O percurso da Wikileaks, tantas vezes personalizado na figura de Julian Assange, é uma das mais intrigantes e reveladoras histórias dos últimos anos. Com o início de actividade em 2006, a plataforma foi durante anos um agente de política internacional com uma agenda singular, descrita em poucas palavras: trazer a transparência radical para as mais altas instâncias institucionais e revelar a público aquilo que governos e outras instituições que tais mantém longe do olhar.
Foi com essa missão que há exactamente 11 anos, no dia 5 de Abril de 2010, o projecto fez uma das revelações que se viria a tornar uma das mais sonantes: Collateral Murder. Um vídeo gravado a partir de um dos helicópteros do exército norte-americano presentes na guerra do Iraque, que marcara a abertura da caixa de pandora sobre o que viriam ser as amostras das práticas americanas em cenário de guerra.
O vídeo com aproximadamente 40 minutos, filmado pela câmara acoplada à arma de um Apache e que capta os áudios do interior do helicóptero e a conversa entre os tripulantes, revelava assim outro lado das operações militares norte-americanas e revogava as dúvidas que desde 2007 pairavam sobre Bagdade. Na gravação pode ver-se uma ofensiva do helicóptero à cidade, a mesma que vitimara dois jornalistas da Reuters, Namir Noor-Eldeen, de 22 anos e o seu motoritsta, Saeed Chmagh, de 40, e colocara a agência noticiosa num constante apelo pela libertação das imagens.
Infographic: What we learned from Collateral Murder – Published 11 years ago today #FreeAssangeNOW
Watch: https://t.co/7ZquWpFjKW pic.twitter.com/otJtJXQB5m— WikiLeaks (@wikileaks) April 5, 2021
Obtido através de um whistleblower, que mais tarde veio a saber-se ser Chelsea Manning, e desencriptado pela equipa da Wikileaks, a gravação feita pelo helicóptero norte-americano vinha assim, há 10 anos, trazer mais elementos para contar uma história muito importante, a da Guerra do Iraque, revelando cabalmente as divergências face à narrativa oficial. No caso concreto revelado por Collateral Murder, a versão oficial dos factos apontavas as mortes como danos colaterais de uma estratégia de defesa, algo que as evidências gráficas colocaram de imediato em causa – no vídeo vêem-se pessoas na rua, e percebe-se que são os pilotos quem as identificam como insurgentes, confundido a câmara do fotógrafo com uma arma, num desenrolar de acontecimentos que culminou na morte de 11 pessoas, e revelou a desconcertante descontração com que se ceifam vidas.
Já em 2008, a Reuters, que pôde ver o vídeo mas não teve permissão para o guardar ou revelar em público, afirmava que havia “relatos de confrontos entre as forças dos EUA e insurgentes na área mas não havia combate nas ruas em que o Namir estava” e que “creem que dois ou três destes homens tinham armas, mas, testemunhas dizem que nenhum deles tinha uma postura hóstil no momento” – afirmações essas que ganharam um novo peso depois da revelação da Wikileaks. Contudo, mesmo apesar da evidências gráficas que chocaram uma boa parte do mundo, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos continuou a esquivar-se a qualquer responsabilidade, revelando em relatório após a divulgação do vídeo que os jornalistas “não fizeram qualquer esforço para demonstrar o seu estatuto como jornalistas” e que “a sua proximidade com os insurgentes armados (…) fê-los parecer combatentes para os pilotos do Apache”.
Dean Yates, o responsável pelo destacamento da Reuters no Iraque à data do ataque, entrevistado no ano passado pelo The Guardian, conta mais sobre como a história se desenrolou e sobre como as informações foram, no seu entender propositadamente, manipuladas. Yates revela que teve de dar a notícia da morte dos seus colegas e informado pelos responsáveis militares norte-americanos reportara o sucedido como consequência de um confronto. “As afirmações de que o Namir e o Saeed tinham morrido durante uma troca de tiros eram todas mentira. Mas eu não sabia naquela altura, e por isso actualizei a minha história com as afirmações do Exército Americano”, conta.
11 anos depois de que valem essas imagens?
11 anos passaram e muito mudou na história da Wikileaks e na de Julian Assange. Depois de um período em prisão domiciliária, e outro em asilo na embaixada do Equador, Assange encontra-se agora num dos momentos mais sensíveis da sua trajectória.
Julian Assange que, segundo a sua esposa, Stella Morris, há poucos dias recebeu uma carta directamente do Papa Francisco, encontra-se na prisão de alta segurança de Belmarsh, sem acusações por parte da justiça britânica, mas envolto num complexo pedido de extradição para os Estados Unidos da América onde enfrenta uma pena de até 175 anos de prisão. No princípio deste ano, o tribunal fez-se ouvir nesta matéria, negando a extradição do activista por considerar que poria em grave risco a sua vida, mas, por outro lado, rejeitou o pedido da sua defesa para que fosse libertado sob fiança.
Curiosamente, ou não, como aponta o The Guardian num artigo com alguns meses, na acusação de que Assange é alvo nos Estados Unidos da América – por crimes de espionagem e revelação de documentos classificados – não existe qualquer referência concreta à revelação que hoje faz 11 anos. Em vez de referências concretas ao vídeo de 38 minutos de Collateral Murder, os procuradores preferiram, segundo reporta a peça, alegações vagas sobre as revelações de Assange. Uma postura que é criticada por Yates mas não só. Também os membros da Australian Assange Campaign que, aconselhados pelo advogado Greg Barns, apontam para a perversidade perpetrada por um aliado da Austrália.