Falar sobre racismo e, mais especificamente, promover narrativas que lhe façam frente é uma necessidade cada vez mais evidente na nossa sociedade. O tema está na ordem do dia e a promessa que sustenta o antirracismo — garantir a igualdade entre todos — devia torná-lo por imperativo moral uma prática constante, de todos e de cada um. Contudo, nem sempre a conversa é bem aceite, sobretudo, quando as pessoas brancas (como eu) se propõem à reconfiguração de hábitos intrínsecos. Para nós (senso lato) é tudo, tantas vezes, sem ofensa. E foi por tantas vezes embater nesta expressão desculpabilizadora que Ângelo Delgado lhe dedicou um pequeno livro.
“Sem Ofensa” é um livro de edição da AlmaLetra, concebido por Ângelo Delgado e Sofia Ayuso; o escritor e a ilustradora uniram-se nesta aventura que, partindo da experiência pessoal do Ângelo, quer combater o racismo à sua maneira. Digamos, subvertendo o habitual da expressão: SEM OFENSA.
“Acreditamos que o racismo deve ser combatido em várias frentes. Nós apenas escolhemos uma, assente algumas vezes no humor, mas nunca deixando de deitar as garras de fora. As ilustrações acabam por aligeirar o peso que o tema carrega mas é igualmente pungente. Podemos dar uma gargalhada ao olhar para um Camões negro, como especar na figura ali representada e fazer uma reflexão mais demorada. Não é certo que um debate menos formal seja mais eficaz. Aliás, importante é que se debata: formal ou informalmente.”, conta-nos Ângelo numa conversa por e-mail.
Conjugando histórias pessoais e excertos que se tornam anedóticos do quanto sublinham a internalização de alguns hábitos, Ângelo acaba por ir tecendo uma densa malha sobre o racismo sistémico em Portugal. Sem se focar nos casos que chegam à televisão ou nas agressões que são impossíveis de ignorar, Ângelo partilha com o leitor aquilo que muitas vezes só os seus olhos vêem, só os seus ouvidos ouvem, só a sua condição enquanto pessoa racializada sente. É nessa oferta ao leitor, nesse momento de partilha, cuja intimidade se revela logo a começar pelos agradecimentos, que a experiência do livro se eleva e ganha significado, tornando-se num princípio de diálogo leve sobre algo que se vai revelando insustentavelmente pesado. Como uma piada repleta de sarcasmo ácido que procura corroer a superfície, procurando chegar à essência.
“O humor foi uma ferramenta utilizada no Sem Ofensa, porém, não serve para aligeirar as experiências, antes vincá-las; como que troçando de quem profere aquele tipo de expressões. E, depois, a ilustração materializa essa, digamos, troça. Há que sublinhar, no entanto, que as experiências ligadas ao racismo têm um cariz bastante pessoal e, por isso, volátil nas reações.”, diz-nos mais à frente, continuando: “inclino-me mais para o outro lado, ou seja, para quem lê as expressões e suas explicações, analisa as ilustrações e pensa: ‘porra, não sabia que isto era assim’; ou ‘que murro no estômago, disse e ouvi isto tantas vezes e pensava que era mais um dia no escritório’”.
É a partir dessa via de comunicação, proposta pela intimidade da partilha de Ângelo e pela leveza aportada pelas ilustrações de Sofia que “Sem Ofensa” nos leva até ao seu ponto essencial, denunciar expressões e práticas normalizadas na sociedade, tidas como inofensivas mas com um resultado profundamente ofensivo ou atentatório da dignidade do outro.
“Deixei a porta entreaberta para que o ou a leitora pudessem entrar no meu universo quase sem pedir licença. E, uma vez instalados — e sem grandes demoras — explicar, sem ser aos berros e com desenhos, que aquelas expressões não estão bem, ofendem e desumanizam. Que a linguagem deve e tem de mudar. E claro, puxo a vertente da experiência pessoal para dar um cariz real à obra. Quando assistimos a um filme baseado em factos verídicos a nossa atenção e sensibilidade ao tema são maiores. Foi o que quisemos fazer com o Sem Ofensa.”
