As manhãs de ensaio no Pólo das Gaivotas começavam quase sempre à mesma hora. Por volta das 10, o grupo já se mexia pela sala com janelas rasgadas para a cidade, ao som de uma playlist de aquecimento. Era Teresa Manjua quem coordenava os movimentos. Seguiam-na Helena Caldeira, Miguel Ponte, Afonso Viriato, Vasco Lello. Mais tarde, juntava-se Kali Musa. No canto da sala, Teresa V. Vaz e Maria Gil reviam o que havia para rever — opções dramatúrgicas, sobretudo. “Fazemos a Burgalesa?”, pergunta Teresa V. Vaz, encenadora e co-criadora do coletivo Bestiário, a certa altura. Para quem ali chega pela primeira vez, há uma novidade em palavras e expressões que o grupo usa entre si. E não são só as palavras que usam para se referir a determinadas cenas que são familiares entre si.
Quem ali chega com contexto sabe que Teresa V. Vaz, Helena Caldeira, Miguel Ponte e Afonso Viriato partilham há seis anos a estrutura Bestiário. E que embora já tenham trabalhado com Teresa Manjua anteriormente, é a primeira vez que estão numa criação partilhada com Maria Gil, Vasco Lello e Kali Musa. Mas se não soubesse, nada indicava que em algum momento não tivessem feito parte de um só grupo. À altura deste ensaio já tinham partilhado residências artísticas, muitos ensaios, conversas sobre trabalho e talvez sobre a vida, refeições, cafés, silêncio.
O que os junta é Homo Sacer, encenação conjunta de Teresa V. Vaz e Maria Gil, que integra a Odisseia Nacional do Teatro Nacional D.Maria II. Não é uma coincidência que partilhe o nome com “Homo Sacer e os Ciganos”, livro de Roswitha Scholz editado em Portugal pela Antígona em 2014 — serve-lhe de ponto de partida e inspiração. Mas não foi bem por aí que a ideia para Homo Sacer apareceu; foi através da experiência de Teresa professora de atividades extra-curriculares em escolas públicas na zona de Lisboa, que surgiu o ímpeto de falar sobre o anticiganismo, depois de assistir a alguns episódios que a “começaram a inquietar”. Mais tarde, teve conhecimento de um estudo sobre discurso de ódio que a irmã de uma amiga estava a desenvolver. O que mais a surpreendeu foi saber que existia um anticiganismo generalizado e que a percepção dominante era de que os cidadãos ciganos eram migrantes. Uma percepção contrariada pelos factos, uma vez que, por exemplo no caso português, há registos de pessoas ciganas há séculos.
Diz a jornalista Ana Cristina Pereira, numa peça que integra um longo trabalho de investigação sobre a presença cigana em Portugal, que a primeira referência à palavra cigano é o poema As Martas de D. Jerónimo (1510), de Luís da Silveira1, que “atribui um ‘engano’ a ‘uma cigana ou muito fina feiticeira’”, e a segunda é a peça Farsa das Ciganas, de Gil Vicente, apresentada em 1521 a D. João III, em Évora. Em palco, quatro mulheres procuravam o público para lhe ler a sina. E se cinco séculos depois as comunidades ciganas são entendidas como migrantes por alguns cidadãos, em parte também se deve à disseminação de estereótipos e ao silenciamento histórico que persiste como uma raiz que resiste a ser arrancada.
Por sentir que não faria sentido pensar uma peça sobre anticiganismo sozinha, Teresa V. Vaz convidou Maria Gil para co-encenar. Estiveram um mês à volta de ideias, referências, preconceitos e mitos, enquanto iam traçando as diretrizes de um espetáculo que ia acabar por ser construído a várias mãos. Ambas traziam a bagagem que carregam na mochila e encontraram um ponto onde os seus caminhos se cruzam, assumindo todos os restantes em que divergem. Maria Gil é atriz, vimo-la com a sua família no filme Cães que Ladram aos Pássaros (2019) da realizadora Leonor Teles, e mais recentemente na série da RTP Braga (2023), e tem um percurso de relevo no ativismo cigano em Portugal. É mulher e cigana, existe e resiste — como escreveu num cartaz que levou para uma manifestação no Porto, em maio de 2017.
Neste encontro com Teresa V. Vaz, Maria Gil tem consciência de que Teresa está “a ver de fora” — mas o seu olhar não é, por isso, menos válido. É diferente e há que assumi-lo. “Não é uma necessidade de dizer: ‘não, atenção que eu é que sei’; não é essa a questão. Mas eu sou uma pessoa cigana, e trouxe comigo e com o resto da equipa, porque temos mais dois corpos ciganos, outras leituras”. E todos têm “emergências diferentes”, menciona para sublinhar a importância de assumir a pluralidade que existe na ciganidade. Refere-se ao ator Vasco Lello e à bailarina Kali Musa, que se juntaram ao elenco depois da Bestiário ter feito uma chamada aberta à procura de intérpretes ciganos — e que são os dois rostos do cartaz.
