de feridas. Obviamente poder-se-á dizer que é difícil dar um número concreto, mas é possível fazer estimativas. É possível contar mais sobre o que foi essa guerra, e a forma como as ideias, as relações dos movimentos de libertação inspiraram também o movimento anti-fascista, onde aliás alguns deles militaram diretamente.”

S.: A propósito do resgate de nomes que marcaram a História, no passado dia 21 de março aconteceu uma manifestação em homenagem a Amílcar Cabral, tendo-se marcado os seus 100 anos. Qual a importância desta manifestação e a relevância da figura e do pensamento de Amílcar Cabral nos dias que hoje correm?

C.R.: É da maior importância. Este ano [2024] estamos a viver os cem anos do nascimento do Amílcar Cabral e os 50 anos do 25 de Abril, e sermos confrontados com o retorno da extrema-direita com peso dentro das instituições políticas dá um sinal muito óbvio de que há partes desse sonho de Abril que não foram tão conseguidas. Noutras com certeza que houve avanços maiores, mas na forma como Portugal lida com a sua história colonial não… Como é que o país que foi o maior traficante transatlântico de pessoas escravizadas, um dos maiores impérios, e mais longos, um dos últimos a sair com uma guerra de 13 anos — em termos proporcionais de esforço de guerra, das maiores que existiu em número de feridos, de mortos — lida com tudo isso? Quando se fala de conflitos pela independência, acho que o pensamento de Cabral é essencial, porque foi uma luta não só contra o fascismo. Foi uma luta contra o fascismo e contra o colonialismo. Nós não os derrotamos completamente, e os dois estão conectados. Uma luta anti-fascista que não é anti-racista também está incompleta. É como se deixasse sempre a porta aberta para que esse fascismo pudesse voltar a entrar.

A marcha de Cabral, para já, permite reafricanizar o 25 de Abril, como algo que não resultou só, como às vezes ouvimos falar, de uma revolução sem sangue e que foi feita pelos Capitães de Abril —sem menosprezar obviamente a iniciativa de coragem dessas figuras. Não há 25 de Abril sem Guerra Colonial, sem lutas de libertação. Uma das dúvidas que existiam na altura era se o derrube do fascismo implicaria necessariamente o derrube do colonialismo. Havia vários exemplos de potências coloniais que não tinham regimes fascistas e que mantiveram as suas colónias. Mas havia quem acreditasse que o fim de um teria de implicar o fim do outro.

Há também uma importância que é mais para dentro, e que tem que ver com essa memória de Cabral ser celebrada, pensada, de segerar todo um conjunto de conversas, textos, encontros e iniciativas que permitem continuar a agregar aquilo que é o pensamento anti-colonial e anti-racista de Cabral a outras lutas que se calhar não estavam tão presentes ou visíveis no período das lutas de libertação, e que hoje nós precisamos de as ter mais próximas. Mas também reafirmar outras lutas e proximidades que já existiam na altura. Quem esteve na manifestação percebeu o quão bonita e agregadora foi, seja contra a guerra na Palestina, com as questões LGBT, ou com um pan-africanismo mais conectado com os problemas dos países africanos de exploração, de dominação, de imperialismo, e também com as consequências disso ao nível da condição dos imigrantes africanos em Portugal, designadamente em Lisboa.

A manifestação tem esses dois efeitos. Por um lado, inscrever a memória de Cabral naquilo que são as políticas de memória sobre o que foi o 25 de Abril, sobre a história da democracia portuguesa, mas efetivamente estabelecer a ligação quanto ao seu contributo efetivo. Os movimentos de libertação, os países africanos que ganharam a independência, não foram apenas beneficiários do 25 de Abril. Eles contribuíram para a sua construção. E isso precisa de ser mais sabido e assumido pelas nossas instituições. Desde os discursos políticos à produção científica, às escolas, à produção artística.

