Da disciplina à auto-exploração: um encontro entre Michel Foucault e Byung Chul-Han

Da disciplina à auto-exploração: um encontro entre Michel Foucault e Byung Chul-Han

30 Agosto, 2021 /

Índice do Artigo:

As práticas de poder de Michel Foucault e a "sociedade de produção" de Byung Chul-Han no mundo em que vivemos.

A viragem do século virou consigo a página das relações de poder e de dominação. Passou-se de uma sociedade disciplinar centrada no poder coercivo para uma sociedade em que o indivíduo se vigia a si próprio, se autoexplora e acha que essa é uma forma de realização sem ter consciência de que se trata de uma nova forma de dominação. Ao invés de ter um caráter negativo – através da negação de liberdades -, a liberdade adquire antes um carácter permissivo e sedutor. O poder biopolítico é transformado em poder psicopolítico.

As metamorfoses do poder

Ao longo da história, as formas de poder foram-se alterando à medida que as formas de produção laboral e dos indivíduos foram evoluindo e tornando-se cada vez mais sofisticadas. O poder soberano é a forma de dominação característica da era Feudal. É o poder da espada. A dominação dos sujeitos da sociedade é feita através do uso da força e da coação, sustentadas pela legitimação do direito divino e pelo poderio militar. A coação era exercida pelo uso da força. O poder da espada controlava os recursos e, consequentemente, as pessoas. Quem não disponibilizava parte das colheitas e dos recursos necessários ao conforto do senhor feudal era punido através da força e da violência física. Aos ladrões cortavam as mãos e aos traidores cortavam a cabeça. Os suplícios eram uma prática comum e um espetáculo quotidiano no qual as pessoas se reuniam e assistiam ao esquartejamento e, no final, à morte do condenado. O poder era objectificado na pessoa que condenava e em quem executava as formas de tortura que visavam punir o condenado.

No século XVIII, com a transição da produção agrária para o modo de produção industrial, assistimos à necessidade do surgimento de novas formas de dominação, dando-se assim a transformação do poder soberano em poder disciplinar. A industrialização centrada na produção mecânica necessita de um tipo de abordagem diferente do trabalho e dos indivíduos. É preciso disciplinar o indivíduo produtor. 

“O poder disciplinar, não é um poder de morte, mas um poder de vida, cuja função não é matar, mas operar a imposição completa da vida. (…) O progresso da industrialização exige disciplinar o corpo e adaptá-lo à produção mecânica. Em vez de torturar o corpo, o poder disciplinar fixa-o a um sistema de normas.” (Han, 2015, p. 29)

Embora também possua características coercivas, o poder disciplinar acrescenta uma nova dimensão normativa à sua forma de controlar os indivíduos. O poder desloca-se do soberano para as instituições. Michel Foucault centra grande parte da sua obra na análise desta dimensão normativa. Em Vigiar e Punir, História da Loucura, O Nascimento do Hospital e História da Sexualidade, o filósofo francês expõe e analisa as diversas formas de produção dos indivíduos nas sociedades emergentes com a criação de instituições como as prisões modernas, a clínica psiquiátrica e o hospital. 

Com o aparecimento dos novos saberes e de novas abordagens epistemológicas surgiram também novas formas de controlo dos indivíduos. Quando surge a forma clínica de estudo do sujeito, em parte através da abordagem mecanicista do corpo humano introduzida por Descartes, o corpo passa a ser tratado como um conjunto de órgãos que funcionam bem ou mal. Desta concepção puramente mecanicista dá-se uma alteração da forma de abordagem do doente. Este é visto apenas como corpo e não como pessoa na abordagem clínica. Por exemplo, quando surgem as instituições psiquiátricas, nasce também uma nova forma de tratar o louco que passa pela sua exclusão da sociedade enclausurando-o numa clínica que visa curá-lo e manter a ordem social enquanto que em séculos anteriores os loucos poderiam viver em sociedade e existiam até como exemplo quotidiano dos limites da razão humana. Com a clausura do louco cria-se também uma nova noção de normalidade, isto é, quem não corresponder a determinados critérios, que são legitimados pelo conjunto de especialistas que os determinaram, neste caso, os médicos psiquiátricos, corre o risco de ser retirado da sociedade e enclausurado com a justificação de que o seu comportamento denota uma anomalia clínica que, se não for devidamente analisada e tratada, irá prejudicar o regular funcionamento da sociedade. 

