Com um nome difícil de pronunciar, Serreleis, – e não “Serreleixe” ou “Serrelejo” –, é uma aldeia situada no litoral norte de Portugal, a cerca de 9 quilómetros, ou quinze minutos de carro, da capital de distrito, Viana do Castelo. Cerca de 1000 pessoas habitam nesta que é uma das muitas terras portuguesas onde os transportes escasseiam, há falta de serviços de proximidade e a rede de saneamento básico ainda não cobre todas as moradias.
Em muitos sentidos, Serreleis continua à espera das promessas que a conquista da democracia auspiciava. E contudo, é dos lugares mais inesperados que surgem, por vezes, as experiências mais significativas, incluindo as democráticas.
A 25 de abril de 1999, volvidos 25 anos sobre a Revolução dos Cravos, os serrelenses acorreram às urnas, servindo-se de um instrumento até então nunca utilizado em Portugal, o referendo local.
Em causa, estava a localização de um futuro equipamento desportivo, cuja importância era reconhecida por todos. A pergunta – “Concorda com a construção de um campo de jogos para desportos diversos (polidesportivo) na parte de trás do Salão Paroquial de Serreleis?”, – era simples. Mas por detrás da questão, aparentemente inócua, estava uma comunidade que, vendo-se dividida entre o “SIM” e o “NÃO”, foi profundamente alterada.
“Ficou sempre aquela marca”, diz Eusébio Amaro, de 58 anos. À medida que a conversa avança, vai recordando o que achava esquecido. Não é homem de ficar preso ao passado, especialmente um que assume ser difícil. “Lembra-me coisas que não gosto de reviver.”
Eusébio refere-se a um dos resultados do referendo, a divisão entre as pessoas, muitas delas da mesma família, “num meio pequeno, onde todos se conhecem”. Divisão é, aliás, a palavra que mais vezes o oiço dizer. Mesmo assim, recebe-me com simpatia e responde diligentemente às minhas perguntas. À cabeça de todas, a seguinte: Porquê um referendo?
“Eu ia votar contra, disse que não ia resolver, mas se todos votavam a favor…”
É difícil precisar em que data começa a história dos acontecimentos que levaram à realização do primeiro referendo local da democracia portuguesa.
Desde 1988 que a Junta de Freguesia de Serreleis, à época presidida por Manuel Casanova, pretendia construir um polidesportivo perto do largo da igreja. À doação dos terrenos por parte de dois fregueses beneméritos, seguiu-se um processo de loteamento que ficou concluído em 1993. A ideia de um campo de jogos que servisse toda a freguesia e, em particular, os mais jovens, só se tornou um problema anos mais tarde, em 1998.
Quando Filipe Miranda, então presidente da junta, se preparava para dar início à construção, o pároco, Monsenhor Joaquim Vilar, fez saber que não estava de acordo. No seu entender, o local escolhido interferiria com as aulas de catequese que tinham lugar a poucos metros, no Salão Paroquial. A distração e o barulho vindos de fora privariam as crianças e jovens do direito à educação cristã, numa freguesia onde comunidade e paróquia ainda são praticamente sinónimos.
“Eram duas pessoas com muita influência”, assegura Augusto Soares, que encontro junto à sede da junta, situada a escassos metros do local que motivou a disputa. Em 1999, era ele um dos sete membros da Assembleia de Freguesia que votou, por unanimidade, a proposta de realização de um referendo.
“Eu ia votar contra, disse que não ia resolver, mas se todos votavam a favor…”
Soares procura registos desse tempo nas dezenas de pastas de arquivo que se acumulam nas prateleiras da junta. Entre editais, comunicados e recortes de jornal, está a ata da reunião de dezembro de 1998 que desencadeou um processo até então inédito em Portugal.
“Eu tinha experiência autárquica e de legislação autárquica e, portanto, lembrei-me de propor um referendo.”
A figura do referendo local está prevista na Constituição Portuguesa, no artigo 240.º, desde a revisão constitucional de 1982. Até então, não se admitia a tomada de decisão direta por parte dos cidadãos. A democracia era de caráter estritamente representativo.
A realização de um referendo local está sujeita à aprovação do Tribunal Constitucional e depende da reunião de alguns critérios. A matéria a sufragar deve, entre outras coisas, ser clara, de resposta positiva ou negativa e da competência exclusiva ou partilhada dos órgãos das autarquias locais.
O assunto em discussão, a localização do polidesportivo, cumpria todos estes critérios. Ao mesmo tempo que um acordo entre padre e presidente, Fábrica da Igreja e Junta de Freguesia, parecia cada vez mais difícil de alcançar.