Claro que quando falamos de Cabral temos de enquadrar que não é o Amílcar Cabral pessoa, mas o seu legado e significado do ponto de vista das lutas de libertação. Foram muitas mulheres, muitos homens, muitas vidas envolvidas na organização do PAIGC e de outros movimentos de libertação na construção desse pensamento, e na realização dessa luta física. Isso precisa de ser trazido. Por exemplo, nos manuais de História, ainda hoje não se avança nenhuma estimativa sobre o número de pessoas mortas do lado africano, nem de perdas ou de feridas. Obviamente poder-se-á dizer que é difícil dar um número concreto, mas é possível fazer estimativas. É possível contar mais sobre o que foi essa guerra, e a forma como as ideias, as relações dos movimentos de libertação inspiraram também o movimento anti-fascista, onde aliás alguns deles militaram diretamente

S.: Outro aspeto que tem sido trazido mais vezes ao espaço público quando se fala de racismo é o lugar que existe na academia para abordar as questões do colonialismo. Como avalia a discussão sobre o tema na academia, não só no conteúdo, mas no próprio espaço dado a investigadores negros, imigrantes, etc em projetos de investigação?

C.R.: Quanto mais andamos para a frente, e nos aproximamos do ensino secundário e superior, mais nos deparamos com um sistema educativo altamente competitivo, individualista e meritocrático. É particularmente difícil pensar medidas de ação afirmativa que permitam de uma vez por todas que as universidades, seja na docência, na investigação, ou nos seus alunos, possam ter uma presença negra mais substancial, ou pelo menos à proporção destes grupos na sociedade portuguesa. O debate sobre as quotas, sobre a abertura de linhas específicas de financiamento que abrangem não só os temas, mas também os corpos e as cabeças que trabalham estes temas, sendo corpos negros. Estamos muito longe disso. Houve uma altura em que esse debate esteve em cima da mesa, e a alternativa a que se chegou era a criação de uma espécie de quotas indiretas através da classe social, lugar e localidade, e estávamos até com um partido que se pode considerar de esquerda no Governo.

“O que vemos é uma ciência que se coloca muito nesta perspetiva meritocrática, da produção de artigos científicos, e pouco preocupada com o quão inclusiva é, e com os corpos que a produzem.”

S.: O programa TEIP (Territórios Educativos de Educação Prioritária)? 

C.R.: Não era bem TEIP.  Essa foi uma proposta que acho que nunca foi para a frente, como o debate em torno da criação de quotas foi. Do ponto de vista institucional, a única instituição do Estado que procurou fazer algum tipo de ação afirmativa, e mesmo assim com problemas, foi a DGArtes, na forma como abriu os concursos e fez uma ponderação para projetos que tivessem na sua equipa pessoas racializadas. Mas esse é um debate difícil, particularmente dentro da academia. 

Acredito que pouco a pouco se vai vendo o surgimento de estudos mais críticos sobre o colonialismo português, e ideias como a descolonização do conhecimento, nas diferentes disciplinas. Mas a abertura desses espaços não está a ser preparada para que isso seja feito com protagonistas negros. A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), por exemplo, devia ser das primeiras a abrir uma linha de políticas para dar conta desta situação, mas o que vemos é uma ciência que se coloca muito nesta perspetiva meritocrática, da produção de artigos científicos, e pouco preocupada com o quão inclusiva é, e com os corpos que a produzem. Claro que existem outras medidas de ação afirmativa possíveis, mas eu falaria de quotas étnico-raciais. Que não são, como às vezes as pessoas pensam, para dar uma oportunidade aos desfavorecidos. São uma oportunidade da universidade portuguesa de se abrir, de outras pessoas, outras formas de produção de conhecimento, outras relações, outros temas, e outras metodologias, entrarem.

S.: Um ótimo exemplo que temos é a Grada Kilomba, que tem trazido todas estas questões cruzando bastantes áreas disciplinares, e cruza o campo da psicanálise com questões do colonialismo. Em Portugal não tem tanto espaço, mas ela é muito reconhecida lá fora…

C.R.: E temos mais académicas: a Sónia Vaz Borges que está nos Estados Unidos, a Vânia Gala que está no Reino Unido, e tantos outros e outras que não encontraram espaço em Portugal e que são reconhecidos noutros lugares, mas que cá seria com certeza muito difícil alguma vez terem a carreira que têm noutros contextos.