“O momento histórico das disciplinas é quando nasce uma arte do corpo humano, que não visa apenas o desenvolvimento das suas capacidades, nem o aprofundamento da sua sujeição, mas a formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto mais obediente quanto mais útil e inversamente. O corpo humano entra num maquinismo de poder que o explora, desarticula e recompõe. Começa a nascer uma «anatomia política», que é também uma «mecânica do poder»; define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se deseja, mas para que funcione como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determinam.” (Foucault, 2018, p.160)

A vigilância e a clausura são elementos determinantes da sociedade disciplinar. Trata-se, portanto, de uma sociedade de vigilância em que o indivíduo sabe que está a ser vigiado e adapta o seu comportamento às normas de estruturação da sociedade que são determinadas pela conjunção dos novos saberes científicos com o poder político. O que Foucault nos ensina acerca do poder é que este não existe instanciado num indivíduo, ou que é uniforme na sociedade como um todo. O poder é uma relação entre os indivíduos e as próprias instituições. O que existe são práticas de poder aplicadas pelas diferentes instâncias jurídicas, medicinais e laborais, ou seja, o poder não é algo que se possui, é algo que se exerce.

Já nas décadas finais do século XX, com a flexibilização das relações de trabalho e a disseminação da lógica neoliberal que acaba por tornar todos os aspectos da vida em objeto de consumo, dá-se o aparecimento de uma nova relação com a liberdade e, consequentemente, de novas formas de dominação. Embora tenha sido no final do século passado que as alterações tenham acontecido é no presente século que estas se manifestam numa escala global e se tornam mais evidentes. 

A nova forma de exploração da liberdade atinge uma dimensão completamente diferente das anteriores, pois deixa de ser uma exploração que se dirige do exterior para indivíduo mas que passa a acontecer unicamente do indivíduo para si próprio. Byung-Chul Han faz um diagnóstico à sociedade atual denotando precisamente o final da sociedade disciplinar e o consecutivo surgimento da sociedade a que vai chamar de “sociedade de produção”. 

“A sociedade do século XXI já não é uma sociedade disciplinar, mas, sim, uma sociedade de produção. Os seus habitantes já não são, por sua vez, sujeitos de obediência, mas, sim, sujeitos de produção. São empresários de si próprios.” (Han, 2015, p.19)

Embora continue a existir um padrão de normalidade da vida em sociedade, há uma substituição do dever pelo poder. Enquanto que na sociedade disciplinar existia um modelo de subjetividade ideal derivado do papel na sociedade e da classe social pertencente que todos os indivíduos deveriam almejar, na sociedade de produção exige-se ao indivíduo que se produza a si próprio. Há um fetichismo da autenticidade. Esta situação torna-se paradoxal pois a liberdade deveria ser o oposto da coação. No entanto, quando exigimos ao indivíduo que se produza a si próprio, ele mesmo se escraviza de forma voluntária sem qualquer coação externa usando-se apenas da sua liberdade. 

Para além disto, a técnica de poder atual adquire uma dimensão muito mais subtil e flexível que as anteriores, pois é baseada na sua capacidade de influenciar ao consumo. O sujeito já não tem de produzir para enriquecer a sociedade. O indivíduo produtor, no sentido industrial do termo, converte-se em consumidor. Quantos mais aspectos da sua vida puderem ser alvos de comercialização e mercantilização melhor para o sistema como um todo. No regime neoliberal, idealmente, tudo pode ser objeto de consumo, portanto, o mais importante é criar necessidade de consumo sem que o consumidor se sinta coagido a fazê-lo. 