Ângelo conta a sua história e põe-se no lugar central na mesma medida em que reconhece a importância de todos os que de alguma forma ou de outra partilham da sua luta. É isso que sublinha em resposta ao Shifter, como que retribuindo à luta anti-racista o enquadramento que esta lhe oferecera para reconhecer a sua história. Ângelo fartou-se de ouvir os “sem ofensa” num processo que parece tanto pessoal como intencional, como uma voz que não se podia mais calar e encontrou o contexto certo para se exprimir.
“É importante sublinhar que esta luta é feita por muita gente há muito tempo. Através do cinema, teatro, literatura ou até de uma forma política, mais ativista. Como disse antes, não há melhores nem piores caminhos: temos apenas que abordar o assunto sem panos quentes e sem ‘mas’. Fazê-lo será sempre um passo na direção certa. Quanto ao racismo do quotidiano, discreto e “inofensivo”, como referes, sucede diariamente. Aqui, a batalha passa por apontarmos o dedo a quem verbaliza esses ataques. O que acontece na maior parte das ocasiões é que essas pessoas dizem o que querem e saem triunfantes do autocarro, inchadas de razão. Precisamos de agir, mas também de reagir de acordo com os contextos.”
O sentido de urgência de que nos fala Ângelo pode não ser fácil de compreender para quem vive na sua pele, e presta-se à tentação do descrédito, mas ao folhear as páginas do livro de Ângelo Delgado, vai aumentando o peso percebido desta opressão secular. Uma opressão que não se expressa só sobre a forma clássica da discriminação, mas por vulgares formas de desumanização ou até por uma certa tentativa de roubo da identidade denunciada neste livro. Uma opressão que se expressa não só na rejeição mas também em formas perversas de aceitação condicional ou de menorização da identidade: o “até tenho amigos que” ou o “nem pareces”, e que neste livro se torna evidente e impossível de ignorar.
“A expressão ‘murro no estômago’ é a mais ouvida, mas também temos reações de quem foi racializado e diz: ‘ouvi isto a minha vida inteira e não sabia como reagir’. Alguns dizem ainda que é um excelente ‘abre olhos’ para a linguagem abusiva e não recriminada na sociedade portuguesa. Ficamos felizes por causar algum impacto em quem nos lê.”
Sobre esse impacto é impossível não relacionar o contexto do livro com os acontecimentos que no último ano, o de lançamento do livro, marcaram a agenda. Apesar de tudo, Ângelo conta-nos que a escrita tinha começado antes, numa resposta que é, de certa forma, mais uma lição, sobre os problemas que não esperam ser notícia para se fazer sentir na vida das pessoas.
“É curioso, quando finalizámos o conteúdo do livro — logo no início do primeiro confinamento, em Março ou Abril do ano passado — começaram a surgir manifestações anti-racistas um pouco por todo o mundo, incluindo cá. Tivemos os episódios do George Floyd nos EUA, e do Bruno Candé no nosso território. Pouco depois, quando divulgámos ‘Sem Ofensa’, logo surgiram reações que nos diziam que era um excelente momento para o seu lançamento pois o tema estava na ordem do dia. Disse, de forma robótica, quase sempre que sim. Mas preferia não ter sentido necessidade de escrever um livro com este assunto como pano de fundo: era sinal que vivíamos num mundo melhor.”
“Sem Ofensa” ainda pode ser adquirido online no site do projecto, e Ângelo é uma voz que podemos ouvir em algumas conversas sobre a temática do racismo e colonialismo. Porque se durante anos, práticas racistas e discriminatórias se solidificaram na sociedade portuguesa sob a égide do “sem ofensa”, é preciso começar a desconstruir esses hábitos sem que toda a crítica seja vista como uma ofensa. Ângelo e Sofia dão mais um passo nessa caminhada que partilham com tantos outros, e fazem-no de uma forma inapelável. Ângelo partilha as suas sensações e Sofia desconstrói-as nas suas ilustrações, num livro anti-racista que também é uma espécie de tratado sobre a empatia ao convidar-nos a pensar sobre as difíceis situações a que por vezes sujeitamos “o outro”.
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