Já terminado o aquecimento, ouvimos “Burgalesa” de Galandum Galundaina, “Baile de Verão” de José Malhoa e “La Estrella” de Vicente Amigo com Estrella Morente. E se nas duas primeiras há qualquer coisa maquinal, quase de procura pela perfeita repetição, na última há uma dança desconcertante de Kali Musa que interpela quem assiste e desafia as regras das máquinas à sua volta. A voz hipnotizante de Estrella Morente, a mesma do tema principal de Volver (2006) de Pedro Almodóvar, rima com os gestos de Kali Musa e perdura no tempo. Fica-nos na memória quando dali saímos.
Há muito que é dito pelo movimento. E ainda nem chegaram as palavras.
Antes de mais, nomear a norma
Havia um compromisso quando o ensaio no Pólo das Gaivotas terminou: assistir a pelo menos mais um. Até ao ensaio na Tóbis, lugar icónico na história do cinema português, em Lisboa, o processo da Bestiário e Maria Gil ia continuar. E ao contrário dos habituais ensaios de imprensa, onde se vê um excerto próximo da versão final e se conversa brevemente com a equipa, a Bestiário permitiu ao Shifter acompanhar Homo Sacer num outro tempo. Sem pressas, sem necessidade de escrever para amanhã, com possibilidade de ver e pensar, voltar a ver. Do primeiro ensaio tinham ficado alguns registos escritos no caderno e algumas memórias que provaram ser difíceis de apagar. Ecoava uma frase de Maria Gil dita no final do ensaio no Pólo das Gaivotas, em conversa com a figurinista: “Quero que se possa vestir por cima, a partir do céu, como dizia a minha avó”.
Há muito de Maria Gil em Homo Sacer, mas este não é um espetáculo biográfico. Poder vestir “a partir do céu” traz para o palco a sua avó, ver Vasco Lello pentear o cabelo de Kali Musa num momento de afeto pode trazer os seus pais, mas escancara as suas histórias. Esses detalhes da sua vida, que são também detalhes da sua ciganidade, surgem organicamente e mostram que o saber ancestral também é alimento para a existência e resistência. “Quando nós falamos de pessoas ciganas, falamos da ancestralidade, do resgatar da ancestralidade. Não estamos a falar da página 35, do livro etc. e tal. Estamos a falar das nossas vivências. A minha filha, muito bem explica: as minhas avós foram a minha ancestralidade, eu sou a ancestralidade dela, ela quer ser a ancestralidade da humanidade”, explica.
E se este é um espetáculo que não dá lições de História, também não deixa de a contar. Aqui as palavras surgem apenas nos momentos necessários para dar conta do que ainda é necessário dizer. “Em 1943 uma parte do campo Auschwitz-Birkenau era destinada aos ciganos, 23 mil”, diz a dado momento Vasco Lello. Mas embora exista um Dia da Memória do Holocausto Cigano, há uma parte quase nunca contada quando se fala deste que foi um dos mais terríveis momentos históricos. A comunidade Roma chamou-lhe de Porajmos, que significa algo como devorar. Famílias inteiras foram dizimadas. E foram mais de 23 mil — estima-se que entre 250 mil e 500 mil cidadãos Roma, Sinti e Kale tenham sido vítimas do nazismo entre 1933 e 1945.
É que a História Cigana tem sido silenciada. Uma e outra vez. Não é contada dentro da chamada História Oficial. Esse silenciamento faz parte de um projeto maior, mostra Roswitha Scholz no livro que dá nome a esta peça:
“O estereótipo do cigano parece ser o mais apropriado de todos os estereótipos racistas para nos esclarecer a respeito da subjetividade capitalista burguesa. O sujeito burguês vê nele a um tempo, como reflexo num espelho, os seus medos primordiais (…)”2.
No segundo ensaio, os corpos ciganos que teimam em não ser domesticados pelos corpos-não-ciganos-máquina lembram a reclamação que Jota Mombaça fez em 2017: é preciso nomear a norma. “Nomear a norma é o primeiro passo rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência, porque a norma é o que não se nomeia, e nisso consiste seu privilégio. A não marcação é o que garante às posições privilegiadas (normativas) seu princípio de não questionamento (…)”, lê-se no texto “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!”3.
O anticiganismo surge na banalização de não nomear a norma, de tornar todo e qualquer cigano no “outro”; no tal Homo Sacer, à luz do pensamento de Agamben. No palco, escancara-se o processo de desumanização e o preconceito e, algures entre o choro e o riso, pega-se num espelho para que quem assiste se possa reconhecer na norma. “A realidade é tão absurda que às vezes só lá vai com caricatura”, diria mais tarde Miguel Ponte.
Se em registos como Farsa das Ciganas, o clássico Carmen ou telenovelas como A Herdeira se mostra uma representação estereotipada de pessoas ciganas, em Homo Sacer o padrão está em quem repetidamente insiste na assimilação e desumanização destas comunidades; em quem profere estereótipos em objetos culturais, em serviços públicos, na vida de todos os dias. Porque a ciganidade, ou as ciganidades, não vivem dentro de um padrão.