S.: Há pouco mencionava a situação com a ONU em 2016. Em 2021 foi aprovado pelo Governo de António Costa o Plano Nacional de Combate ao Racismo e Discriminação e, ao mesmo tempo que o plano foi aprovado, a então ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares  Ana Catarina Mendes afirmava que o racismo não era estrutural, quando o plano dizia que o racismo era estrutural. Qual a sua visão sobre esta política pública, e a sua perspetiva sobre como estas questões têm sido trazidas no espaço da esquerda, podendo estar submetidas ou não a um certo paradoxo?

C.R.: É sempre uma disputa. Não é porque de repente há um documento com um conjunto de intenções que agora tudo mudou. Esse Plano Nacional de Combate ao Racismo aparece por pressão. Não foi por geração dentro desses partidos, ou dentro desse partido, mas porque houve muita pressão internacional e nacional, quer de instituições europeias, quer de instituições como a ONU, quer de movimentos sociais em Portugal e movimentos sociais noutras partes do mundo. O plano decorre muito mais dessa persistência e duma exigência externa aos partidos do que propriamente de algo que considerassem uma prioridade. E pela forma como nasce, há riscos de retrocesso, de ressignificação ou de reinterpretação do que está escrito. Por exemplo, havia a reinvindicação da recolha de dados étnico-raciais nos Censos, de que 80% da população portuguesa é a favor. Não porque as pessoas gostem muito desse tipo de recolha de dados, mas porque conseguem compreender que é preciso informação para perceber o que está bem, o que está mal. Mesmo assim essa proposta caiu, não foi aceite pelo INE, e fez-se um outro inquérito que mistura migrações com as questões do racismo, e que faz uma amostragem, quando sabemos perfeitamente que fazer uma amostra representativa é especialmente difícil. Mas isso é expectável, dada a forma como as coisas têm vindo a ser construídas,  na base de uma disputa muito grande para que o combate ao racismo possa entrar nas políticas públicas, e que não seja só uma questão de apresentação de queixas. É um sistema que não opera, então tem que ser do lado da política pública, e muito daquilo que é o racismo institucional espelha-se em desigualdades de acesso, que não tem propriamente a ver com a discriminação direta à porta das instituições, mas com camadas e camadas de exclusão e segregação quer intergeracionais, quer no território.

S.: Qual é o balanço sobre a forma como outros órgãos do Estado, como o Observatório do Racismo e Xenofobia, ou a Comissão para a Igualdade Contra a Discriminação Racial têm atuado?

C.R.: O que a Comissão para a Igualdade e Contra Discriminação Racial faz é, de certa forma, agregar as queixas que depois são distribuídas por diferentes instituições. Não toma as decisões. Parece-me que devia ser uma instituição muito mais pró-ativa, que não só recebesse queixas e agilizasse os canais de comunicação institucionais, mas que tivesse um posicionamento mais interventivo. Mesmo esse trabalho de sanção dos atos discriminatórios não está longe de ter um saldo positivo. É evidente que o número de queixas tem vindo a aumentar, mas as taxas de condenação do racismo não, então é um sistema muito inoperacional. 

Quanto ao Observatório, perdeu a oportunidade de ter na sua direção a representatividade de pessoas e de coletivos de pessoas e de comunidades racializadas em Portugal. Devia ter uma lógica mais coletiva, de relação com as comunidades, e ficou muito académico. Mas ainda estamos para ver os resultados desse Observatório. Ao que tudo indica também não tem um orçamento previsto que permita ter uma ação muito alargada ou impactante. Parece que é para mostrar para fora que foram criados instrumentos de combate e de monitorização do racismo, mas que isso não resulta de um interesse em que a recolha dessa informação seja consequente para fazer políticas a esse propósito.

“Acho que será difícil encontrarmos algum partido de esquerda que explicitamente ponha em causa e critique esse imaginário sobre o que é ser português. Essa relação entre partidos e Estado-Nação tem um reflexo na forma como se posicionam sobre o racismo e a questão da colonialidade na sociedade portuguesa.”

S.: O que é que pensa sobre  a forma como o movimento anti-racista se tem correlacionado com os partidos de esquerda, e de que forma é que estas questões têm sido trazidas? Por exemplo, movimentos como a Vida Justa têm trazido para o debate público a questão das Zonas Urbanas Sensíveis, a violência policial, o território, a habitação. Como é que também vê a forma como estas questões têm sido trazidas ou não naquilo que é o debate a nível partidário?