“A falar é que as pessoas se entendem”, diz Eusébio Amaro. Mas as tentativas de diálogo não resistiram à posição irredutível do padre e do presidente. É que apesar da grande estima que ambos inspiravam nos fregueses, Filipe Miranda e Joaquim Vilar eram donos de “personalidades fortes”. A palavra “teimosos” surge mais do que uma vez em conversa.
Pensou-se então que o melhor seria ouvir o que os cidadãos tinham a dizer. “A razão talvez estivesse dos dois lados, mas chegou-se a uma ruptura e não houve hipótese.” Além do mais, um referendo “democraticamente, não era má ideia”, concede Augusto Soares, que acrescenta: “Isto não é nosso, o povo é que manda e decide.” Assim foi.
A ideia do referendo partiu de Sebastião Seixas, advogado, entretanto reformado, e membro da Assembleia de Freguesia em 1999.
“Eu tinha experiência autárquica e de legislação autárquica e, portanto, lembrei-me de propor um referendo. A Assembleia de Freguesia aprovou e depois seguiu para o Tribunal Constitucional que também aprovou.” Todo o processo foi relativamente rápido. Da submissão da proposta ao dia da votação, passaram-se 4 meses.
A biblioteca da casa de Sebastião Seixas, onde sou recebida, revela um homem preocupado com os grandes desafios da democracia. No seu entender, esta “não se esgota nas eleições e passa também por ouvir diretamente os cidadãos.”
Por isso, defende que os referendos locais sejam mais utilizados. “Em democracia, há que discutir tudo e se houver instrumentos jurídicos para tal, não há guerras civis, nem há agressões, nem extremismos”. Ecoando alguns dos argumentos defendidos pelos teóricos da democracia participativa, nos anos 60 e 70, Sebastião Seixas entende que a participação, de base local, pode ser um antídoto contra a radicalização e o afastamento dos cidadãos da política.
Em Portugal, a tradição de utilização de instrumentos de democracia direta, como os referendos, não é forte. Contrasta com a realidade de países como a Suíça, onde, num só ano, um cidadão pode ser chamado às urnas tantas vezes quantas um britânico em toda a sua vida.
Para Sebastião Seixas, a explicação está nos obstáculos à participação impostos pelo nosso regime jurídico. É possível propor-se um referendo por iniciativa popular, ou seja, através da recolha de assinaturas de cidadãos recenseados. Contudo, não só o número de assinaturas exigidas é elevado, como esta recolha não garante que o referendo se venha a realizar. Há que conseguir, primeiro, que a proposta seja acolhida pelo órgão autárquico competente.
Sebastião não está de acordo. Na sua opinião, “para serem mais utilizados, estes instrumentos não podem passar pela aceitação da assembleia de freguesia ou da assembleia municipal.” Atualmente, porém, este passo é obrigatório, uma vez que só as assembleias podem solicitar a apreciação do Tribunal Constitucional. Historicamente, porém, os juízes do Palácio Ratton não são tendencialmente favoráveis a referendos. Das mais de 40 propostas até hoje submetidas, a esmagadora maioria foi chumbada.
Em Serreleis, não se pode dizer que tenha havido propriamente uma campanha. Nas semanas que antecederam o referendo, os partidários do “NÃO” organizaram, pelo menos, duas sessões de esclarecimento, abertas à população. O objetivo era combater a ideia, entretanto instalada, de que a Igreja se opunha à construção de um polidesportivo.
“Cheguei a estar presente numa das sessões”, conta Maria do Carmo Arieira, desde há muito anos catequista na paróquia e uma comunicadora nata.
“A Igreja queria que se fizesse [o polidesportivo]. Mas tendo a Junta outros terrenos, porquê fazê-lo junto ao Salão Paroquial, onde decorriam outras atividades?” Além da catequese, reuniam-se naquele espaço outros grupos de jovens, como os escuteiros. Maria do Carmo já não se recorda da carta endereçada pelos catequistas aos fregueses. Nela, apelava-se à consciência e à fé dos pais e avós. “Não se esqueçam que quem vota são vocês e que, por isso, o futuro da educação cristã dos vossos filhos e netos está nas vossas mãos.”
Para quem defendia o “SIM”, a questão colocava-se noutros termos. Em entrevista à RTP, em 1999, Filipe Miranda lembrava que não só a ideia era antiga, como estava inscrita no programa eleitoral. Além disso, a construção do ringue, a par do campo de futebol que já existia e dos balneários e posto médico que estavam planeados, incluía-se num projeto maior de qualificação da zona central da freguesia. Numa carta dirigida à população, a três dias do sufrágio, Miranda alegava que, aquando da sua vinda para a paróquia, o padre fora informado deste projeto. Para o autarca, o ruído ocasional não era razão suficiente para se protelar uma obra que considerava crucial para o desenvolvimento da freguesia.