Se este espetáculo não mostra uma representação única do que é ser cigano, mostra, pelo contrário, que é urgente celebrar a pluralidade dentro das comunidades ciganas; dentro de cada pessoa cigana. Em cada história sua. Maria Gil diz: “Nós não somos um símbolo, nós somos este espaço da humanidade, somos este espaço de Portugal”. Kali Musa reclama que “a ciganidade não é só o antigo, é o que nós somos agora também”. Ser cigano é ter Carmen Amaya a dançar uma farruca de calças, contra todas as expectativas para o seu tempo, mas também é ter Kali Musa no ball room. É ter Maria Gil como primeira mulher cigana co-encenadora de uma peça para o Teatro Nacional D. Maria II, mas também a existência de tantas mulheres ciganas que nunca foram ao teatro.
Neste ensaio na Tóbis, a proximidade à data da estreia em Montemor-o-Novo, lugar a que o grupo regressa depois de uma residência artística no Espaço do Tempo, o espaço para o erro e a experimentação continuam lá. Mas há uma sintonia entre Vasco, Miguel, Helena, Afonso, Kali e Teresa que nos lembra que cada processo de criar também é feito disto: da maturação do objeto criado e da partilha de um espaço comum entre o grupo. Ainda sem guarda-roupa, desvendam um elemento de cenografia que nos transporta para o princípio de tudo. Será que somos tão diferentes no momento em que nascemos?
Não querer mais passar despercebido. E celebrar
“O Vasco uma vez disse uma frase que eu adorei. Estávamos a falar sobre usarmos só os corpos ciganos ou os corpos todos, e o Vasco diz: ‘É que nós não somos assim tão diferentes’”, recorda Miguel Ponte. Vasco Lello sorri. O que quer dizer não é que todos têm vivências semelhantes, mas que no fundo são todos humanos. São corpos humanos com as suas subjetividades. Numa videochamada dias depois da estreia de Homo Sacer em Montemor-o-Novo — não muito longe de onde D. João III assistira à peça de Gil Vicente há cinco séculos — , Vasco Lello, Miguel Ponte e Kali Musa têm no olhar a adrenalina de quem acaba de iniciar uma viagem de contacto com os públicos. Primeiro Montemor, depois Elvas e Serpa. Mais tarde Ílhavo, Viseu, Bragança e por fim Lisboa. Mas estes últimos só lá para 2025. Homo Sacer insere-se na programação da Odisseia Nacional, o projeto do Teatro Nacional D. Maria II que percorre o país enquanto o edifício do Rossio está em obras.
No dia anterior tinham tido uma sessão com escolas, seguida de uma conversa. Estes momentos de partilha em que podem explicar mas também ouvir o que quem assistiu tem para dizer e questionar são importantes para a reflexão de todo o grupo, contam. Até agora, sentem que têm conseguido tocar os públicos, mas não existe, nem nunca existiu, uma dimensão pedagógica. “Aquilo que fazemos bem é teatro. E o teatro pode ter depois estas vertentes todas, mas em última análise o nosso papel é apresentar um espetáculo. E tudo o que resta que vier de bom é bónus, e é claro que também queremos causar algum impacto”, diz Miguel. Não querem ser condescendentes. As interpretações, ao público pertencem.
Mas se há uma certeza para Vasco Lello, que se tem dividido entre o teatro e a televisão com a série O Clube, e Kali Musa, que integra o elenco do Fashion Freak Show de Jean Paul Gaultier e é um nome conhecido na cena do ballroom, é de que não têm de esconder a sua ciganidade. Em Homo Sacer apresentam-se como intérpretes e ciganos, com orgulho no que isso representa.
“É uma coisa que eu já estava habituada a fazer desde criança, em todo o meu percurso. Tentar camuflar-me, não dar muito nas vistas, não falar sobre os meus pais, não falar sobre a minha família. Acho que é mesmo importante as pessoas serem o mais honestas possível com elas mesmas. Quando eu comecei a sê-lo, muitas coisas na minha vida começaram a aparecer. Este projeto apareceu”, partilha Kali Musa. Vasco explica que nem sempre é sobre tentar esconder, mas sobre tentar adaptar-se à sociedade para viver com o mínimo de constrangimentos possível. “Era sobre tentar passar um bocadinho ao lado, não expressar claramente. Acaba por ser sempre uma coisa externa que nos faz sentir mal com isso”.
Vasco Lello, Kali Musa e Maria Gil, com a Bestiário, mostram que já não é tempo de esconder. É tempo de mostrar, tornar visível, celebrar. E se Homo Sacer não vai milagrosamente resolver um problema estrutural de representatividade e representação cigana, vai, pelo menos, desarrumar os conceitos anticiganistas também presentes na instituição Teatro e provar que pode ser diferente; tem de ser diferente. No palco como na vida.
- As Martas de D. Jerónimo (1510), de Luís da Silveira, integra o Cancioneiro Geral (1516) de Garcia de Resende. ↩︎
- Scholz, R. (2014) Homo Sacer e os Ciganos – o anticiganismo — reflexões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno, Lisboa: Orfeu Negro: 93 ↩︎
- Mombaça, J. (2017) Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência! in: Pedrosa, A.; Mesquita, A. Histórias da sexualidade: antologia. São Paulo: MASP: 301-310 ↩︎
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