A maternidade não é um processo linear. Os tópicos de conversas sobre maternidade, ou sobre o processo de ter filhos, tampouco o são. Por um lado, abrem-se cada vez mais portas na compreensão da complexidade que existe em nos tornarmos mães ou pais, mas parece existir também uma pressão para ser a mãe ou o pai perfeita/o. Não tínhamos já ultrapassado a fase – essa fase que dura há séculos – em que se espera que se faça isto ou aquilo, que se seja como esta ou aquela?
Desconstruir a maternidade tem sido quase uma missão de Tati Bernardi, escritora brasileira, que desde maio de 2020 tem mostrado que para se ser “uma mãe boa” não se tem de seguir um caminho linear. No podcast Calcinha Larga, onde se junta à youtuber Helen Ramos (HellMother) e à guionista Camila Fremder, fala sobre a montanha russa que é gerar uma vida, educar, lidar com expectativas e manter a sanidade mental – sempre num tom muito seu, com um humor que ao fim de alguns episódios nos apercebemos ser tão seu. Nos seus livros, esse humor também lá está. Tati Bernardi sabe rir de si mesma.
Quando escreveu “Depois a louca sou eu” assumiu a escrita na primeira pessoa, de quem escreve para arrumar a cabeça, mas também para chegar a quem se possa identificar. Falou-nos sobre a sua ansiedade, os seus ataques de pânico, as taquicardias, o desespero. Mas o seu tom, capaz de nos sacar uma gargalhada quando menos esperamos, estava lá. É suposto rirmo-nos de um assunto tão sério? Com Tati, sim, é possível. Este mês, enquanto decorriam as feiras do livro de Lisboa e do Porto, Tati Bernardi publicou o seu primeiro romance em Portugal, pela Tinta da China: “Você nunca mais vai ficar sozinha”. Foi com o romance de Tati que dei gargalhadas inesperadas nas viagens de autocarro que ficaram a parecer mais curtas, e nos tempos de espera por uma consulta no hospital.
“Você nunca mais vai ficar sozinha” segue Karine, uma mulher 35 anos natural do Belenzinho, que descobre que está grávida de uma menina. Quando dá a notícia a sua mãe, a frase de boas-vindas que recebe é “você nunca mais vai ficar sozinha”. Dá que pensar. Karine não é uma grávida saltitante, que se entusiasma com tudo no processo de gestação, e há momentos em que queria mesmo era ficar sozinha. Que tudo voltasse a ser como antes. Mas mostra-nos que, no turbilhão de emoções em que vive, a honestidade e a validação dos seus sentimentos é um passo essencial para que não se anule – o que está longe de significar anular a maternidade ou o amor que nutre já pela sua filha. Seguindo as palavras de Karine, conhecemos a sua família disfuncional – e é bastante provável que encontremos uma tia nossa numa tia sua, ou um pouco da sua relação com a mãe na nossa relação com a nossa mãe.
Foi sobre “Você nunca mais vai ficar sozinha” que conversei com Tati Bernardi.
Passamos o tempo todo a querer não ser igual aos nossos pais, e a certa altura na nossa vida percebemos que estamos precisamente a mimetizar alguns dos seus comportamentos. Esta é uma preocupação de Karine, personagem principal de “Você nunca mais vai ficar sozinha”. Esta sensação resolve-se com o processo de maternidade ou, pelo contrário, complica-se?
Tati Bernardi: Acho que Karine se faz justamente essa pergunta quando engravida. O meu livro é sobre esse limbo simbólico da gravidez, quando você não é mais somente filha, pois tem um bebê na barriga; tampouco é mãe, pois o bebê ainda não nasceu. Karine se pergunta se repetirá as loucuras da família na forma como vai criar a filha (e também se a filha vai nascer sob essa genética de maluquices) e por isso relembra todo esse histórico de esquisitices dos familiares, sobretudo da mãe.
A mãe de Karine é bastante ligada à filha. Na semana em que comecei a ler o livro, saiu num jornal português um artigo sobre “mães narcisistas” que me lembrou muito esta relação entre a mãe e a filha de “Você nunca mais vai ficar sozinha”. Como é que conseguimos criar relações saudáveis com as nossas filhas quando a nossa relação com a nossa mãe nem sempre é saudável?
T.B.: A Karine e sua mãe são inspiradas na minha relação com a minha mãe. Minha mãe teve uma mãe muito forte, mandona, presente, mas pouco afetuosa. Minha mãe conseguiu superar essa falta e é bastante carinhosa comigo. Porém, trouxe de herança familiar um jeito bem crítico e talvez agressivo de mostrar preocupação com a filha. Eu agora estou tentando criar minha filha sem esse modus operante do bullying que é um clássico na minha família materna. E também tento não fazê-la perceber que eu estou constantemente com medo de tudo, pois eu sou bastante neurótica com perigos e doenças. Acho que ser mãe é, para além de mil coisas, ser uma mãe melhor do que a sua mãe pôde ser.
