“Se me perguntam se o resultado da negociação melhorou o Orçamento, não quero ser imodesto e digo ‘não’, porque a versão inicial preparada era melhor do que a final.“, afirmava António Costa no início de 2016, após as tensas negociações com Bruxelas do seu primeiro Orçamento de Estado, aprovado por toda a esquerda parlamentar. Do conjunto das medidas negociadas de forma a reduzir o défice público, o executivo decidiu aumentar o imposto sobre os produtos petrolíferos (ISP). O plano B do Governo português enquadrava-se no mainstream do centro político Europeu do século XXI: um aumento de impostos indiretos camuflado em preocupações ambientais, com efeitos redistributivos bastante dúbios, protegendo grupos eleitorais essencialmente urbanos. A mesma estratégia foi posteriormente aplicada (com menor sucesso) pelo Presidente Macron, em França, um dos principais aliados políticos de António Costa, acabando por espoletar nos protestos do movimento coletes amarelos.
Apesar de a medida ter sido assumidamente implementada a contragosto, o ISP acabou por tornar-se uma medida-bandeira do Governo na redução dos gases efeito estufa provenientes do sector do transporte. António Costa chegou mesmo a equiparar Assunção Cristas a Donald Trump, durante um debate eleitoral, por esta defender a redução do imposto sobre os combustíveis fósseis. Contudo, a realidade parecia não comprovar a eficácia ambiental do “imposto verde”. Nos anos seguintes, a compra de veículos ligeiros continuaria a crescer em todas a regiões do país; enquanto a utilização de transportes públicos, embora apresentasse aumentos modestos, mantinha-se substancialmente abaixo dos níveis pré-crise. O falhanço ambiental de tal medida era o resultado natural de um serviço de transporte público enfraquecido e caro, consequência das medidas tomadas durante a intervenção da Troika. Este período caracterizou-se pela tentativa de privatização do transporte público, enquanto se aumentava significativamente preços e se reduzia a qualidade do serviço – por via do abandono de comboios, supressão de carreiras e suspensão de investimento estruturais, como a expansão do metro de Lisboa para a Reboleira. Sem uma alternativa viável, a população continua a utilizar o transporte individual para satisfazer as suas necessidades básicas e obrigações laborais, num processo de empobrecimento através de um imposto indireto sobre a mobilidade.
Três anos após o aumento do ISP e nos últimos meses de mandato, o executivo anunciou, nas palavras do Primeiro Ministro, uma “verdadeira revolução” no transporte público. Ao criar um sistema de passes sociais, que limitam o preço do transporte nas áreas metropolitanas em 40 Euros/mês, resultando em poupanças mensais superiores a 100 Euros para milhares de trabalhadores e estudantes. Rapidamente surgiram críticas por parte de comentadores, políticos e especialistas. O projeto teria efeitos muito limitados no uso do transporte público e causaria desigualdades sociais, no entanto, a experiência até ao início da pandemia parece contrariar tais ideias. No primeiro mês de implementação dos passes sociais, a utilização de comboios suburbanos em Portugal, cresceu aproximadamente 18%, atingindo máximos históricos e continuou a crescer nos meses posteriores. O tamanho sucesso dessa política criou pressões sobre o serviço existente, que os trabalhadores da CP tentam compensar com a constante recuperação de comboios abandonados ou inativos.
A foto é dos trabalhadores à saída da última das 4 locomotivas, English Electric 1400, que estavam abandonadas e foram totalmente requalificadas por esta equipa.
— José Carlos Barbosa (@zecarlosbarbosa) April 3, 2021
Nunca foi tão bom ver trabalhadores felizes e motivados apenas porque têm imenso trabalho para realizar. pic.twitter.com/X21wriLdJi
Para além disso, o uso de comboios suburbanos, quando comparado com os metros1, sugere que os passes sociais têm efeitos virtuosos do ponto de vista redistributivo. O número de passageiros nos serviços de metro, maioritariamente concentrados em Lisboa, apresentou aumentos ligeiros após a implementação dos passes sociais. Tornando evidente que os maiores beneficiários dos passes sociais são as populações suburbanas das áreas metropolitanas. Como foi destacado por Ricardo Paes Mamede, existe um enorme contraste entre os altos níveis de rendimento na capital portuguesa e a grande maioria da sua área metropolitana, que detém níveis de poder de compra abaixo da média nacional.
Transporte público: número de passageiros, Portugal (base 2005 = 1)
Veículos novos vendidos por habitante: ligeiros de passageiros (base 2011 = 1)
A atual pandemia veio evidenciar as sérias limitações de atingir neutralidade carbónica dentro do sistema económico vigente, mesmo ignorando danos sociais. Em 2020, com o mundo sujeito a confinamentos obrigatórios, as emissões de CO2 mundiais caíram cerca de 7%. Segundo a UNEP, será necessário reduzir os gases de efeito estufa à mesma taxa anual observada em 2020, durante a próxima década, para cumprir os objetivos do acordo de Paris (1.5°C). Continuar com o business as usual, requer níveis de austeridade ambiental e supressão de consumo inimagináveis.
A social democracia low cost portuguesa, com as suas contradições ambientais, não salvará a humanidade do colapso climático. No entanto, a sua recente política de transporte realça o papel fundamental do estado social e da propriedade pública no combate das alterações climáticas. No 45º aniversário da Constituição da República e dois anos após a introdução dos passes sociais, devemos recordar o poder da democratização da economia para resolver desafios coletivos. Aguardar que uma combinação, proferida por bilionários messiânicos, entre austeridade ambiental e progresso tecnológico ainda por desenvolver transforme o capitalismo fóssil em capitalismo de lítio, será provavelmente a receita para o falhanço civilizacional.
Guilherme Rodrigues
Um socialista, formado na capital portuguesa do neoliberalismo económico (Nova SBE), que tenta contar uma história escondida @zerohoursworker / https://medium.com/zinc-tank
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