Estas noções de autenticidade e do indivíduo como empresário de si próprio são potenciadores eficazes na disseminação das patologias do nosso século, as doenças mentais, nomeadamente a ansiedade e a depressão. A lógica neoliberal coloca o enfoque na responsabilidade individual culpabilizando o indivíduo aquando do seu fracasso em qualquer empreendimento. 

Esta sintomatologia encontra-se bastante presente nas nossas vidas. Basta observarmos o mercado de trabalho atual para vermos nele refletido estas patologias. Ao liberalizarmos as relações laborais estamos ao mesmo tempo a abdicar de uma parte essencial ao nosso bem estar mental. As relações de trabalho ganham um carácter puramente instrumental. Já não importa quem está do nosso lado ou quem trabalha connosco. Por um lado, porque o trabalho, ao ser precário, não deixa grande espaço para alimentar relações fraternais com os nossos colegas pois trata-se apenas de um  conjunto de relações que, à partida, só existirão durante os meses que durar o contrato. Ao mesmo tempo, os colegas de trabalho tornam-se objetos de competição, pois quando o enfoque se encontra no indivíduo e a segurança no mercado de trabalho se torna uma relíquia que só os mais capazes alcançam, o sujeito sente uma obrigação em dar o máximo para capitalizar o seu sucesso. O sucesso no mundo competitivo atual não permite a realização mútua. 

“O sujeito neoliberal como empresário de si próprio não é capaz de estabelecer com os outros relações livres de qualquer finalidade. Entre empresários não surge uma amizade independente de quaisquer outros fins. E, contudo, ser livre significa estar entre amigos. (…) A liberdade é, fundamentalmente, uma palavra relacional” (Han, 2015, p.12)

Um outro aspecto que denota estas patologias e a necessidade do indivíduo se produzir a si próprio encontra-se nas livrarias. Basta entrar numa livraria contemporânea e olhar para os tops de vendas para nos aperceber-mos que as secções de autoajuda e desenvolvimento pessoal são as mais destacadas e as que mais têm impacto no volume de negócios. O mais interessante neste caso é a abrangência do tipo consumidor – podem ser diametralmente opostos. Estas secções servem para o indivíduo que pretende iniciar a jornada da autocriação e da procura da autenticidade, como também servem para o indivíduo que já passou essa fase e se encontra na fase da violência sobre si mesmo. Procura uma explicação para o seu fracasso e um rumo a seguir para encontrar a felicidade e a realização pessoal.

No meu ponto de vista, a sociedade disciplinar e a da autoexploração não são mutuamente exclusivas, pelo contrário, complementam-se e dão continuidade uma à outra. A passagem pela primeira foi necessária para a segunda poder emergir. Foi necessário cultivar esta ideia de liberdade contemporânea que substitui o dever pelo poder, mas, ao mesmo tempo, mantendo as partes essenciais do dever provenientes da sociedade disciplinar que permitem disciplinar e construir o indivíduo que mais tarde se irá explorar a si próprio sem nunca se desviar dos padrões de normalidade perpetuados pela sociedade da disciplina, pois mesmo a busca da autenticidade requer que o indivíduo seja um consumidor, pois, ser autêntico nos dias de hoje está essencialmente ligado ao lifestyle que escolhemos. Essa escolha só é demonstrável através do que optamos por consumir.

Bibliografia

CHUL-HAN, Byung (2015). Psicopolítica. Lisboa: Relógio d’Água

FOUCAULT, Michel (2018). Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Lisboa: Edições 70.

FOUCAULT, Michel (2010). Nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70.

Autor:
30 Agosto, 2021

Eterno aprendiz. Licenciado em Filosofia e pós graduado em Sociologia, tendo como área de interesse predominante a História das Ideias.

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