“Você nunca mais vai ficar sozinha” é o título do seu primeiro romance; é também uma frase com bastante peso. Quando pensa nela refere-se a uma relação ancestral que vem de todas as mulheres de uma família e se prolonga no momento da gravidez? Uma ideia de sororidade entre mãe e filha? Ou é mesmo uma sensação de conforto, de termos alguém que à partida estará sempre lá para nós?
T.B.: Certamente podemos considerar essa sua interpretação como uma das principais. Mas eu pensei nesse título porque quando eu contei pra minha mãe que estava grávida de uma menina, a primeira coisa que ela respondeu foi essa frase “você nunca mais vai ficar sozinha” e na hora eu senti um misto de sentimentos opostos. Primeiro porque tenho pavor da solidão e depois porque tenho pavor de nunca poder ficar sozinha pra escrever e usufruir da minha vida individual e íntima.
“[O]s pais precisam enxergar quem é aquela criança e não ficar brigando para aquele ser humano, que é OUTRO e não um apêndice ou objeto deles, caber em seus sonhos.”
É importante olhar também ao contexto de Karine, filha de pais divorciados. “Peça pro seu pai” era uma das frases que ela ouvia por parte da sua mãe, durante a sua adolescência — para alguns filhos de pais divorciados algumas destas passagens podem ter soado bem familiares. Há certos limites que se devem estabelecer numa relação de mãe e filho/a (ou pai e filho/a) num divórcio?
T.B.: A principal coisa é que uma mãe jamais fale mal do pai para um filho e que um pai jamais fale mal da mãe para um filho. Alienação parental é crime e é um desastre pra cabeça de uma criança.
Karine está rodeada de mulheres que acham que sabem como é ser e agir da melhor forma — a sua mãe, as suas tias, mas também as mulheres que eventualmente pode encontrar no curso pré-parto. Como é que se lida com constantes opiniões (os momentos Porra a Avó da Criança, como diriam no Calcinha Larga)?
T.B.: Eu lidei expulsando todo mundo da minha casa. Quando minha filha completou dois anos voltei a fazer as pazes com todas essas mulheres da família que se metiam demais e me desrespeitavam de certa forma.
“Não é porque uma mulher casada engravida que ela se vai necessariamente comportar como a típica mulher casada que engravida”, diz numa das passagens do livro a Karine. Ainda existe uma expectativa social do que é ser “uma mulher casada que engravida” — ou até “de uma mulher que engravida”, no geral?
T.B.: Sim, esperam que a gente só tenha desejos a respeito daquele bebê e daquela vidinha cotidiana.
Falando em expectativas, Karine vive um pouco pressionada com as expectativas que a mãe tem dela, e reclama também de quem espera que o seu bebé dê certo. Em que sentido é que as expectativas que se criam de pais para filhos podem prejudicar as relações entre ambos?
T.B.: Porque os pais precisam enxergar quem é aquela criança e não ficar brigando para aquele ser humano, que é OUTRO e não um apêndice ou objeto deles, caber em seus sonhos. Isso é colaborar infinitamente para que uma pessoa seja infeliz, maluca e solitária.
“Você nunca mais vai ficar sozinha” foi publicado num momento de pandemia, em que o Brasil passa por diversas dificuldades. No governo Bolsonaro, a gravidez é vista como um processo “familiar”, tal como em todos os governos de extrema direita que crescem na Europa — o que explica muito sobre a sua posição quanto ao aborto. Como é ser uma mulher na resistência do governo atual do Brasil?
T.B.: Eu torço todos os dias para que o Bolsonaro seja empichado. Não basta perder nas próximas eleições (o que já sabemos que irá acontecer), ele precisaria ser empichado e preso para que a gente volte a nos respeitar como país e para que outros fascistas como ele não alcancem o poder.
Há um tom muito Tati Bernardi no livro. Com referências de psicanálise, a piada desempoeirada, os detalhes que quase conseguimos visualizar como se estivessemos lá. Sente que encontrou o seu tom de escrita? Acredita que quando o encontramos é um caminho que se inicia com outra confiança?
T.B.: Eu escrevo sobre mim, nesse estilo, desde que comecei a escrever, há 20 anos. O texto e a personagem amadureceram, mas acho que é o mesmo estilo.
Sabermos, ou conseguirmos, escrever sobre nós também é uma forma de nunca mais ficarmos sozinhas?
T.B.: Sim, acho que escrevo pra encontrar no mundo outros angustiados como eu.
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