De tudo o que é conhecido e descrito pelo humano, quase nada parece seguir leis tão rígidas e universais como a Matéria. De tantas combinações possíveis entre sólidos, líquidos e/ou condensados de Bose-Einstein, os físicos conseguiram extrair as leis fundamentais que explicam a dinâmica de partículas e as suas possíveis interações, e descrevê-las num modelo incrivelmente geral. A nomenclatura, chata diga-se, reflete essa importância: trata-se do Modelo-Padrão (da Física de Partículas). Tratemo-lo por MP.
Passado mais de meio século desde a revolução experimental na área, quando a tecnologia por trás de aceleradores de partículas finalmente atingiu níveis de preparação, análise e exatidões estonteantes, a concordância entre todos os resultados e previsões do modelo tem sido até hoje tão bem sucedida que muitos, há muito, especulam sobre o seu eventual falhanço — à medida que colisões a maiores energias ou em regimes mais delicados se tornam realidade.
Todos sabemos que o MP não pode estar completo e exemplos como este lembram que em Ciência, a demonstração de um falhanço é em si um sucesso. Por isso, muitos tentam encontrar resultados experimentais em que o MP falhe na estimativa das medições.
Em colaborações como no FermiLab, Laboratório Nacional de Brookhaven e no CERN estuda-se a física de muões – partículas com carga elétrica e 200 vezes mais pesadas que electrões – num teste aos limites do MP ou ao aparecimento de física completamente nova através de experiências, chamadas de g-2. Ao medir a velocidade de precessāo de muōes, os físicos mediram valores mais altos do que seria de esperar pelo MP. A serem verídicos, estes resultados abrem as portas a física completamente nova e não explorada.
Modelo Padrāo: A Theory-for-them-all
Qualquer partícula já observada ou é bem descrita pelo MP ou foi descoberta como resultado de previsões teóricas motivadas por este. Dos triliões de processos de colisão, absorção, emissão e destruição que ocorrem entre raios de partículas a viajar a velocidades estonteantes, marginalmente menores que a da luz, a análise do que se forma no final tem sido sempre corroborada pelo MP – ou corroborante deste. E num mundo tão pequeno em que luz, matéria e forças se tornam objetos quânticos, e tão rápido em que a Relatividade de Einstein tem de ser considerada, esta previsibilidade é um feito incrível e engenhoso – mas também sensível.
No MP, toda a matéria e forças são divididas em classes de partículas indivisíveis (logo fundamentais). Um potente teorema demonstra que (em certos ambientes) apenas pode haver duas classes de partículas quânticas, que se comportam de maneira diferente. A matéria dita comum, que compõe o nosso corpo ou o núcleo de uma estrela, é sempre composta por estados agregados de fermiões. Já as forças, como a elétrica ou gravitacional, acontecem por transferências de outras partículas, bosões, que são trocadas incessantemente entre fermiões.
Tal como uma onda que se propaga através de um corpo de água, partículas são modos de vibração de campos que permeiam todo o Universo. O MP explica como e quando estes modos são criados, destruídos e viajam pelo espaço.
O que são partículas fundamentais?
Ao separar-se partes mais pequenas, toda a matéria que conhecemos parece formar-se por blocos básicos. Sabemos que dezenas destes blocos podem ser estáveis – electrões, neutrões, quarks, o bosão W e Z. Umas pequenas, outras gigantes, com ou sem carga – um verdadeiro zoo microscópico.Para se perceber o que significa ser fundamental neste contexto, invertamos a questão, explicando primeiro porque, no exemplo, o copo de água não o é. Um copo de água não é fundamental porque pode ser decomposto em moléculas (o nosso bom H2O), divisíveis em átomos de hidrogénio e oxigénio e, consequentemente, em protões, neutrões e eletrões — é aqui que chegamos ao nível dos fundamentais.
Eletrões são fundamentais porque não parecem envolver-se em interações em que estados de menor energia possam ser criados. Estão simplesmente bem assim e então são ditos estáveis.
Já o protão e o neutrão não são fundamentais – existem sub-estruturas de um malabarismo perfeito entre matéria e interações dentro deles. Neste caso, a matéria é composta por 3 quarks e a força que os “cola” é a nuclear forte, mediada por 8 tipos de gluões.
Todas estas criaturas são, aos olhos do MP, fundamentais, ainda que a fundamentalidade do eletrāo já tenha sido posta em causa por diversas equipas, em experiências análogas ao g-2, embora sem resultados conclusivos até ao mundo.