“Os pais diziam que não, que não se devia fazer ali e os filhos que sim, que se devia.”
Foram meses de polémica e pouco diálogo. Para Eusébio Amaro, “na política, idealmente, devemos combater as ideias e não o homem. O homem ou a mulher.” Mas a pergunta, de resposta afirmativa ou negativa, convidava à dicotomia e à polarização. O povo entrincheirou-se. “Escreviam-se coisas sem rosto, coisas que ninguém assinava e eram espalhadas pelas caixas de correio.” O referendo levara a que mais pessoas se interessassem e quisessem participar, mas faltavam mecanismos que promovessem a troca de ideias e a deliberação conjunta.
É incontornável associarmos este momento da história da freguesia a um conflito entre os poderes político e religioso. Certo é que numa comunidade pequena, a separação completa entre os dois universos não é possível e, provavelmente, não será desejável. “Acho que ainda hoje, a política e a Igreja deviam trabalhar em conjunto. Uns precisamos dos outros”, afirma Maria do Carmo.
Em aldeias como Serreleis, parece inevitável que as mesmas pessoas assumam papéis diversos, sendo simultaneamente cidadãos e fiéis, representantes e paroquianos. E é nos momentos de maior tensão que estas contradições afloram. “Afastaram-se umas pessoas da Igreja e outras da Junta”, conta Eusébio. Antes ainda do referendo, um membro da Assembleia de Freguesia optou mesmo por apresentar a demissão.
Nas últimas autárquicas, tal como em 2017, Eusébio e Augusto concorreram pela mesma lista. Secretário e membro da Assembleia daquela que é, desde 2013, a União de freguesias de Cardielos e Serreleis, tomaram posse no passado dia 16 de outubro. Têm estado muitas vezes do mesmo lado da barricada, mas nem sempre foi assim.
Em 1999, Eusébio fazia parte da Fábrica da Igreja, ou Comissão Fabriqueira, e bateu-se pela vitória do “NÃO”. Acredita, porém, que a proximidade à Igreja não determinou o sentido de voto dos serrelenses. “Havia pessoas ligadas à Igreja que eram a favor do polidesportivo naquele local e pessoas que mal conheciam o padre e eram contra.”
Já Soares, partidário do “SIM”, em 1999, é de outra opinião. Entende que o conflito era também intergeracional. “Os pais diziam que não, que não se devia fazer ali e os filhos que sim, que se devia.”
“Na altura, foi a novidade. Vamos ser os primeiros!, sem se pensar muito se teria efeitos positivos ou negativos”
Num curto espaço de tempo, Serreleis foi notícia nos principais meios de comunicação social. Padre e presidente, assim como vários populares, deram entrevistas a rádios e televisões.
“Na altura, foi a novidade. Vamos ser os primeiros!, sem se pensar muito se teria efeitos positivos ou negativos”, conta Maria do Carmo. Eusébio corrobora. “Ninguém sabia a dimensão que isto ia tomar.”
No dia do referendo, a importância da questão para os cidadãos refletiu-se na grande afluência: 76.6%. Foram poucos os que ficaram em casa e, por isso mesmo, este foi o primeiro, mas também o único referendo vinculativo da democracia. Isto porque, de acordo com o artigo 115.º da Constituição, “o referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento.”
Mas os serrelenses não foram os únicos a comparecer. Eusébio lembra-se bem desse 25 de abril. “Tanta gente naquele adro, a acumulação de pessoas, os de cá, como é óbvio, e os de fora que vinham ver. Nunca vi tanta gente, só se for numa festa, e às vezes, em algumas, nem tanto.”
O final do dia trouxe a decisão final e pôs fim à especulação. “NÃO”. O povo escolhia, por maioria, que o polidesportivo não seria construído no terreno imediatamente atrás do Salão Paroquial. Mas o resultado só vinha confirmar o sentimento de muitos fregueses. O “SIM” tinha sido derrotado por uma diferença de apenas 15 votos. A aldeia estava dividida.
“Uns gritaram vitória e outros calaram-se, mas como era meio-meio, ninguém ficou contente”
O desfecho não agradou a ninguém. “Uns gritaram vitória e outros calaram-se, mas como era meio-meio, ninguém ficou contente”, conta Augusto Soares.
A vitória, por uma diferença tão exígua, entristeceu Joaquim Vilar que se sentiu “um pouco abandonado.” Quanto a Filipe Miranda, a esta derrota seguiram-se vitórias. “Ele perdeu no referendo, mas não foi por isso que não ganhou as eleições logo a seguir.” E a seguir. Reeleito em 2005, foi Miranda quem inaugurou, no dia 25 de abril desse ano, o polidesportivo que acabou por ser construído junto ao campo de futebol, a poucos metros do local inicialmente pretendido. Com a população jovem a diminuir, o ringue desportivo que prometia animar a freguesia está, hoje em dia, praticamente “ao abandono”.