C.R.: Acho que os partidos à esquerda ainda não assumiram o combate ao racismo como uma questão central. Historicamente, as relações entre os movimentos anti-racistas e a esquerda, predominantemente branca, pode ser explosiva —, quando seriam aliados expectáveis, e são muitas vezes. Mas há pontos de tensão, e dificuldades,que têm que ver, por exemplo, com a prevalência da importância de outras fontes de desigualdade, e a consideração de que essas agregam massas e o anti-racismo não, e com a disputa que se faz entre classe e raça. (Raça não num sentido biológico, mas no sentido da construção política e social.) Às vezes sente-se essa tensão: tentar ou não falar sobre racismo, porque a classe está acima disso tudo, ou falar do racismo como uma espécie de afloramento na realidade daquilo que são as relações de força entre as classes. Quer uma, quer outra são um desserviço ao debate que nós precisamos de ter hoje. Há muita produção de pensamento sobre a relação entre capitalismo e colonialismo, como são mutuamente constitutivos, e como o racismo faz parte desse projeto. A mim parece-me que quando estão a falar de trabalho, e estão a falar para os sindicatos sobre leis laborais, sobre acesso ao emprego, normalmente o debate sobre a questão racial ou termos como “racismo institucional” não entram nesse discurso. Mas quando estamos a falar sobre racismo, aí as questões da classe já são colocadas. Às vezes isso presta-se a algum aproveitamento das energias e forças que são criadas dentro do movimento anti-racista e dentro das comunidades, para depois alimentar essas forças político-partidárias. 

Noutros casos até pode existir um desejo de pelo menos ir mais longe e reconhecer a questão racial, como as questões de género, de orientação sexual, e outras, e dar-lhes um espaço de autonomia e de centralidade, mas há uma grande distância entre o enraizamento efetivo na vida, nos quotidianos, nas organizações. O trabalho de casa, de procurar essa construção que não é só chegar e tomar conta, significa essa aproximação de estar disponível para se rever e gastar o tempo que é necessário para fazer. 

Depois, existe a problemática da competição que é criada entre a classe, o capitalismo, colonialismo e racismo, como se elas não andassem juntas, ou um certo reconhecimento da importância, mas com muito pouca inserção nos contextos, com muito poucas relações efetivas com as comunidades. E por vezes com posições um bocadinho mais contraditórias como o que aconteceu com o último Governo, em que ao mesmo tempo que se faz um plano nacional de combate ao racismo, vem a público dizer que racismo institucional não existe, ou que o colonialismo também teve coisas boas, e que o anti-racismo e a extrema-direita são dois opostos que se alimentam mutuamente. Ou mostrar pesar por uma situação de discriminação racial, e no mesmo passo fazer uma declaração profundamente lusotropicalista. Isto tem que ver claro com questões político-ideológicas de base, e tem que ver também com a luta por eleitorado, e isso é preciso ter em conta também.

S.: Tendo em conta que muitas destas questões que falamos não são maioritárias na forma como a sociedade portuguesa as acolhe, isso acaba também por entrar em jogo na escolha ou não de pôr certas coisas como prioritárias naquilo que é o discurso político.

C.R.: É, e como a questão racial mexe diretamente com a identidade nacional, tem a particularidade de tocar numa coisa que, para os partidos, é fundamental para a sua legitimação: a ideia de Estado-Nação e de uma portugalidade. Acho que será difícil encontrarmos algum partido de esquerda que explicitamente ponha em causa e critique esse imaginário sobre o que é ser português. Essa relação entre partidos e Estado-Nação tem um reflexo na forma como se posicionam sobre o racismo e a questão da colonialidade na sociedade portuguesa. É preciso pôr mesmo em causa e deitar fora este orgulho nacional naquilo que foi a expansão colonial e a escravatura de milhões e milhões de pessoas em todo o mundo. 

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Autor:
17 Fevereiro, 2025

Licenciada em Ciência Política. Tenho escrito para órgãos de comunicação social e sites online como o Afrolink, Setenta e Quatro, Rimas e Batidas, Comunidade Cultura e Arte, Bantumen, Shifter ou a Playback. Tenho escrito sobre cultura, direitos humanos e política.

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