Como descrever qualquer partícula fundamental de tudo o que pode haver em termos de matéria?
O Modelo-Padrão tenta ajudar, ao classificar qualquer força ou matéria como uma partícula quântica como uma excitação de um campo quântico, com várias propriedades únicas – a sua massa inercial, carga elétrica por exemplo. Algumas delas são quânticas em natureza e estranhas, sem qualquer analogia “intuitiva” como o spin –
uma espécie de momento angular em versão quântica. Retome-se o exemplo de eletrões: podem ter spins positivos e negativos e então poder transmitir “rotação” sem perder energia quando interagem.
À medida que as velocidades de colisão são maiores, interações mais estranhas podem ocorrer mas são raríssimas – na ordem de 1 em 10000000000 ocorrências. Mas o controlo e exatidão das medições nestes laboratórios consegue demonstrar estatisticamente que certos sinais são evidência inequívoca da existência desses processos. Aqueles precisamente que foram previstos pelo MP!
Tudo de aspeto quântico parece “pequeno”, mas a variação da escala é espantosa. Num átomo de hidrogénio, um eletrão orbita um protão aproximadamente numa esfera de um raio de 0.00000000001 metros. Agora, se o protão for uma esfera contendo os quarks dentro, este teria um raio 60.000 vezes mais pequeno. Já o raio de um muão é 2000 vezes mais pequeno. Estamos então perante comprimentos dificilmente compreensíveis para a nossa mente – 1 seguido de 19 zeros de um metro! Mas medições desta escala podem ser obtidas graças aos engenhos mais sofisticados que a nossa espécie alguma vez construiu.
O MP é um modelo altamente sofisticado. No seu paradigma teórico, e para haver uma maneira de representar matematicamente como estes campos quânticos se desenvolvem no tempo e espaço, é definida uma função – o Lagrangiano. Como se de uma receita se tratasse, ela explica como partículas interagem e formam estados de matéria estáveis: de como os protões são estáveis mas muões decaem num eletrão e dois neutrinos ou como reações em cadeia podem decorrer pela instabilidade de densidade de carga elétrica dentro dos átomos.
O que desafia o Modelo Padrão
Qualquer teoria tem de prever corretamente os resultados de experiências criadas num cenário que possa ser recriado. Um dos melhores testes, e o usado nas experiências g-2, vem através de quão rápido o spin “gira” quando um campo magnético externo é impingido na partícula.
Como medir essa precessão? Partículas podem produzir campos magnéticos próprios ou interagir com outros campos. A intensidade dessa possibilidade é dada por uma quantidade chamada de momento do dipolo. Quando o dipolo existe, o sistema é suscetível a ser magnetizado, como se de um íman se tratasse, com uma direção Norte-Sul definida.
E porquê chamar as experiências de g-2? Esta quantidade consegue ser medida com precisões arrebatadoras em experiências em que o spin permite depois deduzir a intensidade de uma constante (chamada de g) pois depende dela. Se a constante prevista por um modelo estiver errada, então esse método não captura a física do que está a acontecer. Sem surpresas, o MP oferece uma plataforma para calcular g.
Para o eletrão, por exemplo, teorias quânticas mais simples dão uma previsão de g=2, abaixo do que se mede. Na verdade, ele é de g = 2.00231930436182. Esta discrepância, chamada de contribuição anómala, vem precisamente de efeitos que apenas teorias mais refinadas como o MP conseguem capturar e, numericamente, é precisamente igual a g-2!
The Muon g-2 experiment at Fermilab sees fundamental particles called muons behaving in a way not predicted by the Standard Model of particle physics. These results confirm an earlier experiment performed at @BrookhavenLab. #gminus2https://t.co/92KZ5nWzCT pic.twitter.com/eX0ifQcR03
— Fermilab (@Fermilab) April 7, 2021
E agora?
Com esta evidência, talvez um novo paradigma seja necessário para conceptualizar a maneira como partículas interagem, são criadas, destruídas e compostas em processos quânticos. Contudo, nem todos acreditam que esta medição contradiga o MP. Há já até publicações em que computações em supercomputadores demonstram que o MP pode de facto acertar neste valor experimental e que a equipa que declarou a inconsistência subestimou certos parâmetros.
Algo é certo. A significância do MP não pode ser levianamente posta em causa e mais corroboração é necessária para fechar a questão. De qualquer maneira, qualquer conclusão é um avanço na prática científica como a evolução para algo que nos permita realmente afirmar que caminhamos para o melhor entendimento de como o nosso Universo funciona.
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