Completam-se três meses desde que venceram ao espírito guerreiro de Paulo Vaz. A luta vai sendo romantizada, mas não nos esquecemos – não nos deixam esquecer – que ela continua acumulando vítimas. Há três meses, foi mais um homem trans para as estatísticas, no país que mais mata pessoas trans. Foi o Popó. E, por muito necessária que fosse uma reflexão sobre o que aconteceu, era necessário dar tempo ao luto. Não era momento de acrescentar ruído, nem de trazer peso para quem mais sofreu pela perda. Passados estes meses, será um momento apropriado para pensar um pouco sobre dois conceitos e como estes se interligam com a morte do Paulo: não-monogamia política (NMP) e responsabilidade afetiva.
Era público que Paulo Vaz mantinha um relacionamento aberto com o seu marido, Pedro HMC (do canal de YouTube Põe na Roda), um homem cisgénero branco. Nos últimos anos, é cada vez mais comum ouvir-se falar sobre não-monogamia. Mas, infelizmente, ainda são incomuns os artigos sobre não-monogamia que façam alguma menção a racismo, transfobia, sexismo ou capacitismo. E nas reportagens em media tradicionais, o debate costuma ser enviesado, seja por orientação de quem entrevista, por ordem de quem publica, ou pela experiência subjetiva das pessoas escolhidas para serem entrevistadas — normalmente, pessoas brancas e cisgénero.
Mas pensar sobre como todas essas opressões impactam a vivência e luta não-monogâmicas é urgente, pois, pelo contrário, a maioria das experiências dissidentes da monogamia continuarão a operar numa lógica capitalista. A não-monogamia, assim grafada, enquanto conceito político, não é sobre sexo, nem sobre o número de parcerias sexuais. Não é sobre um consumo desenfreado de corpos, sem qualquer responsabilidade afetiva para com as pessoas com quem nos relacionamos. A NMP assenta, primeiramente, no respeito e cultivo da autonomia de todas as pessoas envolvidas.
É certo que parte desse processo é parar de responsabilizar outras pessoas pelos nossos sentimentos e emoções. Porém, uma coisa é o processo que deve ocorrer internamente, e outra é aquele que ocorre nas relações interpessoais: ainda que nós, enquanto sujeitos, tenhamos o dever de não responsabilizar alguém por aquilo que sentimos, também é verdade que devemos atentar às consequências que os nossos atos podem ter nos nossos afetos. E é sabendo isso que, enquanto nos relacionamos, devemos construir as nossas relações — de amizade, amorosas, sexuais — com empatia e consciência (racial, de classe, de género, etc.). É preciso, sempre, questionar: “que sujeito é este com quem me relaciono? Que corpo é este com que me envolvo?” É preciso politizar os nossos afetos.
A morte de Paulo Vaz deve servir para nos lembrar das incontáveis violências a que estão sujeitas as pessoas trans e/ou não-binárias que se relacionam com pessoas cisgénero — na verdade, essas violências são quase que inerentes para esses corpos, seja com quem for que se relacionem. Como homem trans e gay, Paulo teve que lidar com o falocentrismo, quase omnipresente na forma como homens gays e cis se relacionam. Teve que lidar com a estrutura do patriarcado, que questionava a sua identidade de género. Enquanto polícia civil no Brasil, teve que viver (e participar) na imensa violência cometida, pela instituição que representava, sobre determinados corpos. E teve que lidar, quotidianamente, com transfobia, que cerceia o acesso aos afetos. Corpos trans, não-binários, gordos, de pessoas com deficiência são, usualmente, corpos indesejados; e corpos não-brancos, quando desejados, são-no, tantas – demasiadas – vezes, numa lente objetificadora.
No dia que antecedeu à morte de Paulo, foi publicado indevidamente, na conta de Instagram de Pedro HMC, um vídeo íntimo do youtuber, sem o seu consentimento. Nele, Pedro surge num ato sexual com outro homem (branco) cis-género. E ainda que Pedro, na entrevista que deu recentemente com Léo Dias, tenha razão – a decisão de Paulo terminar a sua vida é multifatorial –, é difícil argumentar que o momento não terá sido um dos gatilhos finais. A enxurrada de comentários transfóbicos que se seguiram ao vazamento, vindos na sua maioria de homens gays, e que apanharam Paulo em mais um plantão na polícia, podem muito bem ter sido o que, infelizmente, ditou o trágico desfecho. Na verdade, o correto seria dizer que Paulo foi suicidado: é o resultado de uma violência que vem de fora para dentro, arrasando toda a esperança e vontade de continuar a resistência, e não de uma vontade sua de terminar a vida.
Precisamos de refletir sobre responsabilidade afetiva, e como a nossa sociedade patriarcal, racista, heteronormativa e capacitista impede alguns corpos e subjetividades de viverem relações saudáveis, de acessarem aos afetos. Afinal, estes ainda lutam para serem reconhecidos como pessoas, em todas as suas dimensões. É preciso compreender que, ao nos relacionarmos com corpos sistematicamente violentados, é necessária uma ética relacional revolucionária. O pensamento em relação ao amor de bell hooks, feminista negra, é um caminho importante para encontrar esta ética: são as ações que constroem os sentimentos. É necessário ação para romper com a reprodução de atitudes violentas e dolorosas para com o outro.
Que não restem dúvidas: Pedro não tem culpa do sucedido, e deve ser acolhido por nós. A responsabilidade efetiva da morte de Paulo, essa, sabemos de quem é, mas vale relembrar, mais uma vez – e sempre: Paulo “Popó” Vaz, como tantas pessoas trans, foi suicidado pela violência transfóbica. E a responsabilidade também é nossa, de todas as pessoas cis, que a continuamos a permitir.
É urgente refletir, em pleno mês do orgulho, qual a responsabilidade efetiva que homens gays têm para com a comunidade LGBTQIA+. É necessário assegurar a plataforma para o tanto de vozes não-brancas, de mulheres lésbicas, de pessoas bissexuais, trans, não-binárias, que precisamos ouvir. Vamos colocar os nossos corpos, e o nosso privilégio cis, no campo de batalha; vamos proteger os nossos irmãos e irmãs trans.
Ainda não fomos longe o suficiente. Ainda não fizemos o suficiente. Desculpa, Popó.