Um cenário que nem Filipe Miranda nem Joaquim Vilar puderam testemunhar. Para desgosto da freguesia, morreram ambos em 2006. “Não sei se destino, faleceram os dois no mesmo ano” , recorda Maria do Carmo.
Com o passar do tempo e o desaparecimento das duas principais figuras desta contenda, as relações entre a Junta de Freguesia e a Igreja voltaram ao normal. “Tem corrido muito bem, tem havido zelo em haver boa camaradagem.”
Dias antes da nossa conversa, a catequista esteve presente numa reunião da Assembleia da União de Freguesias de Cardielos e Serreleis. Para Maria do Carmo, é importante que as pessoas participem mais e melhor, ouvindo de fonte segura o que se passa e alertando os órgãos locais para as necessidades da comunidade. “Uma coisa é o que ouves numa assembleia, outra coisa é aquilo que passa de boca em boca. Quando passa do primeiro para o segundo, quando o segundo conta, já não sei se conta bem igual.”
A última assembleia de freguesia foi bastante mais participada do que o habitual. Na ordem de trabalhos, estava a doação de um terreno por parte da Junta de Freguesia à Paróquia de Serreleis, – uma promessa da época do referendo que se cumpre agora, mais de duas décadas depois. No terreno doado, construir-se-á um muito desejado Centro Social. O Salão Paroquial, onde ainda hoje têm lugar as aulas de catequese, será demolido para dar lugar a uma avenida.
Esta solução vai de encontro a preocupações antigas de Sebastião Seixas. Em 1999, defendeu o “NÃO”, não por causa do ruído, mas por razões estéticas. “A igreja de Serreleis é o monumento mais importante que a freguesia tem. Sempre pensei que, um dia mais tarde, se podia alargar a frente da igreja para que aquele pátio ficasse mais amplo.” A sensação com que fico é a de que se fecha um ciclo.
Mas eis que, Eusébio Amaro, me faz entrever um possível futuro. Já a conversa vai longa quando me diz: “Não te admires que a curto prazo, haja outro referendo.” Não consigo disfarçar o espanto. Eusébio explica.
A reorganização do território das freguesias (RATF), decretada pelo governo em 2013, não auscultou nem partiu da vontade das populações. Em casos como o de Serreleis e da vizinha Cardielos, foi ignorada a história da relação entre as comunidades. “No tempo dos meus avós, era quase uma fronteira que havia aqui, entre Serreleis e Cardielos”.
E se atualmente tem sido possível trabalhar em conjunto, isso não quer dizer que a vontade de conservar a identidade e a autonomia de cada freguesia tenha diminuído. Antes pelo contrário. “Temos capacidade para gerir o que é nosso e ficávamos mais libertos”, argumenta Eusébio Amaro. “Acho que cumprimos todos os requisitos para sermos novamente independentes.”
Eusébio refere-se à lei aprovada este ano pela Assembleia da República que estabelece os critérios para a criação, modificação e extinção de uma freguesia. Devem verificar-se requisitos relativos à prestação de serviços à população, à eficácia e eficiência da gestão pública, ao território e população, à história e identidade cultural e, finalmente, à vontade política da população. O texto da Lei n.º 39/2021 explicita, contudo, que esta vontade não é expressa diretamente, por meio de referendo, mas antes “manifestada pelos órgãos representativos”. A proposta de criação de freguesia tem obrigatoriamente de ser aprovada pela Assembleia de Freguesia, pela Assembleia Municipal, e, finalmente, pela Assembleia da República.
Certo é que, a ser constitucional, um referendo sobre esta matéria deixaria pouco espaço democrático aos representantes que quisessem contrariar a vontade do povo. No programa da lista vencedora das últimas autárquicas, em que se propunha a realização de um novo referendo, lia-se o seguinte: “Contrariamente ao processo inicial de agregação que foi imposto, agora temos possibilidade de todos sermos escutados.”
“Se não for mais nada, no fundo foi democracia. O povo escolheu.”
Vinte e dois anos depois, a democracia continua a querer nascer em Serreleis. Quer tornar-se uma história do quotidiano, que agregue e concilie, em vez de um evento isolado, que polarize e afaste as pessoas umas das outras.
Quanto ao referendo, Maria do Carmo resume. “Se não for mais nada, no fundo foi democracia. O povo escolheu.” É no povo que, afinal de contas, reside a soberania. E se um referendo não servir para mais nada, serve, pelo menos, para que não nos esqueçamos nem duvidemos disso.
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